Sobre o Regime de Metas, a inflação de 2022 e perspectivas para o futuro

O post de hoje é sobre conjuntura com foco na política monetária. Falarei brevemente do desempenho brasileiro ao longo do seu Regime de Metas, da inflação de 2022 e do que espero para o futuro. Tentarei ser mais direto que o usual, usando referências gráficas para comentar a análise. Vamos aos números.

O sucesso do Regime de Metas

O ponto que quero fazer aqui é mostrar o sucesso do Regime de Metas de Inflação para o Brasil. Apesar dos inúmeros choques inflacionários ao longo dos últimos vinte anos e os diversos mandatos, o Banco Central conseguiu manter um razoável grau de ancoragem da inflação ao redor da sua meta. Para explicitar isso, farei uso de dois gráficos:

Gráfico 1: Inflação média acima da meta, porém convergente a ela.

Aqui, mostro como diferentes diretorias sob diferentes mandatos de política fiscal foram capazes de entregar uma inflação que converge para a meta, apesar de ter ficado acima dela na média. Na análise da tabela, uso um critério suavizado de inflação trimestral anualizado e sazonalmente ajustado, que me permite contar quantos trimestres a inflação ficou abaixo ou acima dos intervalos da meta ao longo de cada mandato.

Sob tal critério ingênuo, Meirelles teria sido um dos mandatos mais bem sucedidos, entregando 24 trimestres (75% de seus 32 de mandato) com a inflação dentro do intervalo da meta. Da mesma forma, Campos Neto teria sido o pior gestor até o momento, com apenas 3 de 16 trimestre com inflação na meta.

No entanto, tal critério, além de ingênuo, é de certa maneira injusto. A inflação não depende somente da condução da política monetária, e Campos Neto foi o único destes que viveu os dois maiores choques de oferta das últimas duas décadas. Todos os banqueiros centrais de mandatos mais recentes estariam mal se comparados aos seus pares do passado. Uma maneira de ajustar para isso seria normalizar a inflação de cada país a partir de uma média de pares comparáveis. Não farei isso aqui, mas deixarei esse ponto como a minha resposta para os que avaliam política monetária da maneira incorreta.

Seguindo adiante, podemos avaliar o sucesso do regime de metas também pela sua capacidade de manter as expectativas de inflação ancoradas. Vejam este ponto no segundo gráfico da análise:

Gráfico 2: As expectativas giram ao redor da meta.

O gráfico ilustra que as expectativas de inflação costumam girar em torno da meta, apesar de se desviarem dela em alguns períodos, com um viés para cima. Na ponta, no entanto, ficamos com uma certa dúvida se a inflação esperada que se desviou da meta vai voltar a ela novamente. Para analisar isso, resolvi fazer um teste estatístico simples.

Definindo o hiato de inflação como dependente de um viés e a soma de suas defasagens, podemos testar se os coeficientes estimados permitiram a convergência da inflação para a meta no futuro.

O teste consiste em analisar se o viés \beta_0 é estastisticamente indiferente de zero e, além disso, se a soma dos coeficientes \sum\beta_i permitem a convergência do hiato à meta, da seguinte maneira:

Aqui, tomo as expectativas incondicionais de ambos os lados da equação, assumindo que nosso hiato de inflação é estacionário.
Aqui, resolvo para E[\pi^{gap}].

Se a soma dos coeficientes \beta_i for inferior a um, então o hiato de inflação converge para \beta_0. Se \beta_0 for igual a zero, o hiato esperado é portanto igual a zero. Levando nosso teste para os mínimos quadrados, obtemos o seguinte resultado:

Neste teste somos incapazes de rejeitar que o coeficiente C(1) (equivalente a \beta_0) é diferente de zero, logo, não há razão para crer que a expectativa de inflação convergiria para um número maior ou menor do que a sua meta no longo prazo.

Por outro lado, identifica-se persistência bastante alta da expectativa de inflação, dado que a soma dos coeficientes centrais C(2) e C(3) é muito próxima da unidade: 1.24 – 0.33 = 0.91. Se submetido ao seus respectivos intervalos de confiança, poderia estar acima da unidade, tornando a expectativa de inflação explosiva.

