Vem se tornando comum a associação do crescimento da China como uma evidência de sucesso do socialismo. Essa análise parece ter erros relevantes, pois ignora parte da literatura cientifica sobre desenvolvimento econômico e os dados sobre a economia chinesa. Nesse texto apresento alguns desses dados e como eles se correlacionam com o aumento da riqueza do país.
Propriedade privada
A principal característica de um país socialista é abolição da propriedade privada, a socialização dos meios de produção, que passam a estar sob controle direto do Estado, pois dessa forma a alocação de recursos se daria de maneira coletiva, extinguindo-se a existência do lucro dos empresários. Segundo a literatura, isso é algo problemático, pois a propriedade privada é um dos fatores necessários para o crescimento econômico. A história da China parece confirmar isso.
Em 1958 a propriedade privada foi abolida na China durante o governo de Mao Tsé-Tung no seu programa chamado Grande Salto Adiante buscando acelerar o caminho para o comunismo. Durante o período houve uma coletivização das áreas rurais onde a produção era dividida igualmente entre todos. Esse formato causou uma forte crise de fome na China, levando a milhares de mortes naquele período. Segundo análise do Our World in Data, “a fome do “Grande Salto para a Frente” na China de 1959 a 1961 foi a maior fome da história em termos de número absoluto de mortes. As estimativas de mortalidade excessiva variam enormemente, mas com base em nossas estimativas de ponto médio, custou mais do que o dobro do número de vidas do que qualquer outra fome.”
Apenas na vila de Xiaogang, 67 de 120 pessoas morreram em dois anos. Em 1978, após uma forte seca, 18 agricultores dessa aldeia se juntaram para criar um acordo de divisão das terras coletivas, onde cada família ficaria com uma parte, entregaria parte da sua produção ao governo e teria liberdade para ficar e comercializar o excedente, arriscando assim a própria vida contra a lei do Estado chinês. Essa organização permitiu um aumento da produção maior que dos 5 anos anteriores. A renda per capita aumentou de 22 para 400 yuans em 1979.
No mesmo período, Deng Xiaoping chegou ao poder, iniciando reformas em 1980. Ao saber do sucesso em Xiaogang, o modelo passou a ser legal em toda a China. O Household Responsibility System foi, assim, o início de uma “propriedade privada” na China. A propriedade de jure pertencia ao governo chinês, mas a propriedade de facto, aos camponeses. Essa foi uma política de sucesso que conseguiu tirar milhões da fome.
Outra mudança implementada durande o governo de Deng Xiaoping foi a criação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), que permitiram a entrada de empresas estrangeiras, aproximando a economia chinesa a um formato mais capitalista. Muitas das empresas estrangeiras foram atraídas pela mão-de-obra barata e posteriormente pelo grande investimento em infraestrutura do governo. A evolução e a abertura de mercado vêm melhorando desde então.
A relação do Estado chinês com o mercado é muito boa. No ranking de facilidade de fazer negócios do Banco Mundial (Easy Doing Business), de 2012 para 2019 a China saiu do 99° lugar para o 31º. Enquanto isso, a melhor posição do Brasil foi 109° (atualmente estamos em 124°). Isso mostra a preocupação do governo chinês em melhorar constantemente o ambiente de negócios.
Empresas públicas e privadas
A cada dia as empresas privadas vêm tomando mais espaço na economia chinesa. No artigo intitulado “China’s Labour Market“, Anthony Rush demonstra uma forte queda na participação das empresas estatais (SOE) e de propriedade coletiva (COE) na criação de empregos em áreas urbanas. Os números saem de 90% em 1990 para 30% em 2010.
No artigo “The effects of privatization on exports and jobs”, de 2016, Yasuyuki Todo demonstra que as privatizações na China tiveram um efeito positivo na propensão a exportar, aumento no número de empregos, e aumento do nível de produtividade no curto e longo prazo. As privatizações vêm acontecendo desde os anos 90, onde havia um foco maior nas empresas menores. Em média a produtividade total dos fatores de produção (PTF) dessas empresas aumentaram de 60% a 70%. A porcentagem de empregos na área urbana gerado pelas empresas estatais (SOE) caiu de 78% em 1978 para 17% em 2013.
