É extremamente comum a ideia de que Mansa Musa foi a pessoa mais rica da história. Geralmente, o raciocínio por trás desta ideia está baseado no cálculo do valor presente de todos os bens pertencentes a si (majoritariamente ouro e sal). Com isto, estima-se que sua riqueza estava na casa dos 400 ou 500 bilhões de dólares presentes. Assim, Musa teria mais do que o dobro da riqueza da pessoa mais rica da atualidade (segundo a Forbes, a pessoa mais rica da atualidade é Bernard Arnault, com mais de 200 bilhões de dólares).
Mas será que esse cálculo está correto? Faz algum sentido dizer que Musa, uma pessoa que viveu nos anos 1300, foi de fato o indivíduo mais rico da história? Não! Por quê? É isto que veremos neste texto.
O significado de riqueza
As pessoas que falam que Musa foi a pessoa mais rica da história não entendem, no fundo, o que significa riqueza. Na verdade, poucas pessoas entendem o que este conceito significa. Esta é uma abstração difícil de se fazer. Mas vamos tentar: riqueza é capacidade de consumo (leia aqui um argumento mais elaborado desta ideia).
Mais precisamente, vamos definir riqueza como o estoque total de ativos de um indivíduo que ele pode facilmente transformar em dinheiro. E vamos definir dinheiro como o bem da economia utilizado exclusivamente para fins transacionais. Ou seja, dinheiro só tem valor na medida em que serve para ser trocado por outros bens que, estes sim, possuem valor para gerar utilidade ao indivíduo.
Dessas definições, segue-se que só faz sentido comparar riqueza entre indivíduos quando comparamos suas capacidades de comprar bens e serviços.
Para fácil entendimento, vamos pensar em um caso extremo: suponha que um indivíduo possua US$ 1 trilhão, mas esteja preso em uma ilha deserta. Assim, qual sua riqueza? Virtualmente nula, já que esses US$ 1 trilhão não podem ser transformados em bens. Nesse cenário, faz sentido dizer que este indivíduo é mais rico que o “Joãozinho da esquina”? Obviamente que não. O Joãozinho pode ter, em termos nominais, muito menos “riqueza” que o trilionário preso na ilha, mas ele consegue converter o pouco que tem em fluxos de bens e serviços — já o trilionário, não.
Novamente: dinheiro é apenas um bem transacional. O seu valor reside na capacidade de gerar bens e serviços ao indivíduo. Falar sobre dinheiro (ou riqueza) sem falar sobre o seu recíproco, bens e serviços, é falar essencialmente sobre nada.
Elaborando o argumento com algumas definições matemáticas
Para fins de simplificação, suponha um único bem na economia. O seu preço, p, em termos de dinheiro, é definido como:
p = \dfrac{1}{v}
Equação 1
O que é v? É o preço do dinheiro em termos do bem. Ou seja, p e v são definidos simultaneamente.
(A equação acima pode ser encontrada em qualquer livro introdutório de economia, por exemplo, em “Modeling Monetary Economies“, de Champ, Freeman & Haslag, p. 49).
Tomando a definição de riqueza do início deste texto, tem-se que a riqueza de um indivíduo, W, é:
W = pc
Equação 2
onde c é o nº total de unidades do bem que sua riqueza permite comprar. Substituindo a equação 1 na equação 2, tem-se:
W = \dfrac{c}{v}
Equação 3
O que a equação 3 está indicando? Que a riqueza de um indivíduo é definida exclusivamente em termos dos bens que ele pode comprar (nº total de bens dividido pelo valor do dinheiro em termos do bem).
Essa foi apenas uma forma matemática de dizer aquilo que já foi dito acima: só faz sentido falar em riqueza se estamos falando em capacidade de obter bens.
O argumento final
Pronto, agora temos as ferramentas necessárias para refutar a tese de que Mansa Musa foi a pessoa mais rica da história. Se ele foi a pessoa mais rica da história, ele deve ter sido a pessoa com maior capacidade de obtenção de bens e serviços da história. Será que este é o caso?
O que Mansa Musa podia obter com toda a sua riqueza? Escravos e concubinas à vontade, refeições das mais variadas e de vários locais do mundo, todo tipo de vestimentas e tapeçaria, vários tipos de imóveis.
Agora, o que Mansa Musa não podia obter com toda a sua riqueza? Deixe que o chat GPT nos ajude:
“Conectividade global – A internet, que conecta instantaneamente bilhões de pessoas ao redor do mundo, oferecendo acesso a informações, redes sociais, comunicação em tempo real e, principalmente, uma quantidade vasta de conhecimento público e privado.
