Os economistas clássicos e neoclássicos (1870-1930) achavam que uma expansão monetária afetava apenas as variáveis nominais (preços, salários), e não reais (consumo, investimento, juro, etc). A explicação para isto partia de uma abordagem de equilíbrio geral walrasiana. Na economia clássica, os indivíduos vinham ao mercado com certas dotações de bens e serviços, que podiam ser vendidas a outros indivíduos ou a empresas. As empresas transformariam bens e serviços em outros bens e serviços, para vendê-los a outras empresas ou a indivíduos.
Supondo que houvesse n bens e serviços na economia, cujos preços fossem p1, p2,…, pn, a oferta do i-ésimo bem seria uma função Z(p1, p2,…, pn) desses preços. A demanda desse mesmo bem seria outra função D(p1, p2,…pn) desses mesmos preços. Essas funções resultariam do comportamento de agentes econômicos competitivos (isto é, que tomariam como dados os preços de mercado), as empresas tratando de maximizar seus lucros, os indivíduos procurando maximizar a sua utilidade, dadas as suas restrições orçamentárias. Os indivíduos na economia clássica, racionais, não rasgam nem estocam dinheiro, e como tal aplicam toda a sua renda na compra de bens, serviços ou títulos, retendo moeda apenas para fins transacionais. Ocorre que a renda total da sociedade é exatamente igual ao valor das quantidades ofertadas no mercado, garantindo o equilíbrio global entre demanda e oferta.
A formalização deste modelo leva a um sistema de n equações com n-1 incógnitas. Quem lembra da disciplina de sistemas de equações algébricas do ensino médio deve perceber que, em um arranjo como este, uma das equações será redundante, tornando impossível obter as soluções do sistema. Posto isto, Walras concluiu que o seu sistema de equações não era capaz de determinar os n preços p1, p2, …, pn. O que o sistema podia fazer era apenas determinar a estrutura de preços relativos. Para determinar os preços absolutos, era preciso eleger alguma mercadoria j como unidade de conta, tomando-se pj = 1. A moeda, na análise walrasiana, poderia ser escolhida naturalmente como a unidade de conta, definindo o nível de preço a partir dos quais os preços relativos se equilibrariam. Daí surge a ideia de neutralidade da moeda, que afeta apenas variáveis nominais.
Vamos dar um exemplo pra ficar ficar mais claro.
a) O governo expande a base monetária;
b) Como os indivíduos retém moeda apenas para fins transacionais, a moeda excedente será destinada ao mercado de bens e ao mercado de títulos;
c) O desequilíbrio no mercado de títulos leva a uma queda momentânea na taxa de juro;
d) O desequilíbrio no mercado de bens leva a um aumento de preço das mercadorias;
e) O aumento no preço das mercadorias leva a uma queda no salário real (W/P), que fica abaixo da produtividade marginal do trabalho, levando a um desequilíbrio no mercado de trabalho;
f) O desequilíbrio no mercado de trabalho se resolve com um aumento dos salários;
g) O aumento dos salários eleva ainda mais o preço das mercadorias, aumentando a demanda por moeda para fins transacionais e resolvendo o desequilíbrio no mercado de bens;
h) O aumento da demanda moeda para fins transacionais diminui a demanda por moeda no mercado de títulos, levando a um equilíbrio no mercado de títulos;
i) No final do processo, a expansão afetou apenas as variáveis nominais (preços e salários) e não reais.
Foi assim que a economia clássica tratou o equilíbrio agregativo de curto prazo até a Grande Depressão. A revolução que inaugurou a macroeconomia na década de 1930 consistiu em duas percepções extremamente geniais de Keynes:
j) Caso a oferta de moeda caísse, o equilíbrio no mercado de trabalho, tratado no item f, exigiria uma queda de curto prazo nos salários nominais. Se os salários nominais forem rígidos para cair, o equilíbrio no mercado de trabalho ficaria obstruído, e por consequência nos outros dois.
k) Como o juro afeta o preço dos títulos pré-fixados na direção oposta, numa situação de juros baixo é racional reter moeda com fins especulativos, esperando que o juro suba e o preço dos títulos caia. Ao incluir na demanda por moeda um componente especulativo, de fins não transacionais, o equilíbrio walrasiano fica ainda mais comprometido no curto prazo.
