Por que a frase “desigualdade não importa, só pobreza importa” não faz sentido

Os 20% mais pobres do Brasil levam 2,3% da renda nacional, os 20% mais pobres da Suíça, 6,9%, ou seja, 3x mais. A Suíça não é só menos desigual, como também muito mais rica: a diferença em PIB per capita entre os países é 3,85x.

Perceba que ambas as coisas (desigualdade e renda) estão em patamares parecidos quando se trata de explicar o porquê de alguém que está no piso da distribuição de renda brasileira viver muito pior do que alguém que está no piso da distribuição de renda suíça (3x contra 3,85x). Por essa combinação virtuosa de (1) alta renda, e (2) parcela expressiva da renda nacional indo para o piso, a Suíça tem 0% da população abaixo da linha da pobreza mais alta disponibilizada pelo Banco Mundial, de $5,5/dia por pessoa (PPP).

Se alguém diz para um brasileiro que está nos 20% mais pobres a frase “desigualdade não importa, pobreza importa” quando este menciona o fato de os suíços terem erradicado a pobreza, essa pessoa também estará implicitamente dizendo: “relaxa, meu amigo, levar 2,3% da renda nacional não faz diferença nessa história. Você poderá viver tão bem quanto um suíço pobre desde que o PIB per capita brasileiro seja 3x maior do que o deles, que já são uma das nações mais ricas do mundo. Ou seja, só precisamos multiplicar nossa renda por habitante por 11 vezes e meia”.

Quem fala que desigualdade não importa no contexto brasileiro sequer pensou nas implicações de política olhando os números reais, porque crescimento econômico não é tarefa simples. Quando se fala em superar por várias vezes um país que está na fronteira do mundo, como a Suíça, aí realmente passa do limite do razoável.

Entendemos esse tipo de reação, já que o outro lado apresenta uma perspectiva tão irrazoável quanto: a de que bastaria tributar fulano e gastar com ciclano para todo mundo ficar bem. Não, também não é assim que funciona. A gente tem uma infinidade de textos sobre como o Brasil é pobre, sobre o enorme problema da produtividade e sobre a necessidade de gerar crescimento econômico para melhorar o padrão de vida dos mais pobres, mas há um ponto óbvio que não podemos ignorar: reduzir consistentemente a pobreza brasileira sem reduzir a desigualdade em alguma medida é aritmeticamente impossível.

Vale lembrar: essa frase de que “pobreza importa, desigualdade não” se popularizou com Milton Friedman, um dos maiores economistas do século XX, nos EUA da década de 70, quando os 20% mais pobres dos EUA levavam 3,8%-4% da renda nacional, contra 1,7% hoje. Lembre-se também que o alvo da frase era o modelo socialista soviético, que de fato entregava uma desigualdade muito menor, mas com o país tendo só 40% da renda americana e caindo em termos relativos.

Havia, sim, portanto, uma disputa clara entre crescer mais com um modelo ou reduzir a desigualdade com outro às custas de não crescer. Só que essa frase dita no contexto em que as pessoas usam vulgarmente hoje não faz sentido.

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