Um dos sensos mais comuns sobre economia é que se um país quiser enriquecer ele precisa necessariamente se industrializar. Essa ideia está enraizada na mentalidade do público leigo em economia. Mas será que isso é verdade? Como veremos neste texto, esse senso comum está errado, e o principal motivo deste erro é um mal entendimento concentual do que significa “causa”.
1. Considerações teóricas
Nenhum modelo bem estabelecido na literatura sobre crescimento econômico faz referência à industrialização como um dos promotores do desenvolvimento. A começar pelo modelo mais básico, o de Solow, ele leva em consideração a taxa de poupança, a taxa de natalidade, a taxa de depreciação do capital e a taxa de inovação tecnológica, mas não fala uma palavra sequer sobre a industrialização do país.
Outros modelos mais elaborados seguem na mesma linha. O modelo de Ramsey-Cass-Koopmans procura estabelecer fundamentos microeconômicos para a dinâmica do crescimento macroeconômico. Nesse modelo, a taxa de poupança passa a ser endógena, onde um número limitado de famílias vive um período de tempo infinito, ofertando trabalho, mantendo ativos, consumindo e poupando; ao passo que firmas competitivas contratam trabalho e alugam capital para produzir (é claro que este modelo é irrealista, mas lembre-se de que todo modelo é uma simplificação da realidade que tenta facilitar o nosso entendimento do mundo complexo). Já o modelo de gerações sobrepostas de Diamond difere do anterior na medida em que há uma entrada contínua de novas famílias na economia. Mais uma vez, nenhum dos modelos faz referência à industrialização como processo de enriquecimento.
Seguindo adiante, temos os novos modelos de crescimento econômico, iniciados por Romer e Lucas. Basicamente, eles consideram que a taxa de inovação tecnológica é uma variável endógena, dependendo de fatores como a fração de produto e trabalho devotados à pesquisa e desenvolvimento. Também consideram em seus modelos que o nível de renda é determinado pelo nível de capital humano. Nenhuma palavra sobre industrialização aqui também.
Será que os modelos de crescimento econômico bem estabelecidos na academia estão fora de contato com a realidade? Será que os acadêmicos vivem em uma torre-de-marfim sem olhar para o mundo ao seu redor e acabam não percebendo, portanto, o fato óbvio que o enriquecimento de uma nação requer a sua industrialização? Será que na prática a teoria é outra? Veremos.
2. Consideração empíricas
2.1. Comparando mudanças na estrutura produtiva com mudanças na produtividade intra-setorial
Desde o trabalho seminal de Hsieh e Klenow em 2009, iniciou-se uma leva de pesquisas a respeito da eficiência da distribuição setorial em uma economia. Esse paper em específico concluiu que a China e Índia possuem uma misallocation enorme de fatores de produção e que eles poderiam obter ganhos econômicos somente modificando a forma como os fatores de produção são distribuídos por lá.
Para o Brasil, dois trabalhos a esse respeito foram feitos. Um deles é de Thiago Miguez e Thiago Moraes (aqui). Na tabela 8 desse trabalho, os autores comparam o quanto a produtividade brasileira se alteraria se a estrutura de ocupação dos trabalhadores brasileiros fosse idêntica à estrutura dos países comparados, ceteris paribus. Já na tabela 9, os autores mantêm a mesma estrutura produtiva do Brasil, mas igualam a produtividade setorial do país à dos países comparados. Seguem as tabelas abaixo.
Qual deveria ser o resultado observado caso a hipótese dos adeptos da ideia de que enriquecimento requer industrialização fosse correta? Bom, deveria-se observar que a produtividade brasileira cresceria muito mais caso se igualasse a estrutura ocupacional dos trabalhadores àquela dos países industrializados do que se fosse mantida a mesma estrutura ocupacional e apenas se mudasse a produtividade intra-setorial. Acontece que o oposto disso ocorre.
A produtividade brasileira aumentaria muito mais se, mantendo a mesma estrutura ocupacional, iguala-se a produtividade intra-setorial brasileira a dos países industrializados do que se, mantendo a mesma produtividade intra-setorial, rearranja-se os empregos para priorizar setores manufatureiros.
