Resenha do livro “Erros do Passado, Soluções para o Futuro”, de Affonso Celso Pastore

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As ideias reunidas neste livro constituem, da perspectiva do público não especializado, não menos que uma indispensável contribuição ao debate econômico. Àqueles que buscam uma fonte segura em cima da qual possam debruçar os seus estudos, Pastore, de todas as referências de que se tem notícia neste país, está entre as mais qualificadas vozes no que tange aos assuntos de que trata o livro. Neste país de bons economistas, não foram muitos os que organizaram trabalhos tão expressivos no âmbito das ciências sociais quanto este excelente profissional a quem me foi conferida a honra de escrever-lhe uma justa e merecida resenha a respeito de sua obra mais recente.

Assim como em “Inflação e Crises – o papel da moeda”, quando Affonso explicou as causas pelas quais estivemos, por tanto tempo, sujeitos a tão sérias crises de naturezas monetária e cambial, a não menos inteligível que profunda maneira por intermédio da qual o economista faz o diagnóstico das doenças que ainda melindram o sistema econômico não só viabiliza que todos os públicos tenham acesso ao tema, como incentiva o seu estudo. Intercalando textos e equações, o autor, embora valha-se largamente do uso de dados estatísticos, em momento algum deixa-se levar pela tentação retórica do cherry picking.

Aliás, como bem observou Lisboa quando este foi convidado a escrever o prefácio do livro, de todas as suas contribuições para o debate econômico, talvez nenhuma tenha sido de tão grande valor quanto a importação de instrumentos até então próprios das ciências estatísticas para os domínios da Economia. Até então, como observara Andrew Lang (1844-1912), os economistas utilizavam a estatística do mesmo jeito que os bêbados usam os postes: mais para apoiar que para iluminar. A despeito dos obstáculos diante dos quais o progresso vê-se confrontado, o uso adequado do ferramental estatístico é mais uma das muitas demonstrações de força da técnica frente ao negacionismo que permeia nossas vidas.

Além de chamar a atenção por sua profundidade, Pastore também impressiona pelo repertório. Não interessa o assunto, Celso parece sempre muito à vontade para escrever sobre o que quiser. Não existe melhor exemplo disso que o capítulo que inicia o livro. Embora sempre lembrado por opiniões contramajoritárias no âmbito da macroeconomia, a sua primeira grande participação acadêmica tem relação com uma política de caráter estritamente setorial. Nos anos setenta, era (ainda mais) comum que ao nosso baixo grau de desenvolvimento fosse atribuída uma suposta vocação agrícola. É curioso como o país que, na opinião de muitas pessoas, foi “keynesiano antes de Keynes” tenha demorado tanto tempo para assimilar conceitos tão básicos quanto aqueles que, cem anos antes, haviam sido enunciados por David Ricardo. Em defesa da indústria, dizia-se que o setor primário não reagia aos preços externos – como se o que plantamos estivesse, de alguma maneira, imune às leis que governam a economia de mercado. Em trabalho tão rico quanto as suas implicações, Pastore, com somente trinta anos de idade, demoliu um dos principais pilares sob os quais assentava-se a teoria do desenvolvimento puxado pela atividade industrial. Apoiando-se em Theodore Schultz, o autor defendeu que os bens agrícolas, assim como qualquer commodity, obedece às regras de mercado. Todavia, segundo consta do trabalho que o autor desenvolveu na época, os bens primários submetiam-se a um equilíbrio ineficiente que, em favor dos baixos custos, gerava pouco retorno aos produtores.

Os segundo e terceiro capítulos são os meus favoritos. Após revisitar seu trabalho de doutorado, o autor aborda uma questão que até hoje não parece clara: por que o Real deu certo? Durante muitos anos, essa pergunta esteve encoberta (ou mesmo ofuscada) por outras cujo valor, se é que existe, restringe-se ao “mundo político”. Em respeito ao livro e às respostas, no plural, que este oferece, é de bom tom reservar a seus leitores algumas das conclusões a que o autor nos conduz. Ainda que envolto de incertezas quanto aos motivos que fizeram do Real um dos planos de estabilização mais bem sucedidos da história, o sentimento de que a agenda que o acompanha encerrou um longo ciclo de desenvolvimento com foco na atuação estatal produziu arestas cujo tempo, até hoje, não foi capaz de aparar. Pelo que se observa da privilegiada posição de quem não assistiu de perto à supressão de privilégios quando da readequação do papel do Estado, os ressentimentos e as agruras das minorias que anos atrás sentiram-se ofendidas pela abertura comercial continuam latentes. “O progresso sempre fez vítimas” – diz Luigi Zingales – “mas é de suas lágrimas que nasce o desenvolvimento”, acrescento eu. O Plano Real, em benefício do combate à hiperinflação, reduziu a ação estatal a dimensões até então inimagináveis. Para um país que, por quase um século, andou em círculos no que toca às políticas de proteção contra competição externa, estranho teria sido se dos seus beneficiários não tivesse sido observada resistência aos ataques contra o que sustentavam ser seus “direitos”.