Nos dados mais atuais, o setor privado chinês contribui para 60% do PIB, 70% da inovação, 80% dos empregos urbanos e 90% dos novos postos de trabalho, segundo artigo do World Economic Forum.
Distribuição de renda
Com relação ao fim das classes pregado pelo socialismo, isso está cada vez mais distante na economia chinesa. A distribuição de renda no país em relação à distribuição global é extremamente semelhante à do Brasil quando comparada ao resto do mundo. A desigualdade lá é tão relevante quanto em qualquer país capitalista.
Welfare state e taxa de poupança
Uma característica da economia chinesa é a alta taxa de poupança, 49,5%, uma das maiores do mundo. A taxa de poupança do Brasil, por exemplo, não chega a 20%. Quanto mais um país poupa, mais dinheiro há para fazer investimentos. Esse é um dos fatores do crescimento acelerado, como previsto no modelo de Solow.
Há também estudos sobre a relação entre menor nível de welfare state e taxa de poupança maior, como no artigo “Social Security and Saving: An Update”. A China provavelmente é um exemplo de país que possui alta taxa de poupança devido ao baixo walfare state. O nível de gastos sociais em relação ao PIB da China é bem abaixo de outros países. Está entre os países analisados pela OECD, apesar de vir aumentando conforme o país se torna mais rico.
Conclusão
O “milagre” econômico chinês nada mais é do que o fenômeno experimentado por todos os países que conseguiram criar instituições que protegem a propriedade privada e asseguram os lucros aos empreendedores dando razoável liberdade alocativa ao mercado. No caso da China, isso se assemelha a um nacional desenvolvimentismo, apesar de que acredito serem as mudanças institucionais os fatores determinantes para seu crescimento. Não há como como interpretar o fenômeno chinês como um caso de sucesso de algum tipo de socialismo. A experiência mostra o exato oposto e confirma as teorias sobre crescimento econômico atuais.
A instituição da propriedade privada, abertura comercial, privatizações, investimentos em infraestrutura voltados a exportação, e melhora do ambiente de negócios certamente são os pontos principais que fizeram a China sair de níveis de 80% da população em extrema pobreza em 1981 para menos de 1% atualmente. Além disso, há também a qualidade da educação chinesa e o paradoxo sistema autoritário mas descentralizado regionalmente, que permitiu que as regiões da China tivessem liberdade para experimentar políticas econômicas distintas competindo entre si, de modo que os líderes das regiões que apresentavam maior crescimento ganhavam mais poder e podiam ser promovidos dentro do partido. Esse desenho institucional também surgiu após a queda de Mao Tsé-Tung e isso certamente levou a um maior crescimento econômico, como apresentado no artigo “The Fundamental Institutions of China’s Reforms and Development”.
Dessa forma, não há um milagre econômico na China. Seu crescimento parece bem explicado pelo conhecimento atual da literatura sobre desenvolvimento. O milagre na China não é o econômico, mas o milagre de um governo ditatorial fazer mudanças institucionais que geraram ganhos generalizados. Isso sim é algo fora do comum.
Referências
Anthony Rush, “China’s Labour Market”. Reserve Bank of Australia 2011.
Joe Hasell and Max Roser (2013) – “Famines”. Published online at OurWorldInData.org.
Slavov, Sita and Gorry, Devon and Gorry, Aspen and Caliendo, Frank N, “Social Security and Saving: An Update”, National Bureau of Economic Research 2017, 10.3386/w23506.
Todo, Yasuyuki. (2016). “The effects of privatization on exports and jobs”, IZA World of Labor 2016 10.15185/izawol.309.
John McMillan, John Whalley, and Lijing Zhu, “The Impact of China’s Economic Reforms on Agricultural Productivity Growth”, Journal of Political Economy 1989 97:4, 781–807.
Xu, Chenggang. 2011. “The Fundamental Institutions of China’s Reforms and Development.” Journal of Economic Literature, 49 (4): 1076–1151.
The role of China’s state-owned companies explained
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Publicado originalmente aqui.
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