Medicina moderna e acesso à saúde pública – Mesmo com sua riqueza, Mansa Musa não tinha acesso a antibióticos, vacinas, anestesia moderna ou cirurgias avançadas, que hoje estão disponíveis para o cidadão comum, contribuindo para uma vida mais saudável e longa.
Educação formal e acessível – Embora Mansa Musa pudesse contratar os melhores professores e estudiosos, o conhecimento que temos hoje é muito mais avançado e especializado, e está disponível de forma democrática e acessível. Um estudante comum tem hoje acesso a livros, pesquisas científicas e um currículo abrangente.
Tecnologia de transporte rápido e global – Aviões, carros, trens e navios modernos permitem viagens intercontinentais em horas, algo que Mansa Musa, mesmo com uma comitiva poderosa, não teria como realizar.
Energia elétrica e dispositivos eletrônicos – Mansa Musa não poderia sequer imaginar a conveniência de dispositivos eletrônicos como luzes elétricas, eletrodomésticos, computadores, telefones celulares e todas as conveniências que hoje dependem de eletricidade.
Serviços financeiros complexos e digitais – A economia de Mansa Musa era baseada em metais preciosos e bens tangíveis. Ele não teria como utilizar bancos digitais, criptomoedas, cartões de crédito, ou investimentos como o cidadão médio pode fazer hoje.
Entretenimento e cultura globalizada – Música, filmes, streaming, jogos eletrônicos e a acessibilidade a diversas formas de entretenimento digital e cultural são realidades modernas. Mansa Musa teria apenas entretenimento ao vivo ou obras artesanais para desfrutar.
Tecnologia de comunicação à distância – A comunicação instantânea com alguém em outro continente através de ligações telefônicas, mensagens ou videochamadas são luxos comuns hoje. Mansa Musa teria de depender de mensageiros, o que poderia levar meses para uma comunicação intercontinental.
Conforto doméstico e automação – Mesmo com palácios magníficos, Mansa Musa não tinha o nível de conforto doméstico moderno com ar-condicionado, calefação, e eletrodomésticos para tarefas cotidianas. A automação de tarefas através de robôs e dispositivos inteligentes é algo comum e impensável na época.
Tratamento da água e saneamento moderno – O acesso a água potável tratada e esgoto sanitário são facilidades modernas que melhoraram muito a saúde pública. Mansa Musa teria que lidar com métodos rudimentares de acesso e tratamento da água.”
Retorno. Se por um lado Mansa Musa tinha acesso a uma gama de bens que o cidadão médio de um país organizado hoje em dia não tem (incluindo o bem “status por ser extremamente rico”), por outro lado este mesmo cidadão médio tem acesso a uma infinidade de bens que Musa não tinha nem em seus mais ousados sonhos.
Concedido: pode até ser que, no saldo líquido, Mansa Musa tinha mais acesso a bens e serviços que o cidadão médio de hoje em um país organizado. Mas se formos comparar com um milionário de hoje, já não existe mais disputa — e se formos comparar Musa com Bezos ou Gates, o mero ato de tentar fazer qualquer comparação se torna ridículo.
Conclusão
Musa pode ter sido a pessoa mais rica até aquele momento, ou então a mais rica da história em termos nominais (o que não significa nada), ou, ainda, a mais rica da história em termos percentuais considerando toda a riqueza da época em que viveu. Ou seja, ainda é possível criar vários rankings de riqueza nos quais Musa aparece no topo. Mas no ranking “mais rico da história, ponto”, certamente ele não estará no topo — quando entendemos propriamente o que isto significa.
Perceba que o argumento deste texto também se aplica a outros indivíduos que geralmente figuram no topo entre os mais ricos da história — como John D. Rockefeller, Andrew Carnegie, ou, sendo mais exótico, Salomão. Quanto mais no passado viveu o indivíduo, menor é sua riqueza comparada com indivíduos da atualidade, pois menos acesso a avanços tecnológicos ele tinha.
Da mesma forma, quanto mais a tecnologia avança, quanto maiores as possibilidades de escolhas dos indivíduos, mais ricas as pessoas se tornam. Isto implica dizer que, mantendo o ritmo de avanço tecnológico e desenvolvimento econômico atual, e passando tempo suficiente, até o indivíduo mais pobre do futuro será mais rico que o mais rico da atualidade.
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