Tudo o que você precisa saber sobre o PIB

1. Introdução

Um dos conceitos em economia mais mal entendidos é o PIB. Com uma definição aparentemente simples, esse conceito não deveria gerar problemas em sua interpretação. Mas gera.

O PIB é um daqueles conceitos que, por ser aparentemente simples, mas na verdade ter por trás muitas nuances, pode dar uma falsa sensação de entendimento às pessoas. Criticar o PIB parece ser muito fácil. Isso faz com que muitas críticas erradas sejam feitas a essa métrica.

Pois bem, é com o intuito de responder essas críticas que escrevo esse texto. Serei um advogado do PIB. Contudo, não deixarei de fazer críticas a essa métrica – mas críticas cabíveis e contextualizadas. Ao final do texto, espero que você, caro leitor, tenha uma visão mais clara do que seja essa métrica e saiba se alguma crítica que você venha a porventura ler é cabível ou não.

2. O que é o PIB?

PIB é a produção interna bruta de um determinado lugar durante um determinado período de tempo. Geralmente o lugar considerado é um país e o tempo considerado é um ano. O que é produção interna bruta? Vamos analisar cada palavra dessa expressão para chegar a um entendimento cristalino de PIB.

1. Produção: tudo aquilo que é produzido de bens e serviços finais em uma economia medido por uma unidade monetária. Se a economia fosse composta apenas de transações de bens, a produção seria toda a produção física de bens finais multiplicada pelo valor monetário de cada bem final.

O que é um bem final? É um bem que é comprado com a finalidade de ser consumido, e não com a finalidade de ser utilizado como insumo ou meio para produção de outros bens. Portanto, na definição de produção exclui-se os bens intermediários, ou seja, aqueles bens utilizados como insumos para produção de outros bens ou como meios para o processo produtivo (máquinas, etc.). Pois veja: se os bens intermediários fossem contabilizados na produção, incorreria-se na contagem de um bem intermediário várias vezes, tanto mais quanto mais atrás na cadeia de produção esse bem estivesse. Se uma chapa de silício é utilizada na produção da placa de vídeo de um computador, faz sentido contabilizá-la na produção apenas quando o bem final (o computador) é vendido para o consumidor, e não contabilizá-la em cada etapa da produção que essa chapa entra.

2. Produção Interna: é a produção de uma região, excluindo-se tudo aquilo que foi produzido em outro lugar mas consumido naquela região.

3. Produção Interna Bruta: é a produção de uma região que não desconta a depreciação do capital.

Existem três formas de mensurar o PIB. Essas três formas estão sumarizadas na imagem abaixo (proveniente de outro texto do nosso site). Como não é nosso intuito nesse texto nos aprofundar muito nas minúcias da contabilidade do PIB (nosso objetivo aqui é falar sobre o conceito de PIB), então vamos deixar apenas a tabela abaixo, que resume bem as três formas de contabilizá-lo.

3. A fórmula do PIB é uma identidade – nada mais que isso!

A primeira forma de contabilizar o PIB colocada na tabela acima é pela ótica da demanda. Essa ótica nos rende uma fórmula famosa dentro da economia, provavelmente conhecida por muitos que não são da área da economia propriamente dita. A fórmula é a seguinte:

PIB = C + I + G + NX

Onde C é o consumo total, I é a formação bruta de capital fixo (investimento), G representa os gastos do governo e NX as exportações líquidas (ou seja, exportações – importações).

Antes de prosseguirmos, é importa que fique claro em nossa mente o conceito de identidade matemática. O que é isso? Segundo a Wikipédia: “Identidade pode referir-se a uma igualdade que permanece verdadeira quaisquer que sejam os valores das variáveis que nela apareçam, ao contrário de uma equação, que pode ser verdadeira apenas sob condições mais particulares“.

Pois bem, o insight principal que devemos ter aqui é que a equação do PIB (sob a ótica da demanda) é uma identidade. Isso quer dizer que o lado esquerdo da equação sempre será igual o lado direito, independentemente dos valores que “plugamos” no lado direito. A fórmula do PIB não diz nada sobre relações de causalidade.

