1. A reforma tributária não tem como escopo a redução da carga tributária. Isso porque o volume da tributação não está relacionado ao sistema tributário em si, mas sim ao nível de gastos públicos. Se queremos uma carga tributária menor, temos que reduzir o gasto público de forma duradoura e sustentável. Se isso for feito, não é preciso uma reforma do sistema tributário para reduzir a carga tributária; basta reduzir as alíquotas dos tributos existentes hoje. O objetivo de uma reforma tributária é outro: modificar o sistema tributário para endereçar questões de eficiência e de equidade, mantida a arrecadação.
2. A complexidade do sistema tributário brasileiro decorre, principalmente, das inúmeras regras cuja aplicação exige classificação. Essas regras vão desde a Constituição, que define as competências tributárias dos entes federados (União, Estados, Municípios e DF), até os atos normativos expedidos pelos fiscos. A aquisição de uma linha de montagem fabril é a compra de um bem para integração ao ativo imobilizado ou é a contratação de um serviço de engenharia? O óleo lubrificante adquirido por uma transportadora para seus veículos é um insumo ou é material de uso e consumo? A venda presencial de um notebook por uma loja localizada em um estado para um adquirente domiciliado em outro estado, para fins de ICMS, é uma operação interna ou interestadual? O licenciamento de uso de um software de prateleira é a venda de uma mercadoria digital, uma prestação de serviço de comunicação, um serviço de outra natureza ou nenhuma das três coisas? Em todos os casos, o tratamento tributário muda, dependendo da classificação. O problema é ainda mais grave porque as legislações de cada ente da Federação apresentam classificações incompatíveis entre si. Não raro, para cumprir a legislação tributária de um ente, o contribuinte precisa, necessariamente, descumprir a de outro.
3. A guerra fiscal do ICMS é causada pela sistemática de tributação das operações interestaduais. Em tais operações, parte do imposto é devida ao estado de origem (12%, 7% ou 4%, dependendo do caso) e o sistema de compensação do ICMS permite que o imposto cobrado nesse estado possa ser abatido do imposto devido ao estado de destino na operação subsequente da cadeia produtiva. A guerra fiscal é o resultado do oportunismo dos estados com essa sistemática. Como o crédito fiscal do ICMS é apropriado com base no valor destacado em nota fiscal, os estados, ao invés de concederem isenções, concedem créditos outorgados ou vantagens financeiras relacionadas ao valor do ICMS a ser cobrado (os chamados benefícios financeiros-fiscais) – e o fazem sem autorização do CONFAZ, o que contraria a Constituição. O que ocorre é que a empresa no estado de origem acaba não arcando com o ônus do imposto, mas ainda assim destaca em nota fiscal o valor supostamente cobrado, fazendo com que esse montante seja apropriado como crédito fiscal no estado de destino da mercadoria. Isso faz com que seja vantajoso para as empresas organizarem geograficamente suas atividades de formas ineficientes, gerando perdas significativas de produtividade.
4. A PEC 45/2019, elaborada pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) – que substitui o ICMS, o ISS, o IPI e o PIS/COFINS por um imposto do tipo IVA (imposto sobre valor adicionado), com base de incidência ampla, alíquota única, regime de créditos financeiros e cobrado no destino – é a mais bem estruturada entre as propostas de reforma tributária que estão em debate (Um modelo ideal de tributação do consumo é apresentado por De La Feria e Krever aqui). Essa proposta endereça de forma satisfatória grande parte dos problemas descritos nos itens 2 e 3. Já a PEC 110/2019, proposta pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly, resolve alguns desses problemas, mas também cria outros. Faz parte dessa proposta a instituição de um imposto seletivo federal monofásico, que incide sobre diversos bens que estão no meio das cadeias produtivas (como energia elétrica, comunicação e combustíveis) e que não se comunica com o IVA geral para fins de compensação. Tal tributo geraria mais cumulatividade do que aquela gerada pelo ISS no sistema atual. Em relação à proposta de tributação de transações financeiras, nosso site já escreveu especificamente sobre os graves problemas desse tipo de imposto.
5. O Simples Nacional e regime de Lucro Presumido do Imposto de Renda não são formas progressivas de tributação. Esse é um raciocínio equivocado, que decorre de uma confusão entre o tamanho da empresa e o nível de riqueza do sócio. Empresas pequenas não possuem sócios mais pobres do que empresas grandes. É comum que empresas grandes – sujeitas ao regime do Lucro Real – possuam entre seus maiores acionistas fundos de pensão de trabalhadores; e que empresas pequenas – sujeitas ao Simples Nacional ou ao regime de Lucro Presumido – possuam sócios que estão no extremo topo da pirâmide de renda. Esses regimes favorecidos de tributação para empresas pequenas são notavelmente regressivos, pois permitem que pessoas de renda muito elevada paguem muito pouco tributo.
6. Além dos problemas de justiça fiscal descritos acima, o Simples Nacional e o Lucro Presumido geram diversos problemas de eficiência. Como tais regimes são, em regra, bastante vantajosos quando comparados com a tributação regular dos lucros, sua existência incentiva empresas produtivas a não expandirem seus negócios e permanecerem pequenas e, pari passu, possibilita a sobrevivência de empresas pouco produtivas, gerando má alocação de capital e trabalho. Além disso, tais regimes favorecidos para empresas pequenas criam brechas para planejamentos tributários baseados na segmentação de um único negócio em diversas pessoas jurídicas para fugir do regime de Lucro Real. O Simples Nacional também é bastante vantajoso quando comparado à tributação dos salários, produzindo incentivos para que as pessoas dissimulem relações de emprego para evadir a tributação: o empregado se torna um empresário individual enquadrado no Simples e celebra um contrato de prestação de serviço com o empregador (trata-se do fenômeno da “pejotização”).
7. A redução ou isenção da tributação de bens essenciais ou de bens consumidos por pessoas de renda mais baixa não é uma maneira eficaz de endereçar a questão da desigualdade. Isso porque tais bens também estão na cesta de consumo de pessoas de renda elevada, fazendo com que o benefício fiscal não seja focalizado nos mais pobres. É muito mais eficaz conceder a isenção tributária com base na pessoa, e não com base no produto. Ao invés de reduzir a tributação da cesta básica, por exemplo, podemos tributar todos os bens com a mesma alíquota (o que tem o mérito de evitar os problemas de classificação descritos no item 2) e devolver aos mais pobres o imposto que foi cobrado de suas aquisições. No Brasil, podemos utilizar o CADUNICO para balizar a devolução, que pode ser operacionalizada nos moldes do programa Nota Fiscal Paulista. Outra possibilidade é, ao invés de fazer essa devolução tributária, destinar a receita correspondente para ampliar bons programas sociais, como o Bolsa Família.
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