A imagem abaixo sumariza essa conclusão. Ela mostra o que aconteceria com a produtividade do Brasil se o nosso país:
(i) Barra azul: mantivesse a mesma produtividade intra-setorial, mas igualasse a sua estrutura produtiva àquela dos EUA (barra da esquerda) ou da Alemanha (barra da direita);
(ii) Barra vermelha: mantivesse a mesma estrutura produtiva, mas igualasse a sua produtividade intra-setorial àquela dos EUA (barra da esquerda) ou da Alemanha (barra da direita).
Esse estudo, contudo, não utiliza nenhum índice de paridade de poder de compra para corrigir diferenças de preço entre os países, o que pode levar a cálculos distorcidos de produtividade. Um trabalho que corrije isso é o paper de Veloso et al. Fazendo o mesmo exercício que o mencionado acima, os autores concluem que caso a economia brasileira mudasse a sua estrutura produtiva para emular a estrutura produtiva dos EUA, sem modificar sua produtividade em cada setor, nossa produtividade total aumentaria em 1,68 vezes, ou 68%. Já se mantivéssemos a mesma estrutura produtiva e modificássemos apenas a produtividade em cada setor, nossa produtividade total aumentaria em 5,3 vezes, ou 430%.
Novamente: nos tornaríamos muito mais ricos se focássemos no aumento da produtividade, considerando o nível de industrialização que já temos, do que se focássemos na industrialização (na mudança da nossa estrutura produtiva).
Os gráficos abaixo sintetizam o que foi colocado acima. Eles mostram qual seria a mudança na produtividade brasileira caso igualássemos a nossa estrutura produtiva (gráfico de cima) ou a nossa produtividade intra-setorial (gráfico de baixo) com aquela dos países apresentados em cada uma das barras. Por exemplo, se o Brasil igualasse a sua estrutura produtiva com aquela da Grã-Bretanha, o país teria um aumento na produtividade de quase 2,5 vezes; já se igualasse a sua produtividade intra-setorial com aquela dos EUA, o país teria um aumento na produtividade de mais de 5 vezes.
Perceba que as barras do gráfico de baixo possuem, em geral, magnitudes maiores do que as barras do gráfico de cima, o que mostra que seria mais benéfico para a economia brasileira se o país focasse no aumento da produtividade, e não na mudança da estrutura produtiva.
Em resumo: o que os estudos demonstram é que a produtividade (e, consequentemente, a renda) de um país depende muito mais de como se produz do que o que se produz.
2.2. Averiguando a pauta de exportação de alguns países ricos
Vejamos a pauta de exportação de alguns dos países mais ricos do mundo. Com apenas uma pequena parcela de produtos industrializados exportados, Austrália é um exemplo de país rico que não se industrializou. A pauta de exportações (que serve como uma proxy para produção) desse país em 2022 consistiu basicamente de produtos primários. Mais da metade do valor agregado exportado foi produto mineral, com carvão representando 26%; minério de ferro, 21%; e gás liquefeito de petróleo, 16%.
Uma situação parecida é observada na Nova Zelândia, outro país rico. Nesse país, quase metade dos produtos exportados em 2018 consistiu de produtos à base de leite. De fato, a exportação de industrializados é quase nula.
Esses resultados são um completo enigma para os defensores da tese de que enriquecimento requer industrialização.
3. Mas e os problemas econômicos causados pela produção de produtos primários?
3.1. O problema da restrição externa
Uma crítica comum à manutenção de um país baseado numa matriz de produção primária é a de que países primário-exportadores possuem uma baixa elasticidade-renda das exportações e uma elevada elasticidade-renda das importações. Isso significa que à medida que os países não-industrializados enriquecem, eles tendem a exportar apenas um pouco mais de bens primários, ao passo que, ao mesmo tempo, eles tendem a comprar muitos bens industrializados. Isso configuraria um problema constante na balança de pagamentos dos países primário-exportadores.
Ocorre que essa conclusão só é válida se você desconsiderar o câmbio real, que é a multiplicação entre o câmbio nominal e a razão entre os níveis de preços estrangeiros e internos. Caso o câmbio real tenha margem para variar e a soma das elasticidades-preço das exportações e importações, em módulo, seja maior do que 1 (satisfazendo a condição de Marshall-Lerner), então mesmo um país primário-exportador, que teoricamente tem uma razão entre as elasticidades-renda das exportações e importações menor do que 1, pode crescer mais do que o mundo sem restrição no balanço de pagamentos.
