A explicação ortodoxa da Grande Depressão

Você certamente já foi apresentado na escola à interpretação marxista da Grande Depressão, que a caracterizou como uma “crise de superprodução”. Também é provável que já tenha ouvido a explicação austríaca, bastante difundida na internet por canais libertários, que culpa uma suposta expansão exagerada do estoque monetário nos anos 20. Apesar de bastante divertidas, estas abordagens são absolutamente minoritárias dentro do grandes centros acadêmicos mundo afora, dominados pela ortodoxia neoclássica.

Neste post estaremos apresentando uma visão que, na nossa interpretação, sintetiza um pouco do consenso na economia sobre o assunto. Ela está dividida em quatro tópicos, que serão explicados a seguir:

1) Corrida bancária (modelo Diamond–Dybvig)

Depois que a bolha especulativa estourou em 1929, a economia americana entrou em recessão, mas ainda não era uma depressão. Era uma recessão como várias outras na história americana. O problema começou a ficar sério depois que se iniciou um ciclo de falência bancária, quando o Bank of United States decretou falência, em 1930. Era um dos maiores bancos comerciais do país, e isso teve um efeito enorme na confiança em relação ao sistema. O modelo de jogos Diamond–Dybvig nos mostra que um dos equilíbrios de Nash de um sistema de reserva fracionada é a corrida bancária. Resumidamente: os bancos mantém em caixa uma fração dos depósitos e emprestam o resto, mas como nem todo mundo saca ao mesmo tempo, o sistema se mantém funcionando normalmente em situações habituais. Só que se as pessoas passam a desconfiar da capacidade dos bancos de honrar com os depósitos, temos um problema.

Do ponto de vista dos jogos não cooperativos, é mais ou menos assim: se um depositante acha que outros depositantes irão sacar seu dinheiro, é racional da parte dele correr para sacar também antes que o dinheiro acabe, mesmo que ele não esteja precisando do dinheiro agora. Quando todo mundo age racionalmente assim, há uma corrida bancária, que representa um equilíbrio Nash Pareto-inferior; isto é, a ação racional e auto-interessada de todos os jogares leva a um resultado ruim para todos eles.

A forma de resolver o problema é garantir os depósitos privados nos bancos. Bastava o FED ter socorrido o Bank of United States com uma linha de crédito e anunciado publicamente que faria o mesmo com qualquer outro banco que precisasse de liquidez. Na verdade o Banco Central americano foi criado justamente para esta finalidade, mas ficou de braços cruzados por motivos políticos [1].

2) Efeito Fisher (deflação da dívida)

Com a corrida bancária, as pessoas passaram a trocar dólar por ouro para se proteger. Isso causou um encolhimento forte da base monetária, que repercutiu nos preços. A deflação acumulada entre 1929 e 1933 foi de 33%, acompanhada de um encolhimento de 35% da base monetária [2]. Como o juro real corresponde ao juro menos a inflação (efeito Fisher), uma inflação negativa (deflação) eleva a taxa de juro real, e foi isto que ocorreu.

A enorme deflação de preços, não antecipada e não prevista em contratos por cláusulas de indexação, tornou as dívidas interbancárias e com os clientes mais pesadas em termos reais, o que agravou a quebradeira do sistema. Temos aqui um ciclo vicioso: a corrida bancária provoca encolhimento da base, que provoca deflação. Isso agrava a crise no sistema financeiro, levando mais bancos à falência. As falências minam a confiança e aumentam a própria corrida bancária. Repete-se o ciclo.

3) Rigidez dos salários nominais (expectativas, contratos, problema de coordenação)

Esta queda rápida nos preços exigiria uma queda do mesmo tamanho nos salários nominais para preservar o nível de emprego, o que é totalmente inviável no curto prazo.

A relação de Philips dos salários com expectativas adaptativas nos diz que:

\dfrac{W'}{W} = \pi^* + \lambda h
(3)

Onde W’/W é a taxa de variação temporal dos salários nominais, π* as expectativas de inflação, h o hiato de produto e λ uma constante de sensibilidade do salário nominal ao desemprego.

Também sabemos, a partir das expectativas à Cagan, que:

\pi^{*'} = \beta(\pi - \pi^*)
(4)

Onde π*’ é a variação temporal da expectativas de inflação, π a inflação de fato e β uma constante de sensibilidade das expectativas.

O que estas duas fórmulas nos dizem é que o salário nominal é reajustado pelas expectativas de inflação mais um componente relacionado ao hiato de produto, e que as expectativas de inflação variam segundo o desvio da inflação atual quanto à expectativa. Isto significa que uma variação na inflação muda a derivada da expectativa de inflação, fazendo com que a expectativa de inflação se altere com atraso; e neste meio tempo em que as expectativas estão se adaptando, os salários nominais crescem a uma taxa diferente dos preços. Além disto, salários em geral são fixados em contrato, com prazo acertado em um intervalo de tempo, e mesmo assumindo que os agentes se comportam segundo as expectativas racionais, também existem problemas de coordenação a nível microeconômico que criam esta rigidez nos salários nominais [5].

Como, pelos motivos expostos, os salários são incapazes de reagir com tanta velocidade à deflação, esta queda abrupta dos preços acabou aumentando o nível de salário real (salário/custo de vida). Isto só seria possível aumentando o produto marginal do trabalho, o que corresponde no curto prazo, segundo a lei dos rendimentos marginais decrescentes, a aumentar o desemprego e reduzir o PIB. Foi o que aconteceu.

4) Reação equivocada

A reação do governo à crise foi catastrófica. A guerra tarifária no comércio internacional e as várias regulações sobre a atividade econômica prejudicaram a eficiência, funcionando como um choque de oferta negativo; o que derrubou ainda mais o nível de salário nominal compatível com o pleno emprego. Além disso, houve coisas do tipo como proibir a redução salarial e dos preços. O New Deal teve pontos importantes, como suspender os pagamentos em ouro, que encerrou o encolhimento da base monetária em 1933; criar a FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), instituição que garantia os depósitos privados nos bancos, encerrando a corrida bancária em 1934; e criar programas assistenciais para ajudar as famílias necessitadas, mitigando a miséria e restaurando a confiança. Mas o pacote de regulações microeconômicas sobre o funcionamento dos mercados de produtos parece não ter sido positivo.

Conclusão

Enfim, a grande depressão dos anos trinta segundo a visão ortodoxa foi uma combinação de erros de política econômica. Alguns por omissão, como deixar o sistema financeiro quebrar e a base encolher; outros por ação, como a guerra tarifária e as regulações exageradas do New Deal, que apesar de seus méritos em alguns pontos, parece ter tornado a recuperação mais lenta do que poderia ser.

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[1] Veja o capítulo “Anatomia da Crise” do livro “Livre para Escolher”, de Milton Friedman.

[2] “A Monetary History of the United States, 1867-1960”, Milton Friedman e Anna Schwartz.

[3] e [4] “Macroeconomia”, Mario Henrique Simonsen e Rubens Penha Cysne.

[5] Capítulo “Rational expectations, game theory and inflationary inertia” do livro “Economy as an evolving complex system”.

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