Relações de causalidade não existem na matemática. As únicas relações possíveis de ser estabelecidas dentro do mundo abstrato são relações de necessidade (“se x, então y“) e suficiência (“se x, e somente se x, então y“). Ou seja, é impossível, mediante uma única equação matemática (no caso, a fórmula do PIB), estabelecer alguma relação de causalidade. É por isso que estratégias de identificação causal na econometria ocupam um espaço tão proeminente (leia mais sobre o assunto aqui, aqui e aqui).

Portanto, dado que o PIB representa apenas uma identidade contábil, não é correto, sem nenhuma teoria que explique relações causais nas variáveis macroeconômicas, dizer que, por exemplo, um aumento nos gastos do governo (G) causa um aumento no PIB, uma vez que é bem possível que um aumente em G cause uma queda em alguma outra variável do lado direito, de modo que o PIB permaneça inalterado. Por exemplo, pode ser que o aumento em G diminua a poupança agregada da economia, de modo a aumentar a taxa de juros e diminuir os investimentos (I) na mesma magnitude do aumento em G, deixando assim o PIB inalterado.

4. A variação no PIB é determinada pela oferta ou pela demanda?

Entender essa discussão é essencial para enterdermos no que a maioria dos críticos erram quando eles falam sobre o PIB. Portanto, caro leitor, é preciso que você tenha um entendimento cristalino dessa parte.

Como vamos falar da variação do PIB ao longo do tempo, precisamos então definir o conceito de PIB real, que nada mais é do que o PIB medido pelo nível de preços de um tempo específico. Para calcular o PIB real, precisamos multiplicar o PIB nominal observado em certo tempo por um fator igual à razão dos níveis de preços nos tempos diferentes. (Leia aqui caso queira entender melhor o cálculo do PIB real).

A partir de agora, para facilitar minha vida, sempre quando eu escrever “PIB” estarei me referindo ao PIB real.

Pois bem, uma suposição bem razoável de fazermos é que se o nível de preços da economia aumenta, então, tudo mais constante, o consumo agregado diminui. A intuição econômica por trás disso é simples: se as pessoas têm a mesma renda nominal para gastar com produtos mais caros, então elas vão comprar uma menor quantidade de produtos ao todo (ou seja, apesar de sua renda nominal não ter variado, sua renda real variou). Podemos fazer essa mesma suposição, sem qualquer perda de generalidade (apenas adicionando certos canais pelos quais a variação no nível de preços impacta os componentes da demanda), para cada um dos demais componentes, que são as variáveis do lado direito da equação.

Mas, ora, se, tudo mais sendo constante, o consumo cai, então o PIB também precisa cair. É isso que a equação do PIB pela ótica da demanda, colocada acima, nos diz. Isso significa que há uma relação inversa entre PIB e nível de preços (que representaremos simplesmente por “P”). O gráfico abaixo esboça essa relação. “D” representa a curva de demanda agregada da economia.

(Vamos desconsiderar, nesse texto, todos os problemas relativos à curva de demanda agregada, como o fato de que não é possível que ela seja construída a partir da suposição de otimização de agentes econômicos – resultado proveniente do Teorema Debreu-Sonnenschein-Mantel).

Perceba que, com isso, não podemos dizer que a queda no consumo agregado da economia gera uma queda no PIB. Isso porque, para a construção dessa curva, estamos nos valendo da hipótese de que tudo mais é constante (a famosa hipótese ceteris paribus). Essa hipótese pode não valer no mundo real. Pode ser que a queda no consumo gerada pelo aumento nos preços necessariamente seja acompanhada por um aumento no investimento, por exemplo. Aliás, é justamente esse o grande ponto em disputa: variações em um componente da demanda agregada são acompanhadas (ainda que de forma defasada) por variações proporcionais e inversas em outros componentes? Se sim, então não é possível dizer que queda no consumo, por exemplo, gera queda no produto – mas se não, aí sim dá para concluir isso. Falarei mais sobre isso adiante.

Vamos falar agora sobre a curva de oferta agregada. É aqui que vem o ponto fulcral da discussão. Ao longo da história do pensamento econômico existiram duas tradições principais na literatura sobre crescimento econômico. Uma tradição diz, grosso modo, que a curva de oferta agregada é vertical no longo prazo, ou seja, a capacidade de produção da economia não teria nenhuma relação com o nível de preços; outra tradição prega que ela é positivamente inclinada no longo prazo, ou seja, a capacidade de produção da economia é maior quanto maior for o nível de preços.