Agora, voltemos à pergunta que nos trouxe até aqui: por que o Real funcionou e todos os outros planos que o antecederam fizeram água? Em que pese eventuais interpretações em contrário, os termos de troca que separavam a inflação da “moeda sã” tem que ver, antes de mais nada, com o conflito entre maiorias silenciosas contra minorias que, anos a fio, se organizaram em torno de uma agenda conducente à deterioração do poder aquisitivo do meio de pagamento. Do ponto de vista estritamente político, o programa de estabilização teve diante de si o nada trivial desafio de enfrentar estas minorias barulhentas em favor de multidões emudecidas pela sua desorganização. Sob a lente da economia, por seu turno, a equipe precisava inovar em relação às que vieram antes no que concerne, sobretudo, ao diagnóstico da doença. Depois de ter sido alvo de muitas críticas — boa parte das quais desconectadas da realidade —, as políticas adotadas no curso do plano terminaram redimidas pelos resultados extraordinários que apresentou.

O terceiro capítulo retoma algumas das questões de que o autor já tratou outras vezes — como no excelente “De Belíndia ao Real“, em justa homenagem a Bacha — mas a que é sempre bom retornar. Entre as disciplinas a que mais dou valor, é certo, está a mudança das fontes de crescimento a que fomos submetidos pela reunião de forças que, ao se coligarem, deram lugar a flutuações cambiais que, há anos, vinham represadas pelo Acordo de Bretton Woods. E tudo em um período que, por demais colado da crise do petróleo, ainda hoje alimenta dúvidas sobre as causas pelas quais o governo foi induzido a uma mudança de política econômica tão drástica quanto as consequências que dela foram desencadeadas sobre o balanço de pagamentos.

As quarta e quinta partes comunicam-se uma com a outra. De enfoques diferentes, ambas tratam do processo de endividamento a que este país esteve sujeito por ocasião, segundo observa o autor, de maus diagnósticos referentes à elasticidade da poupança externa. O capítulo 4 dá mais protagonismo às causas pelas quais o governo se endividou. Durante os anos setenta, toda ação do poder público parecia estar, acima de tudo, governada por um único objetivo: impulsionar a produção doméstica. Nada há de errado em querer crescer. Pelo contrário, estranho seria se o governo visasse a estagnação. Ao juízo do autor, o problema estava ligado, como hoje já se sabe, aos colaterais do rápido crescimento da produção vis-a-vis nossa declinante taxa de crescimento da produtividade — que, àquela altura, começava a sinalizar o esgotamento do velho modelo de substituição de importações. A esse respeito, o capítulo 5 é taxativo: às implicações da “crise da dívida externa” e todos os dissabores a que estivemos submetidos, erramos repetidas vezes o diagnóstico da doença que, pouco a pouco, nos matava. Na época, não se sabe ao certo por quê, as autoridades estatais enxergavam na indexação a raiz de todos os males. Segundo essa visão hegemônica, os habituais mecanismos de indexação introduzidos pelo PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) transportavam a inflação do passado para o presente. Em parte, como observa Pastore, fazia sentido o que se dizia a esse propósito. Contudo, este seria apenas um dos ingredientes que empurraram o Brasil em direção à “inércia inflacionária”.

Os dois capítulos que encerram o livro dão conta de alguns dos dramas que, apesar de muito antigos, ainda assombram os policy makers. O primeiro, e o mais óbvio, é aquele que Celso Pastore denomina ser um “eterno problema fiscal”. De fato, ressalvado o ciclo virtuoso a que se observou da introdução do “tripé” aos primeiros impulsos desenvolvimentistas sinalizados pelo PT, os ataques ao orçamento estão muito mais para constante que para exceção na história brasileira. De tempos para cá, só o que mudou, como observa Franco, é quem paga a diferença entre os desejos expressos sob a forma de obrigações pelo lado das despesas públicas e a nem sempre tão animadora disposição social ao pagamento de tributos. Antes, por meio da senhoriagem, quem pagava a conta era o mais pobre; hoje, pela dívida pública, os excessos sociais oneram os mais jovens.

Dando contornos finais ao livro, Celso Pastore visita um tema que, apesar de esvaziado pelas reformas liberais de 1999, continua caro àqueles que, por ideologia ou interesse, enxergam na política cambial uma ferramenta para gerar crescimento. É natural que, na ausência de alternativas ditas imediatas a uma solução que levanta suspeitas, o público sinta-se compelido a assumir o risco. O autor, que por onde passa deixa claro não enxergar tonalidades ideológicas em assunto de número, embora não rejeite a hipótese na condição de “second best”, opõe-se à subvalorização da moeda. Em evidente alinhamento à teoria econômica tradicional, sustenta que assim como a moeda é neutra no longo prazo, o tempo ajusta a taxa de câmbio à PPP.

Affonso Pastore, nascido na cidade de São Paulo, formado na FEA-USP em 1961 e, anos mais tarde, doutor pela mesma, não aparece nos veículos de imprensa tão regularmente quanto alguns dos seus colegas. Longe disso, Celso reserva-se o direito de permanecer distante dos holofotes. Talvez por essa razão não sejam muitos os que sabem que este brasileiro, por muito pouco, não derivou a “Regra de Taylor” três anos antes do gênio que a consagrou; que enquanto todo o Brasil curvou-se ao Cruzado, Pastore, desde o princípio, manteve-se extremamente crítico ao programa e a todos os que o sucederam, com exceção ao Real, a cujos fundamentos direcionou elogios antes de ficar claro que o plano iria “dar certo”. É da pena deste autor que saiu mais esse excelente livro, que congrega todos os elementos necessários para que sua leitura se torne um imperativo aos que desejam entender melhor este país tão propenso ao progresso, mas tão resistente à inovação.

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