Inconsistência temporal – um exemplo

Quando tratamos de políticas macroeconômicas governamentais, os modelos econômicos supõem que o governo tem a capacidade de se comprometer com uma política (commitment). Assim, ao anunciar a política (e.g., imposto de renda), os agentes tomam suas decisões com base nela, e o governo enfim a implementa. Entretanto, se o Estado puder alterar a política uma vez que as decisões forem tomadas, ele tem incentivo a fazê-lo. Essa é a inconsistência temporal da política econômica. Tal termo vem de Kydland e Prescott (1977), que demonstraram rigorosamente a otimalidade de regras frente à discricionariedade na condução da política econômica. Faremos uma exposição simplificada deste artigo.

Para ocorrer tal fenômeno, não é necessário conflito de interesses, sendo que uma política pode ser sujeita a inconsistência temporal mesmo que o objetivo seja maximizar a utilidade dos agentes. A inconsistência ocorre quando o governo não pode se comprometer com a política anunciada, e com isso, os agentes racionais entendem os incentivos do governo e isso afeta suas decisões, desdobrando-se, assim, numa limitação na capacidade do governo de alcançar o objetivo, que poderia estar melhor se pudesse se comprometer com uma política: abrindo mão da discricionariedade. Por isso os economistas tanto enfatizam o papel de regras claras de instituições críveis e comprometidas, por exemplo em um Banco Central autônomo.

Para compreender esse fenômeno e como um sistemas de regras claras e críveis significa uma melhora de Pareto em termos de bem-estar com uma dada política, se faz necessário explicitar de forma simplificada um modelo. Faremos uso da teoria dos jogos, modelando a situação que o policymaker enfrenta como um jogo sequencial entre governo e indivíduos.

As decisões são:

  1. O governo promete uma política;
  2. Indivíduos fazem suas escolhas;
  3. O governo decide qual política implementar.

Considere o seguinte exemplo: temos uma economia que dura dois períodos. Existe um indivíduo com dotação de um bem e só se importa com consumo, c , no 2º período. Sua utilidade tem a seguinte forma funcional: u(c) = c. Ele pode armazenar o bem e/ou investir em capital com retorno x = 2.

Em contrapartida, o governo pode taxar o capital no segundo período. Ele decide a alíquota \tau. Suas opções são \tau \in \{0.1, 1\}, sendo que o seu objetivo é alcançar a maior receita possível tendo como payoff \tau \times k, em que k é escolhido pelo indivíduo.

O retorno para o indivíduo de investir em capital é x(1- \tau ) = 2(1- \tau ) \in \{0, 1.8\}. Se o indivíduo espera \tau = 1, prefere armazenar o bem. Nesse caso, a receita do governo é zero. Todavia, se espera \tau = 0.1, prefere investir em capital. Ou seja, a decisão do indivíduo é condicionada ao que se espera da taxa imposta pelo policymaker.

Imagine que o governo possa se comprometer com uma política (commitment). Ele promete \tau e cumpre sempre e o indivíduo escolhe k já sabendo qual será \tau. Nesse caso, o governo se move primeiro: a promessa é de fato uma escolha de \tau. Assim, se \tau = 1, o indivíduo não investe: k = 0 e, portanto, a receita do governo é zero. Se \tau = 0.1, o indivíduo investe: k = 1 e a receita do governo é \tau \times k = 0.1 \times 2 \times 1 = 0.2.

Tomando que o governo escolhe \tau = 0.1, então, como vimos, o indivíduo escolhe k = 1, sendo este resultado (com commitment) conhecido na literatura de jogos como um Equilíbrio de Nash Perfeito em Subjogos (ENPS). Graficamente, podemos representar tal jogo da seguinte maneira:

Entretanto, suponha agora a possibilidade de discricionariedade por parte do governo, e, portanto, a possibilidade de inconsistência temporal. Neste caso, o governo não pode se comprometer, mas promete o mesmo \tau = 0.1 que seria ótimo com commitment. Desta vez, dada a nova possibilidade, seria ótimo cumprir a promessa? O governo conseguiria alcançar a mesma receita de 0.2?

