A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.
Joaquim Nabuco, em seu livro “Minha formação”.
Um dos maiores impedimentos para a execução de políticas antirracistas é a falta de entendimento de como fatores históricos conseguem se perpetuar pelo tempo. A literatura sobre path dependency, sobretudo focada na escravidão, tem grande potencial para convencer as pessoas disso, pois demonstra como e quanto fatores históricos, como os 400 anos de escravidão no Brasil, mesmo 100 anos depois ainda são capazes de explicar parte da situação dos países e descendentes dos povos afetados.
Para tentar entender um pouco dessa dinâmica, separei alguns artigos quantitativos sobre os impactos de longo prazo da escravidão e racismo. Comento brevemente sobre esses artigos abaixo.
1. “Slavery, Inequality, and Economic Development in the Americas: An Examination of the Engerman-Sokoloff Hypothesis”
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Nesse artigo, Nathan Nunn testa hipóteses dos trabalhos de Engerman-Sokoloff que relacionam maiores níveis de escravidão no passado a um maior nível de desigualdade e pobreza econômica hoje. Ele testa essa hipótese tanto comparando os países do Novo Mundo quanto comparando os estados americanos. Nos dois casos é encontrado relação estatisticamente significativa entre maiores níveis de escravidão e maiores níveis de desigualdade e pobreza econômica.
“I test for the reduced form relationship between large scale plantation slavery and economic underdevelopment. This is done by examining whether there is evidence that countries that relied most heavily on slave use in the late 18th and early 19th centuries are poorer today. I test for this relationship looking across former New World economies, and across counties and states within the U.S. In both settings, I find a significant negative relationship between past slave use and current economic performance. I also examine whether large scale plantation slavery appears to have been particularly damaging for economic development. I do not find any evidence that large scale slavery was more detrimental for growth than other forms of slavery. Instead, the evidence suggests that all forms of slavery were detrimental, and that if any form of slavery was particularly detrimental it was actually small scale non-plantation slavery.“
2. “The Long-Term Effects of Africa’s Slave Trades”
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Nesse artigo, Nathan Nunn trata do impacto do tráfico de escravos nos países africanos. Ele observa que os países com maior nível de tráfico de pessoas, no período da escravidão, apresentam uma performance econômica pior hoje e maior nível de fragmentação étnica. Segundo o autor, os estados africanos mais pobres hoje são os que foram mais afetados pela escravidão e isso acontece pelo nível de fragmentação étnica e colapso dos Estados gerados por esse fator histórico.
Poderia ser argumentado que esses Estados já eram anteriormente os mais pobres, mas a análise mostra o contrário, os locais mais desenvolvidos na época (com maiores densidades populacionais) foram os mais afetados.
O primeiro gráfico abaixo demonstra a relação entre o nível de exportação de pessoas escravizadas por área e o PIB per capita no ano de 2000. O segundo a relação entre o nível de exportação e o nível de fragmentação étnica.
3. “The Slave Trade and the Origins of Mistrust in Africa”
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Nathan Nunn e Leonard Wantchekon aprofundam a questão da fragmentação étnica tratando da relação entre a exportação de pessoas escravizadas e o nível de confiança. Os povos recebiam dinheiro pelas pessoas capturadas e isso gerou animosidade e esgarçamento do tecido social entre esses grupos lutando uns contra os outros. Para essas populações, a estratégia de não confiar em ninguém era a forma de se proteger de possíveis capturas. Assim, com base nos dados, eles demonstram que os indivíduos com ancestrais mais afetados com o tráfico de escravos apresentam hoje menor confiabilidade nos seus vizinhos, parentes e governo.
“Early in the slave trade, slaves were primarily captured through state organized raids and warfare. By the end of the trade, because of the environment of ubiquitous insecurity that had developed, individuals — even friends and family members — began to turn on one another, kidnapping, tricking, and selling each other into slavery. We hypothesize that in this environment, where everyone had to constantly be on guard against being sold or tricked into slavery by those around them, a culture of mistrust may have evolved, and that this mistrust may continue to persist today.
Our view is that in areas more exposed to the slave trade, rules-of-thumb or beliefs based on the mistrust of others would have been more beneficial relative to norms of trust and therefore would have become more prevalent over time. In other words, our hypothesis is that the slave trade would have engendered a culture of mistrust. Because these beliefs and norms persist, particularly in environments where they remain optimal, the relationship between these norms and a history of the slave trade may still exist in the data today — almost 100 years after the slave trade has ended.”
Os autores concluem que o canal de causalidade entre o tráfico de pessoas escravizadas e o desempenho econômico dos países está ligado ao impacto negativo em fatores internos dos indivíduos como as normas culturais, crenças e valores gerados pelas perseguições da escravidão. Essa análise vai de acordo com a literatura institucionalista onde a cultura, como instituição informal, também determina a situação econômica dos países.