A tradição que prega a relação positiva entre nível de preços e PIB real de longo prazo é a tradição pós-keynesiana. As teorias por trás dessa ideia estão sumarizadas, por exemplo, no livro de 1957 de Nicholas Kaldor chamado “A Model of Economic Growth“, ou no livro de 2002 de A. P. Thirwall chamado “The Nature of Economic Growth“.

Porém esta não é a tradição dominante na economia. A tradição dominante, mainstream, diz que a curva de oferta agregada de longo prazo depende de fatores que não sofrem nenhuma influência do nível de preços, tais como a oferta de trabalho e a quantidade de capital. O ramo mais influente dessa tradição, chamado de Escola Novo-Keynesiana, até acredita que a curva de oferta tenha, no curto prazo, um formato de inclinação positiva, ou seja, que a quantidade total de bens e serviços ofertados seja positivamente influenciada pelo nível de preços, devido a imperfeições no mercado – mas essa relação se desfaz com o tempo. Isso está representado no gráfico abaixo, que mostra a curva de oferta de longo prazo (“O_{LP}“) e de curto prazo (“O_{CP}“).

A pergunta que resta, então, é: qual das duas tradições está certa?

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(Toda a subseção a seguir é mais uma curiosidade do que qualquer outra coisa. Se o leitor está acostumado com a interpretação de curvas e seus deslocamentos, pode pular essa subseção).

Seria extremamente simples resolver esse debate se observássemos nos dados apenas variações no nível de preços ou apenas variáveis no PIB real. Se observásemos apenas variações no nível de preços ao longo do tempo, poderíamos dizer com confiança que a curva de oferta é vertical. Já se observássemos apenas variações no produto real, poderíamos dizer que a curva de oferta é horizontal. Mas, como a maioria deve saber, ocorre as duas coisas ao longo do tempo. Os gráficos abaixo mostram isso.

Variação nos preços. Fonte.
Variação no produto. Fonte.

Não considerando mais nada, apenas dados de nível de preços e produto, nenhuma das visões poderia ser refutada. Isso porque os pontos de um plano cartesiano PIB x P podem ser ligados tanto por curvas de oferta inclinadas quanto por curvas de oferta inelásticas. As figuras abaixo ilustram isso.

Gráfico 1: Interpretação da variação nos dados compatível com a visão pós-keynesiana.
Gráfico 2: Interpretação da variação nos dados compatível com a visão mainstream.

Suponha que tenhamos as observações A, B e C, que formam os pares cartesianos (PIB1, P1), (PIB2, P2) e (PIB3, P3), respectivamente. Esse conjunto de dados é compatível com a visão pós-keynesiana, uma vez que tal conjunto pode ser acomodado no modelo com a simples suposição de que a variação nesses dados foi causada por deslocamentos na curva de demanda agregada (no gráfico 1, deslocamentos que geram as curvas D1, D2 e D3). Dessa forma, o produto total da economia, ou a renda total, seria determinado por variações nos componentes da demanda. É por isso que essa tradição foca tanto na ideia de que o estímulo à demanda agregada gera crescimento econômico.

Porém, veja que esse mesmo conjunto de dados (A, B e C) também é compatível com a visão mainstream, segundo a qual deslocamentos na curva de demanda gerariam apenas variações no nível de preços. A única coisa que importaria para o crescimento seria o deslocamento da curva de oferta agregada, e esse deslocamento seria dado por fatores como melhoria tecnológica, institucional, aumento do capital e outras coisas geralmente consideradas como exógenas à demanda (veja aqui para ler mais sobre isso). No gráfico 2, esses deslocamentos são representados pelas curvas O1, O2 e O3.

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Essa minha divagação acima serviu para sedimentar na mente do leitor uma compreensão mais apurada de tradições rivais da macroeconomia – apesar de que a segunda visão, mainstream, é muito mais difundida que a primeira (pelo menos fora do Brasil). O ponto principal que eu gostaria que o leitor entendesse é que, considerando que os dados sempre podem ser encaixados de tal forma a serem compatíveis com qualquer uma das duas visões, então a refutação de uma das duas teorias na macroeconomia é extremamente difícil, senão impossível.