A resposta é: não! Isso se deve ao fato de que, uma vez que existe discricionariedade e não commitment, a promessa governamental se torna irrelevante para o indivíduo. Uma vez que sem comprometimento, não vale nada. O indivíduo sabe que o governo vai escolher o imposto que maximize sua receita, então, nesse jogo, o indivíduo que se move primeiro, escolhendo k. Depois de k escolhido, o governo determina \tau

Sendo assim temos o seguinte cenário:

Os agentes tomarão sua decisão com base em indução retroativa: sabe-se que o governo quer a maior receita possível, então, enfrentado o cenário de cobrar a taxa por 1 e conseguir 2 de payoff ou taxar por 0.1 e receber 0.2 de payoff, sua melhor resposta é a taxa maior. Agora, o governo fica indiferente entre taxar 0.1 ou 1 quando o indivíduo não investe, uma vez que seu payoff é justamente zero nos dois casos. Tendo em vista a melhor resposta do governo, os indivíduos investem k = 0!

A indução retroativa pode ser representada graficamente da seguinte maneira:

Portanto, se k = 1, a escolha ótima do governo é taxar tudo: \tau = 1. Como dito, a promessa de imposto baixo \tau = 0.1 não é crível, e por conseguinte a estratégia ótima do indivíduo é não investir. Então, em equilíbrio, o indivíduo escolhe k = 0 e a receita do governo é zero. Logo, o governo fica em pior situação, assim como o indivíduo também fica pior, pois seu consumo cai de 1.8 para 1.

Se o governo pudesse, preferiria se comprometer com imposto baixo e garantir uma receita positiva, entretanto, sem commitment, a escolha ótima do governo é taxar todo o capital uma vez que o investimento já foi feito. Daí deriva-se a inconsistência temporal: a promessa ótima antes de o indivíduo decidir k deixa de ser a ação ótima depois que k foi escolhido. Assim, o indivíduo antecipa isso, não investe, e a receita é zero.

E se esse jogo fosse repetido? Imagine que o governo vai estar no poder por T períodos. O governo gostaria de confiscar todo o capital hoje e prometer imposto baixo no futuro. Mas, no período seguinte, os incentivos são os mesmos, que é confiscar de novo e prometer imposto baixo. Consequentemente, o único equilíbrio envolve k = 0 e receita 0 sempre.

Vale a nota que neste exemplo o governo e os indivíduos têm objetivos conflitantes, uma vez que o governo se importa apenas com a arrecadação e os indivíduos com o consumo dos bens. Isso não é necessário para que a política esteja sujeita ao problema de inconsistência temporal, a exemplo do artigo de Chari (1988). Como dito anteriormente, tais problemas de inconsistência surgem quando as decisões atuais das pessoas dependem das expectativas de políticas futuras e suas escolhas atuais afetam conjuntos de oportunidades futuras. Uma vez que suas decisões são tomadas quando chega a data futura, o governo geralmente têm um incentivo para renegar suas promessas.

A capacidade do governo de se comprometer mitiga o problema da inconsistência temporal. Assim, é preciso trocar política discricionária por regras claras, como por exemplo no caso de regras de política fiscal: Lei de Responsabilidade Fiscal, teto de gastos, meta de superávit primário, etc. Quanto maior a confiança dos agentes nas regras, mais críveis são as promessas do governo. Já no caso da política monetária, uma forma de commitment é a independência do Banco Central, pois se o BC for independente do governo de turno, pode ser mais crível seu objetivo de buscar a estabilidade de preços. Outra alternativa são as metas de inflação ou qualquer regra de política monetária. 

Em conclusão, a política do governo é mais eficiente quanto mais crível forem suas promessas de comprometimento com suas regras auto-estabelecidas. Há um grande consenso na teoria macroeconômica (Mankiw, 1990) em relação à preferência do uso de regras na condução da política econômica em relação à discricionariedade. A exemplo do já citado Kydland & Prescott (1977), temos outros artigos falando sobre o tema, como Calvo (1978), Fischer (1980), Barro & Gordon (1983).

Espero que tenham gostado e até a próxima.

Referências

Barro, Robert J., and David B. Gordon. “A positive theory of monetary policy in a natural rate model.” Journal of political economy 91.4 (1983): 589-610.

Calvo, Guillermo A. “On the time consistency of optimal policy in a monetary economy.” Econometrica: Journal of the Econometric Society (1978): 1411-1428.

Chari, Varadarajan V. “Time consistency and optimal policy design.” Federal Reserve Bank of Minneapolis. Quarterly Review-Federal Reserve Bank of Minneapolis 12.4 (1988): 17.

Fischer, Stanley. “Dynamic inconsistency, cooperation and the benevolent dissembling government.” Journal of economic dynamics and control 2 (1980): 93-107.

Kydland, Finn E., and Edward C. Prescott. “Rules rather than discretion: The inconsistency of optimal plans.” Journal of political economy 85.3 (1977): 473-491.

Mankiw, N. Gregory. “A quick refresher course in macroeconomics.” (1990).

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