Há também o impacto de fatores externos aos indivíduos como as políticas domésticas e qualidade das instituições do país. Esses também foram afetados negativamente pela escravidão, porém apresentam um efeito menor nos resultados econômicos atuais.
“Our results suggest that the slave trade adversely affected trust by altering both individuals’ internal beliefs and values, and by affecting factors external to the individual, like domestic political and legal institutions. We also find that the internal channel accounts for about 75% of the slave trade’s total effect on trust.“
4. “Ruggedness: The Blessing of Bad Geography in Africa”
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Nesse artigo, Nathan Nunn e Diego Puga discutem o papel da geografia no desempenho econômico de alguns países africanos. Eles destacam que a geografia pode ter um papel contemporâneo e direto sob a economia, mas também pela sua relação com eventos históricos. Nesse caso, eles analisam o impacto de terrenos ruins, mais acidentados (ruggedness) nos resultados econômicos.
Primeiro eles observam que, em geral, no mundo há uma relação negativa entre esses terrenos acidentados e a economia, isso porque são locais onde a agricultura, construções e comércio são mais difíceis de se realizar. Porém, em alguns países da África essa relação é inversa, há um impacto positivo.
A explicação para isso é que durante o período de escravidão, os países africanos com terrenos mais acidentados (com colinas, cavernas e penhascos) eram locais onde as pessoas podiam se defender e se esconder melhor contra os ataques de outros grupos para serem escravizados. Assim, esses locais foram menos afetados pela escravidão. Por consequência, as instituições criadas nesses países se tornaram melhores em relação aos outros países mais afetados nesse período, dado que esses tiveram as instituições destruídas e maior fragmentação social.
Os autores acrescentam nas regressões variáveis como presença de diamante, qualidade do solo, clima, etc. Ainda assim, os resultados em relação aos terrenos acidentados e nível de impacto do tráfico de pessoas escravizadas permanecem estatisticamente significativos.
5. “Tordesillas, Slavery and the Origins of Brazilian Inequality“
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Uma das coisas interessantes desse artigo é lidar com o caso brasileiro e ser escritos por autores brasileiros, Thomas Fujiwara, Humberto Laudares e Felipe Valencia. Nele, os autores comparam regiões do Brasil onde havia mais e menos escravidão. Fazem isso com algumas estratégias diferentes como a posição em relação à linha de Tordesilhas. A oeste da linha, que eles chamam de lado espanhol, o número de escravos era menor que ao leste, lado português. Essa diferença propicia uma das formas de mensurar o impacto da escravidão. Os autores concluem que o maior nível de pessoas escravizadas está relacionado com maior desigualdade hoje. Pelas estimações deles esse fator explica entre 7,6% a 20,7% da desigualdade atual.
Eles também comparam o nível de escravidão entre as regiões divididas em capitanias hereditárias e chegam novamente na relação entre maior nível de escravidão e maiores níveis de desigualdade hoje. Eles comparam também áreas do Brasil colonizadas pela Holanda. Com isso conseguem analisar se a desigualdade estaria ligada ao tipo de colonizador ou a instituição da escravidão. Os resultados sugerem que não houve diferença significativa entre a quantidade de pessoas escravizadas nessas regiões e o posterior impacto na desigualdade em comparação a áreas portuguesas.
A conclusão geral do estudo é de que a escravidão gerou menor renda para famílias negras em relação às famílias brancas, além disso, menor acesso à educação das crianças negras e impacto negativo na capacidade institucional.
6. “Finding Eldorado: Slavery and long-run development in Colombia”
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Esse estudo feito por Daron Acemoglu, Camilo García-Jimeno e James Robinson foca no caso da Colômbia, onde a escravidão era mais intensiva nas minas de ouro do país. Como as minas são concentradas em certas regiões, ao invés de serem distribuídas de forma aleatória, eles não poderiam comparar essas regiões com todas as outras. Dessa forma, eles escolheram criar modelos a partir da comparação entre regiões vizinhas, que apresentam característica parecidas, mas que se diferenciam pela intensidade do uso de pessoas escravizadas, dada a presença ou não de minas de ouro durante os séculos XVII e XVIII.
Os resultados do estudo apontam que a escravidão em 1843 está associada a maior pobreza, menor nível de educação, menor provisão de bens públicos por volta dos anos 1990 e 2000. Também está associada a maior nível de analfabetismo, menor cobertura vacinal e maior nível de desigualdade.
7. “Jim Crow and Black Economic Progress After Slavery”
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Artigo escrito por Lukas Althoff e Hugo Reichardt que trata do impacto da escravidão e das leis Jim Crown, que foram leis que institucionalizaram a segregação a pessoas negras nos EUA. As leis dificultavam os votos de negros e promovia a segregação em colégios e transportes públicos e restrição da mobilidade geográfica. Essas leis se perpetuaram e só deixaram de existir nos anos 60. O objetivo desse estudo era tratar se esses fatores históricos influenciaram nas desigualdades raciais de hoje em dia.