Talvez a melhor forma de testar as duas teorias rivais é através do cálculo do multiplicador de gastos do governo no longo prazo. Essa é uma medida do quanto o produto de uma economia variou dada certa variação nos gastos governamentais. Se tal multiplicador fosse próximo a zero no longo prazo, isso seria uma evidência em favor da visão mainstream e contra a visão pós-keynesiana; já se fosse acima de zero, isso favoreceria a visão pós-keynesiana.

A grande questão que se coloca então é: como medir o multiplicador? O grande desafio de um bom medidor é que ele precisa captar uma variação exógena dos gastos do governo, para que variações em outros componentes da demanda que ocorrem de maneira simultânea não afetem o resultado da medida do impacto dos gastos governamentais sobre o produto. Só que fazer isso é extremamente difícil. As formas mais usadas para se calcular o multiplicador de um choque fiscal podem ser divididas em dois tipos: estimações empíricas e estimações baseadas em modelos. As mais comuns do primeiro tipo são as estimações que usam o método SVAR, já as mais comuns do segundo tipo usam DSGE. De qualquer forma, ambos os tipos têm vantagens e desvantagens. (Para uma revisão de literatura sobre os métodos de cálculo de multiplicadores fiscais, sugiro esse artigo).

Milhares de artigos já foram publicados tentando responder a pergunta de qual é o multiplicador fiscal dos países. Portanto, seria incorrer em cherry picking pegar apenas um estudo que analisa o tema para extrairmos daí uma conclusão. Precisamos de estudos que agreguem outros estudos, ou seja, de metanálises. Provavelmente uma das melhores metanálises nesse assunto foi a feita por Rusnak no paper Why Do Government Spending Multipliers Differ? A Meta-Analysis“, que incluiu 27 estudos, 20 países e 135 estimativas.

A tabela 6 do trabalho de Rusnak, que está colocada abaixo, apresenta um conjunto de estimadores do multiplicador fiscal considerando várias classificações de estimadores, e também corrigindo pelo potencial viés de publicação originário do fato de que os estudos tendem a publicar somente resultados estatisticamente significantes. O cálculo do multiplicador fazendo um controle das características dos países dá origem à segunda seção de linhas da tabela abaixo, indicando algo já dito aqui anteriormente no nosso site: diferentes características dos países dão origem a diferentes resultados de multiplicadores. A terceira seção de linhas controla pelas características dos dados, ao passo que a quarta controla pelos métodos de estimação dos multiplicadores dos estudos considerados – como se pode ver, há uma variedade imensa de métodos (BVAR, Blanchard-Perotti – que deu origem ao método SVAR comentado anteriormente -, estudo de evento, etc.).

Vamos focar aqui na coluna “5 Years“, que indica a magnitude do multiplicador em um período de 5 anos após um choque exógeno fiscal, ou seja, indica aquilo que poderíamos chamar de multiplicador fiscal de longo prazo. A significância de 99% em “Debt to GDP ratio” e “Interest rate” mostra um padrão claro: quanto maiores a dívida do governo (em relação ao PIB) e a taxa de juros do país, menor é a magnitude do multiplicador, o que corrobora o discurso daqueles economistas com uma visão mais “fiscalista”.

Olhando para o multiplicador de longo prazo discriminado pelas várias formas de cálculo, tem-se que somente 3 dos 6 estimadores presentes são estatisticamente significantes a um nível de confiança de 95% ou mais (o que indica isso são os dois ou três asteriscos ao lado do número). O que isso quer dizer? Não muita coisa, para ser sincero. A resposta a essa questão fica ainda mais dúbia quando consideramos que o único estimador que é estatisticamente significantes a um nível de confiança de 99% apresenta sinal negativo, ao passo que os dois com nível de confiança de 95% apresentam sinal positivo.

