O Estado é necessário? Uma análise usando Teoria dos Jogos

Por que necessitamos do Estado? Às vezes, somos tão condicionados a pensar em um arranjo institucional específico que a mera possibilidade de reforma é vista com desdém ou como socialmente problemática. Em que pese os riscos a que se submetem por pensar diferentemente dos demais, há quem defenda que o sistema vigente é apenas um equilíbrio em um jogo de equilíbrios múltiplos.

Segundo essa hipótese, o equilíbrio atual é estável, mas não é único. O cenário em que vivemos é apenas um equilíbrio second best. Em cima disso, existe um cenário em que há uma melhoria de Pareto para todos os membros envolvidos – ou, ao menos, é nisso que acreditam os anarquistas.

Pois bem, vamos analisar essa questão da necessidade do estado usando o ferramental da Teoria dos Jogos.

A necessidade do Estado

Para o não-anarquista, o surgimento do Estado é fundamentado em um Dilema do Prisioneiro (algo que já explicamos nesse texto). Imaginemos dois indivíduos em estado de natureza. Ambos são dotados de recursos conquistados a duras penas. Ao se depararem um com o outro, um cálculo racional é feito: atacar ou não atacar.

Se os dois indivíduos atacarem, ambos saem prejudicados – digamos que ambos perdem 3 unidades de utilidade (os números são arbitrários). Se um atacar e outro não atacar, o que ataca ganha 1 unidade de utilidade, enquanto o atacado perde 4 unidades de utilidade. E, finalmente, no cenário em que ambos não atacam, não há ganho nem perda de utilidade. Portanto, ficamos com a seguinte matriz de payoff:

Qual vai ser o equilíbrio deste jogo? Naturalmente, por ser um dilema dos prisioneiros, há um equilíbrio que existe, é único e estável, como provou John Nash (1950). Mas qual seria? Racionalmente, o primeiro indivíduo toma uma decisão estratégica com base na melhor resposta do outro. Sendo assim, se o segundo atacar, o primeiro deve escolher entre atacar ou perder quatro unidades de utilidade. Se o segundo não atacar, escolhe entre ganhar quatro unidades de utilidade ou ficar sem atacar. Em ambas as situações, qualquer que seja a decisão do segundo, o ataque é sempre mais vantajoso que a paz. Olhando a matriz, chegamos a este equilíbrio:

Ou seja, chegamos no equilíbrio da guerra de todos contra todos sem sequer postular o homo homini lupus hobbesiano; bastou-nos o bom e velho homo economicus [a respeito do qual recomendo o seguinte texto e Peñaloza (2018)]. Aqui, geralmente a discussão acaba porque para nosso não-anarquista essa justificativa basta. No entanto, ainda resta um problema: essa não é a única maneira de modelar a situação.

A resposta dos anarquistas

Tomando os mesmos pressupostos do não-anarquista e da teoria dos jogos, o anarquista vê a situação do estado de natureza como um jogo Hawk-Dove e não um Dilema dos Prisioneiros. Para entender a natureza deste jogo, é preciso sair do mundo da economia e entrar no mundo da biologia evolucionária. Como inicia o célebre artigo Maynard Smith & Price (1973), que introduz para a literatura biológica a teoria dos jogos evolucionária e o conceito de Evolutionary Stable Strategy (ESS, ou “Estratégia Evolucionária Estável” em português):

Num combate típico entre dois animais machos da mesma espécie, o vencedor ganha acasalamento, direitos de domínio, território desejável ou outras vantagens que tenderão a transmitir seu gene às gerações futuras em frequências mais altas que os genes do perdedor. Consequentemente, pode-se esperar que a seleção natural desenvolvesse armas e estilos de luta maximamente eficazes para uma estratégia de “guerra total” de batalhas entre machos até a morte. Mas, em vez disso, os conflitos intraespecíficos são geralmente do tipo “guerra limitada”, envolvendo armas ineficientes ou táticas ritualizadas que raramente causam ferimentos graves a qualquer um dos competidores.

Note, se o dilema dos prisioneiros fosse o melhor modelo para descrever o conflito entre animais, teríamos um dado resultado (“guerra total”), mas o que vemos é outro (“guerra limitada”), onde a paz é mais proeminente que o conflito. Mas por quê?