O ponto interessante desse trabalho é que eles comparam descendentes de famílias negras que sofreram mais ou menos opressão racial. Uma das formas de fazer isso é observando famílias negras que foram libertadas antes ou depois da Guerra Civil. Como não havia um censo para os negros durante a escravidão, eles consideram que as famílias registradas no censo de 1850 e 1860 são as que foram libertadas antes. Os autores observam a partir do sobrenome das famílias negras se seus antepassados estiveram mais expostos a escravidão e leis segregacionistas. Também demonstram que os locais onde a libertação das pessoas escravizadas demorou mais tempo também foram os que as leis Jim Crown foram mais pesadas.
Nesse próximo gráfico é demonstrado que o nível educacional de pessoas brancas não foi afetado pelas leis raciais. Já nos casos de pessoas negras, quanto mais leis Jim Crown ou quanto maior a opressão racial a nível estadual medido pelo índice HRR (Historical Racial Regime Index), menor o nível de educação de pessoas negras.
As desigualdades socioeconômicas entre brancos e negros é em grande parte explicada pela escravidão e opressões raciais. Eles documentam que os descendentes de pessoas escravizadas até 1865 têm um menor status socioeconômico hoje. Ficou demonstrado que essa persistência foi impulsionada pelas leis Jim Crown, principalmente pelos fatores que limitaram o acesso a educação.
Em resumo, famílias negras escravizadas até a Guerra Civil têm educação, renda e riqueza menores que as famílias negras libertadas antes da Guerra Civil. As desigualdades entre os dois grupos persistiram porque as famílias libertadas mais tarde estavam em estados que também sofreram com regimes Jim Crown mais pesados.
8. “After the Burning: The Economic Effects of the 1921 Tulsa Race Massacre“
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Alex Albright et al. realizaram um estudo sobre o caso do massacre de Tulsa em 1921. A região de Tulsa era conhecida como a “Black Wall Street”. Apesar de existirem vários outros casos de perseguição a negros, o caso de Tulsa ficou marcado pelo nível de violência. Estima-se que o número de mortes tenha chegado a 300. Mais de mil casas foram queimados e milhares de pessoas negras foram mantidas em centros de internação, levadas para lá sob a mira de armas. Estima-se que o prejuízo em dólares foi entre $ 2.212.600 e $ 3.219.400 em 1921 (ou $ 32.560.722 e $ 47.376.836 trazendo para valores presentes).
Algumas fotos de antes e depois do ataque ilustram o tamanho do acontecimento:
A ideia dos autores é que o massacre afetou negativamente as expectativas das pessoas negras com relação ao retorno sobre investimento em capital, empreendimentos ou mesmo investimento em casa própria, dada a possibilidade de se repetir o que aconteceu em Tulsa, principalmente considerando a ampla cobertura da mídia na época.
Eles observam os efeitos primeiro dentro da região de Tulsa e concluem que o evento diminuiu a probabilidade de uma pessoa negra se tornar dona de uma casa própria e aumentou as chances de seu status ocupacional diminuir. Eles observaram se outras comunidades negras fora da região também foram afetadas. Essa comparação é feita de duas formas: (i) comunidades onde as informações se espalharam mais (pela maior cobertura da mídia); ou (ii) comunidades com altos níveis de segregação racial. As duas formas indicam que o acontecimento gerou um efeito negativo. Os locais com menor cobertura da mídia não tiveram um efeito relevante.
Depois eles realizaram uma análise para medir a persistência desse efeito no longo prazo, no ano 2000. Os efeitos não só persistiram como aumentaram. O efeito no ano de 2000 é 60% maior do que em 1940.
Conclusão
A ideia desse texto foi trazer um pouco dos estudos atuais sobre o legado da escravidão e do racismo como um todo. É comum as pessoas se posicionarem contra o racismo do ponto de vista da discriminação, mas ignorarem os efeitos de longo prazo desses eventos históricos, que, ao meu ver, são mais importantes para se entender as desigualdades, pobreza e questões socioeconômicas atuais. Muitas vezes, a discriminação é apenas a ponta do iceberg, ecos desses eventos históricos que persistem em existir.
Em resumo, podemos dizer que a escravidão trouxe um legado ruim que se perpetua até hoje para os países e povos afetados diretamente por ela, sendo possível inclusive mensurar quantitativamente parte dele. O problema se torna ainda mais claro quando se olha diretamente a situação socioeconômica de pessoas negras. Obviamente, esse legado poderia ter sido atenuado com as políticas públicas corretas. Os acontecimentos históricos criam uma dependência da trajetória que torna difícil para os países alterá-las, mas é completamente possível melhorar esses resultados, principalmente quando descobrimos as instituições que causam a persistência dos efeitos desses eventos.
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Publicado originalmente aqui.
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