If anything, esses resultados corroboram a visão mainstream em detrimento da visão pós-keynesiana: no longo prazo, o impacto dos gastos do governo sobre a economia é nulo. Na ausência de evidências fortes sobre o impacto positivo, podemos considerar que o impacto seja nulo. As poucas evidências que há a favor da visão pós-keynesiana (a saber, que há dois estimadores com sinal positivo a 95% de confiança) são rapidamente compensadas pela evidência contrária (a existência de um estimador com sinal negativo a 99% de confiança).

Portanto, a partir de agora iremos assumir que a visão mainstream esteja correta e a visão pós-keynesiana esteja errada.

5. Não confunda variação do PIB no longo prazo com variação do PIB no curto prazo

Antes de adentrarmos às críticas ao PIB e minhas respectivas respostas a elas, é necessário fazer ainda mais uma observação. A maioria dos macroeconomistas, quando estão discutindo conjuntura, dão a entender que a variação na demanda agregada gera variação no PIB. Não é raro escutarmos de economistas nos jornais coisas como “o PIB vai crescer 2% esse ano, puxado pelo consumo, que vai crescer 3%“.

Primeiramente, isso não quer dizer que necessariamente esses economistas, quando dizem isso, estão dizendo que o PIB maior será causado pelo consumo maior. É possível que eles estejam apenas descrevendo a decomposição do crescimento do PIB: 1,2 pontos percentuais (p.p) desse crescimento vem do componente do consumo; e outros 0,8 p.p vêm do investimento, por exemplo. Mas eles não estão, necessariamente, dizendo que, caso o consumo explicasse apenas 1,1 p.p do crescimento do PIB ao invés de 1,2, então o PIB cresceria 0,1 p.p menos. Isso porque, se o consumo explicasse 1,1 p.p, talvez o investimento explicaria 0,9 p.p, de modo que o crescimento no PIB ainda seria os mesmos 2%.

Dito isso, geralmente quando os economistas de conjuntura dizem que 1,2 pontos percentuais do crescimento do PIB vieram do consumo, eles realmente querem dizer que se o consumo não tivesse aumentado, o PIB não teria aumentado – ou seja, o aumento no consumo causou aumento no PIB. Isso porque, quando estamos tratando de variações curtas no tempo, como 1 ou 2 anos, estamos tratando da macroeconomia de curto prazo, e essa macroeconomia aceita, majoritariamente, a ideia de que a curva de oferta agregada seja positivamente inclinada no curto prazo, como mostrado anteriormente. Ou seja, essa macroeconomia aceita que, no curto prazo, a demanda importa para determinar o produto.

Mas curto prazo à parte, o que realmente importa é o longo prazo. É o crescimento de longo prazo que determina o nível de vida de uma nação. É ele que expande a fronteira de possibilidade de produção de um país, podendo tornar a vida material da população menos sofrível. Portanto, é nele que devemos focar.

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Feitas todas essas explicações e ressalvas, creio que já é possível responder alguns dos “críticos do PIB”.

6. Respondendo as críticas

6.1. Respondendo o Instituto Mises Brasil

Como é de praxe ao IMB estar errado em quase tudo que eles escrevem, não poderia deixar de ser diferente quando o assunto é PIB. Nesse texto estão algumas das suas críticas infundadas. Vamos abaixo discutir cada uma delas.

6.1.1. “Os gastos do governo impulsionam o PIB, sendo que são maléficos para a economia”

Isso está simplesmente errado, pois, como dito anteriormente: “dado que o PIB representa apenas uma identidade contábil, não é correto, sem nenhuma teoria que explique relações causais nas variáveis macroeconômicas, dizer que, por exemplo, um aumento nos gastos do governo (G) causa um aumento no PIB, uma vez que é bem possível que um aumente em G cause uma queda em alguma outra variável do lado direito, de modo que o PIB permaneça inalterado. Por exemplo, pode ser que o aumento em G diminua a poupança agregada da economia, de modo a aumentar a taxa de juros e diminuir os investimentos (I) na mesma magnitude do aumento em G, deixando assim o PIB inalterado.

Que fique claro: não estamos dizendo que o aumento nos gastos do governo não pode gerar aumento no PIB – apenas que precisamos de hipóteses adicionais para além da identidade do PIB para estabelecer essa relação causal.