Para responder essa pergunta, Maynard Smith e Price desenvolveram um modelo computacional em que consideravam o conflito dentro de espécies que possuíam armas suficientemente capazes de causar lesões graves em outros membros dessa espécie. Depois, consideraram conflitos em espécies cuja lesão beira a impossibilidade.

Primeiramente, considerando as espécies com armas capazes de gerar lesões (por exemplo, as presas de uma cobra). Há três possíveis movimentos, que são retrair (R)  ou usar táticas de conflito. As táticas de conflitos são a “convencional” (C), que é improvável de causar lesões sérias, ou a “perigosa” (P), que é provável de causar uma lesão ao oponente seriamente se forem empregadas por muito tempo. Se o concorrente emprega a tática P, então há uma probabilidade fixa que o oponente vai ser lesionado. O oponente que está seriamente lesionado irá sempre retrair. Se este se retrair, então o conflito chegou ao fim e o que permaneceu é o vencedor.

Podemos representar o conflito entre dois agentes A e B da seguinte maneira:

  • Movimentos de A: CCCCCCCCCCCPCCCCCCCP
  • Movimentos de B: CCCCCCCCCCCPCCCCCCCR

Um pouco de nomenclatura: se o concorrente aplica a tática P em seu primeiro movimento ou o faz em resposta a C, isso é chamado de provocação. Uma provocação feita após o primeiro movimento “escala” o conflito do nível C para P. Se o concorrente joga P em resposta a uma provocação, diz-se que este retalia. Ou seja, no décimo segundo movimento, A provoca e é retaliado por B. No entanto, B se retrai na segunda provocação de A, no vigésimo movimento. Ao final do conflito, os participantes recebem seus payoffs, que são tomados como medidas da contribuição que o combate fez para o sucesso reprodutivo do indivíduo. Elas tomam como fator: as vantagens de vencer em comparação com as desvantagens de perder, a desvantagem de ser gravemente ferido e a desvantagem de perder tempo e energia na disputa.

Uma estratégia para um competidor é um conjunto de regras que atribui probabilidades às jogadas C, P e R em função do que já aconteceu no decorrer da disputa atual. Uma estratégia evolutivamente estável (ESS) é uma estratégia cuja adoção majoritária encerra as possibilidades mutantes das quais podem derivar um fitness reprodutivo.

Fitness reprodutivo é o número médio de descendentes deixados por um indivíduo em relação ao número de descendentes deixados por um membro médio da população [Ridley (2019, p. 74)]. Tendo isso em vista, os autores programaram cinco estratégias possíveis:

  1. “Rato” (Mouse): Nunca joga P. Se recebe P, recua imediatamente antes que haja qualquer possibilidade de sofrer uma lesão grave. Caso contrário, joga C até que a disputa tenha durado um número pré-determinado de lances.
  2. “Falcão” (Hawk): Sempre joga P. Continua a luta até que ele seja gravemente ferido ou seu oponente recue.
  3. “Bully”: Joga P se fizer o primeiro movimento. Joga P em resposta a P. Joga C em resposta a P. Recua se o oponente jogar P uma segunda vez.
  4. “Retaliador” (Retaliator): Joga C se fizer o primeiro movimento. Se o oponente jogar C, joga C (mas joga R se a disputa durar um número pré-determinado de lances). Se o oponente joga P, com alta probabilidade retalia jogando P.
  5. “Retaliador de provocações” (Prober-Retaliator): Se fizer o primeiro lance, ou após o oponente ter jogado C, com alta probabilidade joga C, e com baixa probabilidade joga P (mas joga R se a disputa durou um número pré-determinado de lances). Depois de fazer uma provocação, reverte para C se o oponente retaliar, mas “leva vantagem” continuando a jogar P se o oponente jogar C. Após receber a provocação, com alta probabilidade joga P.

Para saber mais das probabilidades usadas e dos payoffs, recomendo a leitura do artigo original. O que importa para nós é a matriz de payoffs de cada conflito, que é a seguinte:

Para saber se uma estratégia é evolutivamente estável em relação às outras, analisamos a matriz de payoff da simulação. Por exemplo, para Falcão ser um ESS, é necessário que esta seja a estratégia mais lucrativa em uma população inteiramente de falcões. Em tal população, um determinado animal de qualquer tipo quase sempre terá um falcão como oponente. Portanto, os retornos da coluna (2) se aplicam. Estes mostram que (1) e (3) são ambos mais bem sucedidos do que (2). Portanto, a seleção natural fará com que os alelos para o comportamento de (1) e (3) aumentem em frequência, e os alelos que dão o comportamento de (2) diminuam. Assim, Falcão não é um ESS.