O item j se refere à teoria salarial keynesiana. Keynes supôs que os trabalhadores se importam muito mais com sua renda nominal do que real (salário/custo de vida). Para Keynes, um trabalhador estaria muito menos propenso a fazer greve, reduzir a produtividade ou pedir demissão devido a uma queda no salário real via aumento no custo de vida que afete todos os outros trabalhadores na mesma proporção do que por uma redução de seu salário nominal isoladamente. Keynes chamava este fenômeno de “ilusão monetária”: no curto prazo, os trabalhadores se deixam enganar, confundindo o salário em termos monetários com o que ele de fato pode comprar. Deste modo, haveria rigidez nominal, mas não real. O governo poderia equilibrar oferta e demanda no mercado de trabalho, tratada no item f, aumentando a oferta de moeda.
Perceba que a hipótese central da macroeconomia keynesiana reside na ideia de que os trabalhadores sejam estúpidos. Se eles fossem perfeitamente racionais, como supunham os clássicos, qualquer variação na oferta de moeda levaria automaticamente a uma variação nos salários nominais, aumentando o nível de preço sem qualquer impacto sobre juro e produto. Os empresários e agentes do mercado financeiro, entretanto, não são estúpidos:
l) Para Keynes, a decisão de investir também passa pela comparação entre a taxa interna de retorno do negócio em questão e a taxa de juro, implicando que um juro mais baixo teoricamente estimula investimentos. Acontece que o investimento estaria muito mais ligado às expectativas futuras quanto à atividade econômica e ao juro de longo prazo, sendo muito pouco elástico à taxa de juro corrente, de curto prazo. Daí vem a preferência keynesiana por política fiscal, e não monetária.
m) Para Keynes, os detentores de títulos não olham apenas para taxa de juro, mas também para o retorno esperado pela variação no preço dos títulos dada uma variação na taxa de juro. Eles são capazes de especular.
O paradigma keynesiano do “trabalhador estúpido” dominou a macroeconomia mundial por muito tempo; até que, na década de 1960, as expectativas entram de vez para os modelos. Como demonstraram Friedman e Phelps, os trabalhadores não eram tão estúpidos assim, e podiam aprender com o passado. Na medida em que a inflação se acelera, as expectativas de inflação se adaptam à inflação passada, fazendo com que os contratos salariais passem a incorporar um componente relacionadoi à expectativa de inflação. Com isto, são necessárias inflações cada vez maiores para manter a economia funcionando acima do seu potencial.
Na década de 1970, a presunção de estupidez é enterrada de vez em uma nova revolução que aconteceu na macroeconomia, iniciada por Robert Lucas e cia: os indivíduos possuem expectativas racionais. Eles não só aprendem com o passado, mas também criam suas perspectivas quanto ao futuro. A macroeconomia das expectativas racionais baseia-se numa hipótese central: os agentes econômicos conhecem um modelo macroeconômico que descreve o comportamento das variáveis endógenas em função das variáveis exógenas. Posto isto, projetam o comportamento das primeiras a partir das equações do modelo e do desempenho esperado das segundas, isto é, das regras esperadas de política econômica.
Hoje, novos-clássicos e novos-keynesianos – as duas principais vertentes da macroeconomia mainstream – incorporam em seus modelos a hipótese das expectativas racionais. Para os novos-keynesianos, a rigidez nominal de curto prazo dos salários apregoada por Keynes existe, mas não porque os trabalhadores sejam estúpidos e se enganam com a “ilusão monetária”. A justificativa passa por pontos muito mais sofisticados, como a existência de contratos, custos de menu e falhas de coordenação.
E o pessoal da Teoria Austríaca dos Ciclos, o que acha?
n) Os trabalhadores são estúpidos. Eles reagem com defasagem às compressões de salário real criadas pela expansão monetária sem haver nenhuma explicação convincente a nível microeconômico para tal, como fazem os novos-keynesianos. Com isso, a moeda consegue afetar durante um período significativo de tempo variáveis reais da economia, como o investimento e o juro.
o) Os empresários são estúpidos. Ao se defrontar com um juro artificialmente baixo, o empresário austríaco cria expectativas estáticas quanto a este cenário, e decide investir como se o juro nunca mais fosse subir. Quando o juro sobe, o investimento intensivo em capital feito pelo empresário estúpido se torna insustentável, e quebra. Num mundo de expectativas racionais, empresários estúpidos como este não teriam vez, sendo naturalmente eliminados pelo mercado ao longo do tempo. Mas para os austríacos a estupidez é geral e persistente.
No fim das contas, a TACE se finca na seguinte hipótese:
p) Trabalhadores e empresários são incrivelmente estúpidos, e se deixam enganar facilmente pela política econômica do governo. A presunção de estupidez extrapola inclusive a dos keynesianos clássicos. Não há expectativas racionais, não há modelos de equilíbrio geral sofisticados. Há apenas a presunção de estupidez generalizada dos agentes econômicos.
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