Portanto, é errado afirmar, como muitos fazem, que a medida do PIB “premia” o aumento dos gastos governamentais. Para ver se uma elevação em G leva a uma queda, uma elevação de maior magnitude ou menor magnitude no PIB precisa-se, no mínimo, calcular qual o multiplicador dos gastos do governo, como mencionado na seção anterior. Ocorre que o texto do Instituto não nos oferece nenhuma estimativa de multiplicador, o que faz com que seu ponto seja muito menos defensável.

Curiosiomente, a ideia de que um aumentos nos gastos do governo aumentam o PIB é justamente um dos pilares da teoria pós-keynesiana, como dito acima. Isso significa que o site Mises Brasil concorda com os pós-keynesianos que o governo pode aumentar o PIB. Teoria da ferradura em ação.

6.1.2. “Gastos, de qualquer tipo, aumentam o PIB”

Se com isso o autor quer dizer todo gasto causa necessariamente um aumento no PIB, então está errado. A explicação do porquê está na seção 4.

Já se com isso ele quer dizer que tudo aquilo que é contabilizado como gasto também é contabilizado no PIB, então a resposta é: seria errado se assim não fosse. Dado que o PIB tem a finalidade de mensurar a produção do país, se gastos com bens e serviços finais de qualquer tipo não fossem contabilizados em tal métrica, então o PIB não mensuraria de forma correta a produção da região. Simples assim.

6.1.3. “[O PIB] atribui importância exagerada ao consumismo”

Dado que o PIB é uma métrica, uma identidade contábil que não atribui juízo de valor àquilo que é consumido, essa frase não faz sentido.

Se com essa frase o autor quer dizer que o PIB “valoriza o consumismo” por não contabilizar bens intermediários, é necessário então dizer como réplica que tais bens não são contabilizados na métrica do PIB porque, caso eles fossem, um bem intermediário seria contabilizado várias vezes, tornando assim a medida do PIB completamente sem propósito. Isso porque, ao se contabilizar somente os bens finais, já está se contabilizando os bens intermediários, pois os bens de cada etapa de produção são vendidos à próxima etapa pelo valor dos custos mais o valor agregado naquela etapa.

6.1.4. “As importações são subtraídas das exportações”

Se ao longo do texto ficamos na dúvida se o autor fazia alguma ideia do que estava falando, com essa “crítica” aqui acabamos percebendo que certamente não.

Dado que o PIB mede a produção de uma região, obviamente que as importações são descontadas, pois aquilo que é importado, por definição, não foi produzido naquele local. Tão simples quanto isso.

6.2. Respondendo Eduardo Giannetti

Giannetti é um pensador sofisticado, um dos maiores intelectuais vivos do Brasil. Dito isso, é necessário apontar que algumas críticas que ele faz ao PIB, que foram bastante popularizadas recentemente nas redes através de um vídeo, não estão corretas. Vamos, abaixo, sumarizar algumas de suas falas, e respondê-las devidamente.

6.2.1. “Se tivermos que comprar água, pois a água originalmente potável foi poluída, o PIB vai aumentar. Apesar disso, a qualidade de vida vai piorar”

O leitor atento já deve ter intuído qual o problema com essa ideia. Primeiramente, é preciso admitir a visão pós-keynesiana da macroeconomia para que isso esteja correto – mas, como já dito na seção 4, a visão pós-keynesiana tem sérios problemas. Pela visão mainstream, isso está simplesmente errado, pois o fardo de ter que filtrar e comercializar a água apenas gera transferência de fatores de produção entre as cadeias produtivas, mas não muda a quantidade total disponível de fatores.

Só o que ocorre é que bens que até então estavam sendo produzidos terão que parar de ser produzidos para que a água filtrada seja produzida. Isso porque os fatores de produção usados na produção desses bens terão que ser deslocados para a produção da água limpa. Portanto, não há alteração na oferta agregada da economia, e, consequentemente, nem no PIB.

6.2.2. “Se você mora longe do seu local de trabalho e precisa ir de automóvel para o trabalho, o PIB aumenta”

A mesma resposta para 6.2.1 serve aqui também. Novamente, o trabalho de se deslocar até o trabalho não modifica o PIB (no longo prazo), apenas faz com que recursos que seriam utilizados para produzir outros bens ou serviços sejam utilizados para fazer a condução do trabalhador até o local de trabalho.