Crises geradas por desequilíbrios no balanço de pagamentos eram comuns no passado porque as taxas de câmbio nominal eram, majoritariamente, fixas, fazendo com que a variação no câmbio real dependesse, basicamente, das variações nos preços. Como os preços são rígidos, então as variações no câmbio real eram lentas demais, impedindo ajustes rápidos para evitar desequilíbrios no balanço de pagamentos. Porém, hoje em dia, como grande parte dos países possuem taxas flexíveis de câmbio nominal, então o ajuste no câmbio real é muito mais rápido, fazendo que problemas no balanço de pagamento sejam, virtualmente, nulos.
3.2. O problema dos termos de troca
Segundo segue a história, os produtos primários mantêm um preço relativamente baixo e estável ao longo do tempo, enquanto produtos industrializados possuem um preço cada vez mais alto comparado aos produtos primários, devido ao enorme grau de valor agregado neles embutido. Isso, com o tempo, geraria uma deterioração dos termos de troca e, em última instância, um empobrecimento dos países primário-exportadores caso eles tomem parte no comércio internacional. Isso também estaria relacionado ao problema da restrição externa.
Acontece que a deterioração dos termos de troca aparece em todo lugar nas teorias cepalinas, menos nos dados. O livro “International Economics“, de Dominick Salvatore, vem a nos ajudar. A tabela da página 96 desse livro mostra que não há nenhuma deterioração dos termos de troca dos países não industrializados. O que parece haver é algo praticamente aleatório: uma hora, os termos de troca são mais favoráveis aos países industrializados, outra hora, aos países não industrializados.
Ou seja, a tese cepalino de deterioração secular nos termos de troca dos países primário-exportadores não parece se adequar bem aos dados.
4. Mas se enriquecimento não requer industrialização, então por que a maioria dos países ricos são industrializados?
Primeiro que isso é cada vez menos verdadeiro: países ricos estão passando por um processo drástico de desindustrialização, com a mão de obra migrando fortemente para o setor de serviços.
Mas, respondendo a pergunta, a resposta é basicamente a seguinte: educação. Todos os países ricos possuem uma população altamente educada. Para se industrializar (e falo aqui de setores industriais sofisticados, como a indústria automobilística, a da química fina, de eletrônicos, etc.), um país precisa de engenheiros e cientistas altamente qualificados. Os países ricos, ao se educarem, obtiveram esse capital humano necessário, e acabaram se industrializando.
Então não é que a industrialização foi a causa do crescimento, mas sim o meio pelo qual o crescimento se deu. A indústria é um setor intensivo em capital humano, e, sendo assim, países abundantes em capital humano irão se especializar no setor industrial — nada mais que isso. Essa explicação provém do bom e velho modelo de Heckscher-Ohlin.
Em outras palavras, o crescimento econômico é causado por acúmulo de capital físico, humano, desenvolvimento tecnológico e aumento da eficiência. Essas são as causas do crescimento. A indústria foi somente o meio pelo qual o crescimento se deu. Se não fosse por ela, teria sido por outro setor.
Países ricos que possuem abundância em terras férteis e/ou recursos naturais e pequena densidade populacional, como Austrália e Nova Zelândia, acabaram se especializando na produção de produtos primários. Para tanto, eles utilizam o estado-da-arte da tecnologia para produção desses bens, pois também possuem um alto nível de educação. Por isso mesmo são ricos, mesmo não sendo tão industrializados. Novamente, isso é explicado pelo modelo de Heckscher-Ohlin.
5. Conclusão
Em suma, os modelos de crescimento econômico bem estabelecidos nada têm a dizer sobre o que um país deve produzir para ser rico, e as evidências empíricas tendem a corroborar isto. O que determina a riqueza ou a pobreza de um país é a produtividade. Tornar nossa produção mais industrializada até poderia aumentar um pouco nossa renda, como colocado nos gráficos acima; porém, o que realmente faria diferença na renda do Brasil seria o foco no aumento da produtividade setorial — independentemente do setor.
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