Minha hipótese para essa persistência potencialmente explosiva da expectativa de inflação é que ela é fortemente enviesada por um único mandato: a gestão de Alexandre Tombini. Para testar essa hipótese, ajusto a expectativa de inflação de tal forma que o centro da meta de inflação de sua gestão foi na verdade calibrada para girar em torno do teto da meta, não o centro. Graficamente, fica assim:

Gráfico 2.1: A meta ajustada se faz importante por um período momentâneo de perda de credibilidade da política monetária na gestão Tombini.

Refazendo o teste econométrico acima com a meta ajustada, obtemos o seguinte resultado:

Nele, eliminamos o problema dos coeficientes de defasagem, que agora claramente são estatisticamente inferiores à unidade. Logo, evidencia-se que, à parte de alguns percalços no caminho, o regime de metas de inflação brasileiro é um grande sucesso, uma vez que na média de sua história permitiu que as expectativas de inflação se mantivessem ancoradas na meta.

A inflação de 2022

A inflação do ano passado foi marcada por uma considerável desinflação, que ganhou tração a partir do segundo semestre, puxada fortemente pelo subgrupo de habitação e transportes.

Por nenhuma coincidência, essa desinflação advinda de transportes foi acompanhada de uma forte correção do preço internacional dos combustíveis, sobretudo a gasolina, que, sozinha, pesa aproxidamente 5% da cesta do consumidor representativo brasileiro a nível nacional.

Podemos passar uma lupa sobre o efeito dos combustíveis na inflação final do ano computando contribuições à inflação, tal como ensino em post anterior no blog. Uma maneira interessante de representar isso é com um gráfico de cachoeira:

Percebemos que a inflação de 5.8% que encerrou 2022 foi, em grande parte, fruto de uma deflação de combustíveis e de energia elétrica (este em grande parte virtude de um período mais chuvoso). Itens que causaram a desinflação do ano. Sem estes, a inflação de 2022 teria sido mais próxima de 8.5%.

Aliada à deflação de combustíveis, tivemos também um início de correção da inflação importada, isso é, de toda uma média de produtos importados cotados em reais. Uma maneira de estimar essa inflação importada é calcular a variação trimestral de um índice de commodities multiplicado pela taxa de câmbio.

Neste exercício, escolhi o GSCI como índice de commodities, a correlação entre os dados é acima de 50%.

Considerando que os preços de alimentos no Brasil segue elevado, sem nenhuma desinflação durante 2022, apesar da queda do custo do frete (combustíveis), armazenagem (energia elétrica) e de produtos agrícolas no mercado internacional (contemplado pelos índices de commodities), é razoável esperar alguma continuação da desinflação brasileira puxada por este subgrupo ao longo de 2023, informação que usaremos de gancho para as projeções a seguir.

Projeções para 2023 em diante

Para projetar a inflação deste e dos próximos anos, farei uso de um modelo estrutural de pequeno porte, que consiste no seguinte sistema de equações. Desta vez, apenas descreverei o modelo sem entrar em muitos detalhes. Há diversas postagens anteriores em que eu explico as minúcias dos modelos estruturais que uso para essa finalidade.

Equação 1. Uma Curva IS para pequena economia aberta:

Equação 2. Uma Curva de Phillips para o núcleo de inflação, aumentada para também considerar a inflação importada:

Equação 3. Uma Regra de Taylor que dita o comportamento da política monetária:

Equação 4. Uma paridade de juros ajustada ao risco para a taxa de câmbio nominal:

Equação 5. Uma regra para a formação das expectativas de inflação:

O modelo é estimado parcialmente em GMM, deixando somente a equação da paridade de juros em OLS, já que esta contém quase que exclusivamente variáveis exógenas. Após a estimação, eu calibro o modelo usando algum julgamento, me mantendo dentro dos intervalos de confiança das estimativas.