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Feitas as respostas a críticos específicos do PIB, vamos à resposta a uma certa crítica genérica dessa métrica.

6.3. “PIB não é medida de bem-estar”

Imagine, meu caro, que eu tenha a seguinte crítica à unidade de medida grama: “A grama não é uma medida de distância. Para medir a distância corretamente, precisamos de alguma unidade de medida que quantifique o espaço. Como a grama é uma unidade de medida que quantifica a massa, ela não serve para medir a distância“.

Obviamente, essa “crítica à grama” é completamente despropositada. Ela não é uma crítica à grama, mas sim ao uso da grama como unidade de medida da distância.

Usei esse exemplo caricato para evidenciar uma analogia: criticar o PIB por ele não medir o bem-estar da população não é uma crítica à unidade de medida PIB, mas sim uma crítica ao uso do PIB como unidade de medida do bem-estar. Você está dizendo que uma unidade de medida é incorreta para quantificar certa magnitude, mas não está dizendo que a unidade de medida está inerentemente errada. Para fazer a segunda coisa, você teria que criticar o fato do PIB não medir corretamente o valor de todos os bens e serviços finais produzidos na economia. Afinal, esse é o propósito do PIB. Críticas apropriadas ao PIB como unidade de medida a qual ele se propõe podem ser feitas – e as serão mais adiante no texto.

Dito isso, podemos questionar até mesmo a crítica de que PIB não é medida de bem-estar. Sim, certamente PIB não é uma medida exata de bem-estar, tanto porque o bem-estar não pode ser agregado intersubjetivamente e, muito menos, quantificado precisamente. Mas podemos sim utilizar o PIB como proxy para o bem-estar.

Um dos estudos mais completos sobre a relação entre PIB e bem-estar foi feito por Angus Deaton em 2008 (aqui o estudo). Nele, Deaton analisou dados de mais de uma centena de países. O resultado no qual ele chegou é que há uma correlação positiva entre PIB per capita e satisfação com a vida, com um R² consideravelmente alto, de 0,69.

Com isso, podemos dizer que PIB (per capita, mais precisamente) pode sim ser utilizado como proxy para bem-estar. Não obstante, não podemos dizer que aumento no PIB per capita causa maior bem-estar. O que temos é uma relação em nível de dados cross-section, e isso nem de longe é suficiente para inferir causalidade.

A inferência de causalidade se desvanece de vez se considerarmos variações na renda, e não apenas níveis de renda. Deaton fez isso, e os resultados estão na tabela abaixo.

Os resultados da regressão acima mostram que o nível de satisfação com a vida da população em geral está negativamente relacionada com a taxa de crescimento do país (veja as linhas 2 e 3, que mostram coeficientes negativos para todas as faixas de renda consideradas). Apesar disso, a relação positiva entre nível de renda e nível de satisfação se mantém (veja a linha 1, que mostra coeficientes positivos – e estatisticamente significantes).

Ou seja, podemos usar o PIB per capita como proxy para bem-estar, mas não podemos dizer que maior PIB per capita gera maior bem-estar. É uma diferença que parece ser sutil, mas é completamente significativa para o uso correto do PIB.

7. “PIB do governo” está certo?

Não faz sentido separar os gastos do governo do PIB. Se isso fosse feito, não se estaria contabilizando a produção interna bruta do país, mas outra coisa, pois o governo consome bens e se utiliza de serviços. Para contabilizar corretamente aquilo que é produzido em um país, tem-se que contabilizar os gastos do governo, necessariamente.

Veja bem: se o país produz 100 unidades monetárias de bens e serviços, não faz diferença, em termos contábeis, se o governo consome 10, 20 ou 100 unidades monetárias desses bens e serviços. Analogamente, se o PIB do país cair 2% de um ano para o outro, sendo que toda essa queda está no componente dos gastos de governo – isto é, se o agregado do consumo privado, investimentos, exportações e importações permanece inalterado – isso não é mérito para o governo. Queda de 2% no PIB de um ano para o outro significa que a produção total do país, medida pelo valor monetário, foi 2% menor em relação ao ano anterior. O país está, no agregado, 2% mais pobre.