Na tabela abaixo isso está melhor representado. Reiterando: o payoff de (2) numa população de (2) é menor que (1) e (3), logo não é uma ESS. (Uma dada estratégia i é uma ESS se o seu payoff em uma população de i for maior ou igual que qualquer payoff de estratégia j, sendo i \neq j.

Examinando as outras colunas, vemos que (1) não é uma ESS, pois (2), (3) e (5) têm payoff médios maiores na população constituída somente de ratos. Tampouco (3) é uma ESS. Entretanto, (4) é uma ESS, uma vez que não há outra estratégia que dê resultados melhores. Na última coluna, fica claro que (5) é quase uma ESS. Ou seja, ainda que a conclusão do artigo indique que, nesse tipo de jogo, a estratégia estável seja o uso raro de armas perigosas, os participantes devem responder a um ataque com outro ataque.

Vale notar que há uma versão mais refinada deste mesmo jogo, sendo esse refinamento o que nos referimos ao jogo Hawk-Dove. Todavia o paper de Maynard Smith e Price discutem uma versão mais adequada aos nossos propósitos.

Retornando ao nosso debate sobre a justificação do Estado, o economista Bryan Caplan diz o seguinte: “Em termos de teoria dos jogos, o anarquista pensa que a situação de Hobbes é um jogo de Hawk-Dove e não um Dilema dos Prisioneiros. (No Dilema dos Prisioneiros, guerra/não cooperação seria uma estratégia estritamente dominante; em um jogo Hawk-Dove, normalmente há um equilíbrio de estratégias mistas em que cooperação/paz é a norma, mas uma pequena porcentagem de jogadores continua a jogar guerra/não-cooperação). As firmas policiais auto-interessadas fariam de bom grado contratos de arbitragem de longo prazo entre si para evitar derramamento de sangue mutuamente destrutivo.” (Citação retirada do item 11.a deste link).

Ainda há outra questão a se considerar. Mesmo que adotássemos o Dilema dos Prisioneiros como o modelo vigente, ainda assim ele poderia levar a uma situação de cooperação. Como? Basta considerar um fator óbvio: o tempo. É irrealista pensar que os indivíduos nunca mais vão se encontrar, uma vez que estamos considerando um cenário pré-histórico em que a espécie humana tipicamente vivia em bandos. Logo, é natural que esses indivíduos tenham múltiplos encontros. Isso pode ser formalizado como um Dilema dos Prisioneiros iterado, ou seja, um Dilema dos Prisioneiros com múltiplas rodadas.

A biologia evolutiva já vem apontando a possibilidade de altruísmo nas espécies mesmo desconsiderando argumentos de seleção de grupo, desde Trivers (1971) com a noção de altruísmo recíproco. Basicamente seria um comportamento pelo qual um organismo age de uma maneira que reduz temporariamente seu fitness enquanto aumenta o fitness de outro organismo, com a expectativa de que o outro organismo agirá de maneira semelhante posteriormente. A evolução da cooperação foi plenamente formalizada com o clássico paper de Axelrod & Hamilton (1981), que, em um cenário de Dilema dos Prisioneiros, foi montada uma simulação na qual vários concorrentes participam desse jogo com múltiplas rodadas. Foram programadas diversas estratégias, mas a que sobreviveu e eliminou todas as demais foi a que ficou conhecida como “tit-for-tat” (ou “olho por olho” em tradução livre).

Segundo Axelrod & Hamilton (1981, p. 1393):  “[…] o resultado do torneio foi que a pontuação média mais alta foi alcançada pela mais simples de todas as estratégias  submetidas: tit-for-tat. Essa estratégia é simplesmente cooperar no primeiro movimento e fazer o que o outro jogador fez no lance anterior. Assim, o tit-for-tat é uma estratégia de cooperação baseada na reciprocidade.

