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Nos últimos 40 anos, a economia como campo de conhecimento avançou espetacularmente. Dois movimentos permitiram esse progresso. Primeiro, a enorme capacidade de construir bases de dados e processá-las. Segundo, certo abuso dos economistas — com a liderança dos trabalhos do já falecido professor da Universidade de Chicago Gary Becker — de tratar quase todo fato social com o método da microeconomia, ou seja, como um problema de escolha feita sob restrições.
Mais recentemente, um grupo de jovens economistas de diversas partes do Brasil, atentos a esses avanços, começou a se reunir na internet para conversar sobre economia. Produziram um site — “Economia Mainstream” — com o objetivo de “divulgar ao máximo o conhecimento a respeito de economia mainstream, isto é, a economia que é ensinada nos centros de ensino e pesquisa mais relevantes do mundo e que serve de arcabouço para a maioria dos artigos científicos publicados nas revistas mais relevantes”. E que, de resto, diria eu, responde por virtualmente todos os pesquisadores agraciados com o prêmio Nobel da disciplina.
A princípio reunidos na internet, os autores acharam que fazia sentido recorrer ao formato mais tradicional de transmissão do conhecimento, o bom e velho livro. Este volume representa o suco do esforço de divulgação do “Economia Mainstream”. Dividido em cinco partes, com 26 capítulos curtos, oferece uma leitura agradável e fluente. Pode ser lido como um livro corrido ou como uma obra de consulta. É um excelente texto para jovens do ensino médio que desejam conhecer economia, talvez para ajudar na escolha do vestibular, ou para qualquer um que deseja um texto curto, abrangente e acessível ao leigo como primeira aproximação ao tema. Mas o texto não deixa de ser agradável e útil também para quem já conhece e estuda economia. Apresenta rapidamente um panorama das diversas áreas com as respectivas referências.
As cinco partes são: crescimento econômico, economia brasileira, metodologia econômica, história do pensamento econômico e, fechando o livro, uma seção de temas variados. O crescimento é o tema fundador da profissão, preocupação central do clássico “A Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Os autores procuram apresentar os fatores que explicam o crescimento e mostrar o papel da produtividade. Ao contrário do que se pensa, capital físico importa pouco.
Na segunda parte, sobre economia brasileira, os autores tratam da grande crise macroeconômica de 2014 até 2016, da desigualdade e da pobreza. A seção termina com uma apreciação do regime militar, período que abarca o milagre econômico, mas que terminou em uma década perdida — uma sequência de crescimento acelerado, em “marcha forçada”, seguido de crise — análoga àquela que vivemos já neste século, em regime democrático. Uma prova da nossa aparente compulsão a repetir erros.
Na terceira parte os autores defendem o método da economia, baseado na construção de modelos formais e em algumas hipóteses compartilhadas pela economia mainstream. Os autores mostram os limites da hipótese básica de racionalidade. Segue a quarta parte, de história do pensamento econômico, na qual explicam como algumas dessas ideias foram desenvolvidas.
Na quinta parte, sob o título de “miscelânea”, diversos assuntos interessantes ligados à pesquisa econômica são analisados. Há capítulos sobre os impactos de longo prazo da escravidão, outro sobre discriminação no mercado de trabalho, de economia da saúde e independência do Banco Central, entre outros tantos temas.
Uma questão que chama a atenção é a insistência no livro, no site e no grupo de divulgadores, no uso do adjetivo “mainstream”. Por que é necessário o tempo todo frisar que se trata de divulgação da produção mais tradicional em economia? O motivo segue de uma particularidade brasileira, qual seja, o enorme peso entre nós, nos departamentos de ensino superior de economia, de abordagens conhecidas como heterodoxas. São abordagens críticas à visão convencional ou do mainstream.
Em qualquer país do mundo há um grupo de pesquisadores minoritário que advogam e trabalham com correntes críticas ao pensamento convencional. A particularidade brasileira é o enorme peso que estas correntes têm, tanto nos departamentos de economia das escolas públicas quanto na formulação da política econômica. Durante todo o período em que o ministro da Fazenda foi Guido Mantega, por exemplo, o centro da formulação da política econômica esteve a cargo de economistas heterodoxos.
No mercado das ideias é comum que os heterodoxos tratem o pensamento mainstream como algo produzido pelo sistema capitalista para “justificar” o sistema. Para os críticos heterodoxos, a economia tradicional — por seu caráter ideológico — não teria condição de tratar de diversos temas. É possível que a teoria crítica tenha uma capacidade de entender as vicissitudes do capitalismo com uma profundidade que não alcanço. Não tenho a menor capacidade de enveredar por este debate. Mas certamente o volume que o leitor tem em mãos demonstra que a teoria tradicional ensinada nos principais centros de pós-graduação do Brasil e do mundo é capaz de tratar de inúmeros temas que tradicionalmente são vistos como exclusivos de uma visão do mundo de esquerda. Temas como desigualdade e pobreza, discriminação de cor e de gênero são tratados com facilidade pelo pensamento convencional. O que divide os economistas está menos nos temas — ou mesmo em posições mais ou menos críticas ao capitalismo — do que no método de análise. O método mainstream é o que mais se aproxima, em ciência social, ao ideal popperiano de construção de conjecturas passíveis de serem submetidas ao teste empírico.
Apesar dos avanços recentes da pesquisa mainstream, avanços muitas vezes realizados por pesquisadores com visão de mundo de esquerda (basta pensar nos trabalhos que procuram identificar os efeitos do salário mínimo no mercado de trabalho), pesa sobre o pensamento econômico convencional, no Brasil, a suspeita de reacionarismo — em boa medida por causa da participação de técnicos “liberais” no regime militar. O travo é um pouco injusto pois houve muita heterodoxia econômica praticada pelos governos militares. Não à toa, até hoje os economistas heterodoxos brasileiros enxergam com bons olhos, na economia, o período Geisel. No entanto, a crise da dívida externa e seguidos planos de ajustamentos com o FMI acabaram por contaminar a maneira como enxergamos a economia tradicional. O passar do tempo, os erros da Nova Matriz Econômica e a nossa grande crise de 2014-2016, ao final de uma relativamente longa hegemonia heterodoxa na formulação da política econômica, servem talvez como oportunidade para que os mais jovens possam olhar a economia com outros olhos. De forma mais justa e menos maniqueísta.
Essa é a grande contribuição do livro que o leitor tem em mãos.
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