8. Algumas “críticas corretas” ao PIB

Feita a extensa lista acima sobre críticas infundadas ao PIB, vamos finalmente falar sobre algumas das críticas a essa métrica que fazem sentido. Existem várias críticas corretas ao PIB, mas nesse texto vamos falar de apenas duas, principalmente porque o texto já está demasiadamente longo.

Antes de tudo, tenha em mente aquilo que foi dito na seção 6.3: “[Para criticar o PIB como unidade de medida em si] você teria que criticar o fato do PIB não medir corretamente o valor de todos os bens e serviços finais produzidos na economia“.

Ocorre que o PIB não é uma forma perfeita de fazer a medição do valor (monetário) de todos os bens e serviços finais produzidos na economia. Isso porque:

8.1. O PIB não leva em conta muitas externalidades

Vamos voltar às críticas de Giannetti ao PIB, mas dessa vez concordando com uma delas. Giannetti diz, no mesmo vídeo em que faz as demais críticas, algo mais ou menos assim: “Quando você pega um avião, você está pagando o serviço de bordo, o piloto, o combustível e assim por diante, mas você não está pagando, ou está pagando muito pouco, a externalidade negativa gerada pela poluição do avião“.

Problemas como esse são causados pelo fato de que o bem ou serviço em questão não está devidamente precificado, de modo que o valor que ele agrega no PIB não está em concordância com o valor que ele agregaria com a devida precificação. A emissão de gases do efeito estufa talvez esteja subprecificada, e isso gera distorções na medida do PIB.

8.2. O PIB não leva em conta o trabalho não-remunerado, tal como o trabalho doméstico

Como trabalho doméstico é um trabalho não-remunerado, é extremamente difícil levá-lo em conta na medição do PIB. Por ser uma medição difícil e imprecisa, então ele é completamente excluído da contabilidade do produto. Mas, idealmente, não deveria ser, dado que o PIB se propõe a medir o valor de todos os bens e serviços finais produzidos na economia.

É um pouco estranho e contraintuitivo pensar que, por exemplo, o ato de lavar uma louça deveria contar no PIB. Mas deveria. Para analisar quais ações deveriam estar contabilizadas no PIB mas não estão, faça o seguinte exercício mental: você estaria disposto a pagar alguém para realizar a ação que você realiza, caso tivesse renda infinita? Se a resposta é sim, então você está gerando valor ao realizar essa ação – que pode ser lastreado monetariamente -, e esse valor deveria ser contabilizado no PIB.

Exemplos:
(i) Você estaria disposto a pagar alguém para jogar video game por você? Provavelmente não. Então o ato de jogar video game não é um serviço realizado e não deveria contabilizar no PIB.
(ii) Você estaria disposto a pagar alguém para acender a luz do quarto por você? Se sim, então o ato de ligar a luz é um serviço, e pode ser lastreado monetariamente, de modo que deveria contabilizar no PIB.

Novamente, pensar assim é contraintutivo, apesar de ser o correto a se fazer. Usando exemplos extremos, podemos chegar até a uma completa incosistência na medida do PIB – mas deixaremos essa discussão para outra hora.

9. Conclusão

Espero que o leitor tenha, a partir desse texto, uma visão mais clara e nuançada sobre o que de fato seja o PIB.

Essa medida possui falhas (como as apontadas na seção 8), mas é melhor do que nada. Por isso que devemos evitar ser “fundamentalistas do PIB”, achar que o PIB necessariamente mede a qualidade de vida da população. No máximo é uma proxy – e não das mais precisas. Por isso que apenas uma das críticas do texto do Instituto Mises faz certo sentido, que é “o mensurador não mensura”: na verdade, o PIB mensura a produção do país em valor monetário, porém não de forma perfeita.

Portanto, basta tomar o PIB with a grain of salt que está tudo certo. Aproveite o PIB.

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Leia também:
Sob quais condições os multiplicadores fiscais são positivos? – Resumo de “How Big (Small) are Fiscal Multipliers”
Por que “PIB do governo” está errado?
Macroeconomia e expectativas – o porquê, o para quê e o como
A economia mainstream na história do pensamento econômico

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