Axelrod estendeu sua análise em seu livro “The Evolution of Cooperation” [Axelrod (1984)]. Para saber mais sobre esses estudos de cooperação, recomendo o seguinte vídeo didático. Para saber mais sobre as condições de cooperação em teoria dos jogos, recomendo Fiani (2016). Além disso, para uma análise econômica do altruísmo, recomendo Becker (1976).

A tréplica dos não-anarquistas

Mesmo com todas essas evidências para cooperação e conflito limitado, existem evidências de violência em sociedades primitivas antes da formação do Estado, como mostra Pinker (2011), que defende a tese de que o Estado foi o pivô na diminuição das taxas de violência pré-histórica. Há evidências de um exagero na parte de Pinker, como mostra Ferguson (2013). Além disso, diz Sapolsky (2017, p. 617) que: “a maioria dos especialistas discordam convincentemente [dos dados e interpretações do Pinker], sugerindo que os dados foram cherry-picked (i.e, escolhidos a dedo), caçadores-horticultores erroneamente rotulados como caçadores-coletores, e novos caçadores-coletores sedentários desalinhados agrupados inadequadamente com os nômades tradicionais“. 

Portanto, a visão pinkeriana da violência com raízes profundas talvez não seja o melhor modelo para nossa espécie, embora há versões mais sofisticadas, como a de Wrangham (2019), que mostram não só a infinda capacidade de violência humana, mas também sua profunda capacidade de altruísmo. Mas este modelo não é nem de longe o consenso. Sapolsky (2017), por exemplo, questiona essa visão, argumentando que a enorme flexibilidade comportamental humana junto com sua plasticidade social pintam uma visão do homem mais rousseauneano que hobbesiano.

Conclusão

Obviamente os argumentos pró-Estado e anti-Estado não se esgotam aqui. Porém, cabe elucidar que às vezes a discussão em questão é sobre qual modelo é mais realista ou mais útil para descrever os problemas de coordenação que os indivíduos enfrentam em uma sociedade. Alguns acham que é um jogo de equilíbrio único, outros de equilíbrios múltiplos. Alguns pensam que sem Estado enfrentamos um Dilema dos Prisioneiros, já outros pensam que o jogo em questão é um do tipo Hawk-Dove.

Enfim, para saber mais sobre a literatura anarquista, recomendo novamente esse texto, assim como Huemer (2013), Chatier & Schoelandt (2020) e Brennan & Freiman (2022).

Referências

Axelrod, Robert. “The evolution of cooperation.” New York: basic books (1984).

Axelrod, Robert, and William D. Hamilton. “The evolution of cooperation.” science 211.4489 (1981): 1390-1396.

Becker, Gary S. “Altruism, egoism, and genetic fitness: Economics and sociobiology.” Journal of economic Literature 14.3 (1976): 817-826.

Brennan, Jason, and Christopher Freiman. “Why not anarchism?.” Politics, Philosophy & Economics (2022): 1470594X221098098.

Chartier, Gary, and Chad Van Schoelandt, eds. The Routledge Handbook of Anarchy and Anarchist Thought. Routledge, 2020.

Ferguson, R. Brian. “Pinker’s list: Exaggerating prehistoric war mortality.” (2013).

Fiani, Ronaldo. Teoria dos jogos. Elsevier Brasil, 2006.

Huemer, Michael. “The problem of political authority.” The Problem of Political Authority. Palgrave MacMillan, London, 2013. 3-19.

Nash Jr, John F. “Equilibrium points in n-person games.” Proceedings of the national academy of sciences 36.1 (1950): 48-49.

Peñaloza, Rodrigo. “Some Thoughts On Homo Oeconomicus.” (2018).

Pinker, Steven. The better angels of our nature: The decline of violence in history and its causes. Penguin uk, 2011.

Ridley, Mark. Evolução. Artmed Editora, 2009.

Sapolsky, Robert M. Behave: The biology of humans at our best and worst. Penguin, 2017.

Smith, J. M. P. G. R., and George R. Price. “The logic of animal conflict.” Nature 246.5427 (1973): 15-18.

Trivers, Robert L. “The evolution of reciprocal altruism.” The Quarterly review of biology 46.1 (1971): 35-57.

Wrangham, Richard. The goodness paradox: how evolution made us both more and less violent. Profile Books, 2019.

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