Sobre o “imposto do pecado”, externalidades negativas e problemas de classificação fiscal

No Fórum Econômico Mundial em Davos, o ministro Paulo Guedes afirmou que avalia a criação de um tributo sobre bens que fazem mal para a saúde. Ele chamou a exação de “imposto do pecado” e mencionou cigarros, bebidas alcoólicas e alimentos com açúcar como alvos em potencial do novo tributo.

Na literatura especializada, esse tipo de tributo, que incide de forma seletiva, é chamado de “excise tax”. Sua função principal não é arrecadar, mas sim desestimular o consumo de certos bens (1). Em regra, tributação seletiva distorce os preços relativos e resulta em um equilíbrio menos eficiente do que aquele que ocorreria caso a tributação fosse horizontal. Contudo, nos casos de bens que geram externalidades negativas, a tributação seletiva pode ser eficiente.

Os agentes econômicos produzem e consomem bens apenas enquanto tal decisão gera mais benefícios do que custos. Ocorre que, em determinadas condições, uma decisão de um agente gera custos que não são suportados por ele. Tais custos são o que a literatura econômica chama de externalidades negativas. Nesses casos, os agentes possuem incentivos para agir de forma a gerar um benefício inferior ao custo social, já que parte do custo é ignorada na tomada de decisão.

Há pelo menos duas abordagens teóricas que, à luz do conceito de externalidades negativas, descrevem condições em que a imposição de um tributo seletivo pode ser eficiente.

A primeira dessas abordagens está relacionada aos chamados “problemas de autocontrole”, que tem sido objeto de estudo no campo da economia comportamental há bastante tempo (2). Sabemos que indivíduos, muitas vezes, agem de forma imediatista e se arrependem mais tarde. No arcabouço conceitual econômico, podemos dizer que o arrependimento ocorre quando o agente percebe que os custos de sua decisão foram maiores do que os benefícios. No momento da tomada de decisão, contudo, certos custos são ignorados – como se fossem custos de terceiros. É óbvio que os custos da decisão imediatista são suportados pelo próprio indivíduo. Entretanto, se ele age como se não fosse, tais custos são, com efeito, externalidades negativas. Por esse motivo, essas decisões geram resultados economicamente ineficientes.

Bens que oferecem prazer no curto prazo e causam problemas de saúde no longo prazo ensejam típicos casos de “problemas de autocontrole”. Os casos de vícios são ainda mais notórios. Não é raro que indivíduos, cientes de seus problemas de autocontrole, ajam no sentido de restringir o seu próprio rol de opções futuras para evitar o consumo de certos bens, por exemplo, não comprando pacotes grandes de cigarro e evitando ir a determinados estabelecimentos.

Todavia, o escopo de ação dos indivíduos para restringir suas próprias decisões é bastante limitado, de forma que restrições externas podem ser necessárias para evitar, de forma efetiva, decisões que geram utilidade líquida negativa no longo prazo. A imposição de um tributo seletivo sobre bens que prejudicam a saúde é uma forma de restrição externa que pode contribuir para desestimular decisões que não seriam tomadas, não fosse a falta de autocontrole.

A segunda abordagem está relacionada aos custos de tratamento de saúde. Ainda que não existissem problemas de autocontrole, as decisões de consumo de bens que fazem mal à saúde são desestimuladas, inter alia, pelos custos envolvidos no tratamento de enfermidades futuras. Em um cenário em que há um sistema de saúde público universal, para os agentes que cogitam utilizá-lo, tais custos são externalidades negativas, já que não são suportados pelo próprio indivíduo, mas sim pelo restante da sociedade que financia o sistema de saúde. Nesses casos, impor uma “excise tax” sobre bens prejudiciais a saúde é uma forma de internalizar esses custos, fazendo com que os consumidores de tais bens contribuam mais para financiar a saúde pública do que os demais pagadores de tributos.

Aceita a premissa de que a sobretributação de certos bens podem gerar resultados eficientes, a próxima questão é quais bens sobretributar. Sabemos que a administração da declaração, do pagamento e da cobrança de tributos são atividades que geram custos, tanto para os contribuintes, quanto para o Estado. Tais custos são maiores ou menores a depender do grau de complexidade do sistema tributário. A diferenciação do tratamento tributário entre bens ou serviços, na margem, aumenta a complexidade do sistema por conta da necessidade de classificação. A criação de uma exação tributária diferente por produto muda o comportamento do contribuinte – seja modificando seu produto, seja adotando teses jurídico-tributárias criativas – para se enquadrar na regra de tributação mais baixa. Isso tudo gera insegurança jurídica e aumento do contencioso tributário.

Alguns bens são relativamente fáceis de classificar e descrever em lei de forma que não haja muitas zonas cinzentas, como fumo, bebidas alcoólicas e armas de fogo, por exemplo. É possível instituir uma tributação seletiva sobre tais produtos sem gerar muitos efeitos colaterais, como demonstra a prática internacional. Por outro lado, há bens cuja tributação seletiva causa uma série efeitos impremeditados, como a inserção no mercado de novos produtos cuja criação foi motivada por normas tributárias, a elevação do custo de conformidade, a dificuldade de auditoria e fiscalização de empresas e o aumento da litigiosidade em matéria tributária. Esse, ao que tudo indica, é o caso dos alimentos açucarados.

Em suma, a teoria econômica sugere que tributar seletivamente bens que fazem mal à saúde pode ser eficiente. Isso não significa que devemos sobretributar todos os bens que fazem mal à saúde ou tudo aquilo que produz externalidades negativas. Há que se ponderar as vantagens dessas medidas em face do indesejável aumento de complexidade do sistema tributário.

.

(1) No Brasil, o tributo que mais se assemelha a uma “excise tax” é o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Contudo, ao contrário do que se espera de uma “excise tax” ideal, esse imposto alcança um rol de produtos muito amplo e, há bastante tempo, tem sido utilizado com precípua finalidade arrecadatória.

(2) Ver, por exemplo, Thaler, Richard H & Shefrin, H M, 1981. “An Economic Theory of Self-Control,” Journal of Political Economy, University of Chicago Press, vol. 89(2), pages 392-406, April.

.

Leia também:
Considerações sobre o teto de gastos
Os impactos econômicos de um imposto sobre transações financeiras
Considerações sobre tributação e reforma tributária no Brasil
Estruturando decisões em investimentos arriscados – Sob quais condições faz sentido correr risco?

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público