Por que os medicamentos estão cada vez mais caros? – Parte 2

Como percebemos o valor de bens de saúde? Qual efeito das patentes na precificação de medicamentos? Quais são os incentivos que o desenho de um sistema de saúde pode criar? Na busca de compreender a razão da disparada dos preços de entrada dos medicamentos nas últimas décadas, chegou a hora de abordarmos alguns fatores intrínsecos do mercado farmacêutico, que possivelmente causam ainda mais impacto.

Como discutido anteriormente, o custo para levar um medicamento inovador ao mercado ultrapassa facilmente os bilhões de dólares, portanto, para arcar com essa máquina há um elemento importante: as patentes. Diferente de outros mercados, onde a complexidade do produto impede a entrada de cópias, uma simples rota sintética, reproduzida por um aluno de graduação em Química, pode recriar um produto que levou uma década e alguns bilhões de dólares para chegar ao mercado, principalmente quando estamos falando de medicamentos sintéticos. 

No mercado americano, é garantido por lei um tempo de patente mínimo de 5 anos para medicamentos sintéticos e 12 anos para medicamentos biológicos; no mercado europeu são 10 anos para ambos. No entanto, a proteção patentária ainda pode ser estendida caso sejam patenteadas outras tecnologias no medicamento. Um estudo recente apontou uma média de 12,5 anos de tempo de exclusividade. Esse tempo adicional frequentemente acaba se tornando uma grande batalha judicial, com as indústrias produtoras de genéricos aflitas para lançar seus concorrentes e tomar uma parte desse lucrativo mercado.

Por isso, após a queda do período de proteção, historicamente, a fatia de mercado do medicamento referência cai vertiginosamente. Grabowski (2011) estimou que após 1 mês da chegada dos genéricos, o medicamento referência mantém apenas 37% do mercado; após 6 meses, 19%; e após 1 ano, 15%. Para medicamentos com grande mercado, que atingem vendas anuais acima de 1 bilhão de dólares, é estimado que após um ano sem exclusividade, em média 10.1 genéricos cheguem ao mercado. A concorrência no mercado farmacêutico é voraz, e como consequência natural é esperado, somente nos primeiros 5 anos sem proteção patentária, uma redução de 80% do preço médio do produto.

A patente pode parecer o santo graal do lucro farmacêutico, mas esse mercado não é tão simples quanto parece. Um estudo de 2011 desenhou um modelo para chegar ao tempo necessário para um portifólio de medicamentos biológicos, em proteção patentária, atingir o breakeven, ou seja, superar os gastos previamente realizados e gerar lucro. A estimativa final foi de entre 12.9 e 16.2 anos. Assim, tomando como base as médias de tempo de proteção patentária, é seguro afirmar que dentro do portifólio de produtos de uma empresa, muitos medicamentos inovadores não chegam a dar lucro durante o período de proteção.

Com isso, você pode perguntar: nesse cenário, como a indústria farmacêutica mantém lucros acima da média de outros setores? Bom, a resposta é simples: a receita gerada pelos medicamentos segue uma distribuição semelhante à do Princípio de Pareto, onde 20% dos medicamentos geram 70% das receitas, ou seja, é esperado que poucos medicamentos gerem uma imensidade de lucro e sustentem a pesquisa e desenvolvimento de muitos outros. É uma incontingência da vida, distribuições não são igualitárias, e, naturalmente, a indústria está sempre atrás do próximo blockbuster farmacêutico.

Portanto, analisando o cenário que descrevemos até aqui, o alto custo de desenvolvimento aliado ao monopólio temporário e a perda de mercado após o período de proteção geram incentivos para que a indústria busque maximizar o lucro durante o período de proteção. Isso, por óbvio, tem grande impacto na precificação inicial do medicamento. Mas ainda há o que destrinchar nesse cenário.

Medicamentos tem uma característica peculiar: a quantidade demandada não responde fortemente a variações no preço, o que é conhecido pela economia como uma demanda inelástica. Imagine que você depende de uma insulina para se manter vivo, situação em que uma parte relevante da população idosa se encontra, o preço ser x ou 2x não vai alterar sua disposição a adquirir esse produto. Geralmente, bens de saúde são uma necessidade não intercambiável. Se o preço da carne bovina dobra, você tende a consumir mais carne suína ou aviária, mas o mesmo não pode ser feito com o novo medicamento para câncer que pode salvar a vida de um familiar.

Por isso, estudos calcularam a Elasticidade Preço da Demanda (PED), que é a variação percentual na quantidade demandada dada uma variação de 1% no preço. Uma meta análise chegou a um PED de -0,209 para medicamentos, ou seja, um aumento de 1% no preço leva um decréscimo de demanda de 0,209%, um valor característico de uma demanda inelástica. O caráter de necessidade e a falta de alternativas tornam a demanda por medicamentos pouco responsiva a elevações de preço.