Este é o resultado dos coeficientes estimados e minha escolha de calibragem:

Para extrair-se projeções, o modelo exige como premissa as trajetórias para as variáveis exógenas. São elas, respectivamente:

A taxa de juro pré-fixada de prazo de 5 anos, que uso como proxy para a minha estimativa de Selic neutra.
O spread dos títulos domésticos de 10 anos em dólar versus os títulos americanos de igual maturidade, servindo o papel de nossa medida de risco fiscal.
A taxa de política monetária americana, encerrando seu ciclo de aperto monetário no intervalo de 4.5–4.75% ao ano, e a sua respectiva inflação, gradualmente convergindo para a meta a partir de 2024.
Minha premissa para o preco de commodities e o hiato internacional (um filtro HP do índice ajustado pela inflação) é de gradual reversão à média observada entre 1990–2022.

Além disso, como apoio para projeção de crescimento econômico, uso o hiato do produto do BCB para computar o produto potencial implícito por ele. De posse de uma série de produto potencial, calibro um crescimento lentamente decrescente, de 2% a 0.5% ao ano até 2035.

Escolhidas as trajetórias exógenas do nosso modelo, computo finalmente as projeções condicionais esperadas para as variáveis endógenas, conforme abaixo:

O modelo prevê uma abertura adicional do hiato do produto, fruto da posição restritiva da política monetária e do encerramento do ciclo de commodities. Para que o modelo represente de maneira mais consistente a realidade, eu calibro choques positivos na inflação para representar o eventual retorno (agora postergado) do ICMS dos combustíveis e da energia elétrica ao longo do ano. Modelo também um choque negativo na margem dentro do hiato do produto, para dar conta dos dados recentes de confiança nos negócios e do consumidor (FGV), que apresentam queda e/ou estagnação na margem.

Destes números, abstraio o impacto da política fiscal deste ano em um primeiro momento, uma vez que guardo certo receio de que o seu impacto será relativamente baixo em comparação com impacto defasado das expansões fiscais em 2020 e 2022. Se o leitor não concordar, basta assumir alguma margem altista para crescimento e inflação nos meus números, que são: 5.3% IPCA fechamento 2023, 1.3% crescimento do PIB, início do ciclo de cortes de Selic a partir de T2 2023, encerrando o ano com uma taxa de 12.25%.

Para o médio prazo, o modelo prevê uma inflação encerrando o ano próxima da meta em 2024 (3.2%) e abaixo dela a partir de 2025 (2.1%), em grande parte puxada por um impacto persistentemente negativo da inflação importada. Isso permitiria que a Selic já possa estacionar no seu nível natural de 8% ao ano, e que o crescimento experimente uma recuperação cíclica pouco acima de 2% ao ano até 2026.

Considerações finais

Neste post, tratei da inflação em três grandes dimensões: passado, presente e futuro.

Explico porque há fundamento para se continuar confiando no Regime de Metas, mostrando que a ancoragem das expectativas ainda é forte nos dados, apesar de alguns tropeços na gestão da política monetária.

Em seguida, exploro como os grandes movimentos da inflação no presente foram mais fruto de fatores externos do que domésticos, fatores esses que aceleraram a inflação no passado e hoje apontam para a direção contrária, contribuindo para uma desinflação persistente no curto prazo, que provavelmente vai surpreender os mercados para baixo.

Ao tratar da inflação futura, mostro como é possível obter uma projeção “de mercado” (em linha com as expectativas do Boletim Focus), sem sequer me alongar sobre a política fiscal. Alguns podem pensar que isso é simplificar a história, mas eu contrargumentaria que hoje essa política fiscal é apenas ruído. Seria de um enorme malabarismo intelectual da minha parte estimar o impacto que a política fiscal teria hoje na economia real dado os indícios de elevado crowding out que ela já apresenta, bastando olhar com mais atenção para movimentos recentes dos juros de prazo mais longo.

Por hoje é isso. Obrigado por chegar até aqui e bons estudos a todos.

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Postado originalmente aqui.

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