Essa característica é relevante para orçamentos individuais, mas é ainda mais impactante para orçamentos governamentais. Ao definir sua política de incorporação e precificação de medicamentos nos sistemas de saúde públicos, os governos fornecem os incentivos para que a indústria pense no preço de entrada naquele local. Um bom exemplo desse argumento pode ser observado no sistema de saúde dos Estados Unidos.

Ao contrário do que é de conhecimento comum, os EUA possuem 3 grandes sistemas de seguro de saúde públicos. O Medicare, voltado para população acima de 64 anos; o Medicare, voltado para população de baixa renda, e o sistema de saúde voltado para os militares na ativa e aposentados. Juntos, esses sistemas cobrem em torno de 40% da população. Por lei, esses seguros de saúde públicos não podem negociar o preço dos medicamentos fornecidos, ou seja, o preço que a indústria definir será o preço pago. Além disso, diversas classes terapêuticas após serem aprovadas pelo FDA imediatamente podem ser fornecidas, sem nenhuma avaliação de custo-efetividade.

Por outro lado, em grande parte do mundo, há uma negociação de preço entre indústria e agência reguladora, e para que o medicamento tenha financiamento público é necessário passar por uma avaliação farmacoeconômica, do valor terapêutico adicionado ou por comparações com o preço aprovado em uma lista de países de referência. Cada país desenha seu sistema de uma forma, porém, só os EUA mantêm quase nenhum controle governamental sobre esse processo. 

Para se compreender a distinção do modelo americano, medicamentos antineoplásicos, cujo tratamento custa centenas de milhares de dólares e promove somente poucos meses de sobrevida adicional, podem ser fornecidos no Medicare, na contramão de grande parte do mundo, que não incorpora esse tipo de medicamento no seu sistema de saúde.

Unindo esses pontos, o financiamento público é imediato, não há negociação de preço e nenhum tipo de avaliação econômica, logo, nos EUA não há nenhuma barreira entre a vontade médica e do paciente para que se financie medicamentos pouco custo-efetivos com dinheiro público. Desenhos de mercado criam os incentivos que vão guiar a indústria na precificação, e nesse caso tudo leva para que o preço, durante o período de patente, seja mantido elevado.

Ato contínuo, diversos estudos apontam que um americano paga mais pelo mesmo medicamento que praticamente qualquer outro cidadão do mundo. Kanavos (2013) conclui que quando comparado com outros países, o preço de medicamentos de marca é entre 5% e 198% mais alto. A questão é que, como grande parte dos medicamentos são aprovados primeiro nos EUA, esse preço pode funcionar como base para a precificação no resto do mundo.

Mas a intenção aqui não é criar vilões, pois por trás de toda decisão há uma justificativa. Se, por um lado, possivelmente, os atuais níveis de investimento em P&D eleva os preços de entrada em outros países, por outro lado, eles são altamente dependentes dos lucros obtidos no mercado americano. Filson (2012) estimou que se os EUA adotassem o sistema de controle de preços do resto do mundo, o número de novos medicamentos reduziria-se em 75%. De acordo com Vernon (2005), se o preço dos medicamentos nos EUA fosse equivalente ao resto do mundo, os gastos em P&D seriam impactados entre 23,4% e 32,7%. Como sociedade, talvez tenhamos que escolher entre acesso rápido ou um bom fluxo de inovações terapêuticas.

Portanto, unindo a necessidade e o alto custo da inovação com o fato de medicamentos possuírem uma demanda pouco responsiva a mudanças de preço e também com os estímulos gerados pelos monopólios temporários e pelos governos durante a incorporação, chegamos ao que muitos autores classificam como o maior motivo para os altos preços de entrada de medicamentos inovadores: durante o período protegido, as indústrias farmacêuticas possuem todos os incentivos para precificar o mais alto possível.

Os preços de entrada estão cada vez mais elevados e não dão sinais de redução. Isso é fenômeno inerente do mercado farmacêutico e não necessariamente é algo negativo, pois preços, afinal, são apenas a transmissão das informações geradas pelos incentivos que um desenho de mercado cria.

Dando um passo para trás para relembrar o que realmente importa, é preciso salientar que, hoje, temos medicamentos para alguns tipos de câncer que há meio século eram um diagnóstico de morte; estamos no limiar de tratar doenças neurológicas como o Alzheimer; já possuímos meios de curar doenças genéticas raras; em menos de um ano fomos capazes de desenvolver vacinas e medicamentos para um pandemia que matou milhões e já estamos desenhando tratamentos farmacológicos geneticamente personalizados. Concorde ou não com esse atual desenho de mercado, é preciso reconhecer que o nosso futuro farmacêutico é brilhante, temos potencial para daqui a algumas décadas fazermos de doenças que hoje são temidas serem somente lembranças de um passado distante.

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