“Não existe nada mais assustador do que a ignorância posta em ação.”
– Johann Wolfgang von Goethe
No debate público brasileiro é comum as pessoas tomarem posições claras e assertivas sobre basicamente tudo. Essa “tudologia” vai desde moralidade e ética até física nuclear e direito internacional, passando por administração de empresas, contabilidade, etc. Dentre os temas mais afetados pela “tudologia” está o tema das políticas econômicas, em especial as políticas macroeconômicas.
Dentre as políticas macroeconômicas, a política monetária é uma das mais afetadas. Todos têm uma opinião sobre qual deveria ser o nível de juros, quanta moeda deveria existir em circulação, entre outras coisas. Em particular, muita gente acredita que a política monetária é apenas uma questão de determinação de juros; como se o presidente do Banco Central possuísse uma alavanca e que, com o movimento da mesma, conseguisse controlar os indicadores monetários de uma economia nacional. Contudo, isso é um erro do senso comum e eu desejo mostrar a razão de tal erro.
Um erro comum em análise econômica é considerar que todo tipo de “desequilíbrio” de uma economia pode ser solucionado por meio de uma simples intervenção do governo. Todavia, esse raciocínio ignora que as ações do governo também podem apresentar falhas. As falhas de governo surgem, em geral, como consequência de limitações epistêmicas ou organizacionais no âmbito do Estado.
Com relação à política monetária, uma justificativa que pode ser dada para sua implementação é que a autoridade monetária poderia conduzir políticas macroeconômicas de estabilização das flutuações dos indicadores econômicos, como PIB, inflação e câmbio. Contudo, a autoridade enfrenta uma restrição na possibilidade de conduzir essa política de maneira ótima. Para entender essa restrição, é necessário entender as relações entre política econômica e produto (PIB). É possível dizer que os efeitos de uma política econômica sobre o produto de uma economia podem ser expressos como:
Y_{t+1} = Y_t + \beta
Onde Y_{t+1} é o produto na presença de uma política, Y_t é o produto do período anterior à implementação dessa política e \beta é a medida dos efeitos da política econômica sobre o produto combinadas no momento t. Uma vez que buscamos saber se dada política pode ou não estabilizar uma economia, a medida mais apropriada será a do desvio-padrão dos produtos em torno de suas médias (Friedman, 1953). Quanto maior o desvio para dado termo, maior é a sua instabilidade. Uma vez que a autoridade monetária busca uma política cujos efeitos estabilizem a renda de uma economia em um nível ótimo, então é aceitável dizer que ela busca um cenário onde o desvio de Y_{t+1} seja menor do que a variação de Y_t dada a medida dos efeitos de política \beta. A fórmula da variância de Y_{t+1} em função das variâncias de Y_t e \beta é dada por:
\sigma^2_{Y_{t+1}} = \sigma^2_{Y_{t}} + \sigma^2_{\beta} + (2\omega Y_t \beta) \sigma_{Y_{t+1}} \sigma_{\beta}
Onde \omega indica o coeficiente de correlação entre Y_t e \beta , de forma que ele determinará se as políticas tomadas na ordem de magnitude \sigma_{\beta} irão gerar um movimento na mesma direção ou não na variância de Y_t. Considerando que tal correlação ocorre em termos probabilísticos, é possível dizer que \omega Y_t \beta irá variar de -1 a +1. Caso seja -1, temos o cenário ideal onde \beta está negativamente correlacionado com a variância de Y_t. Já para o caso de uma correlação perfeita, +1, temos o cenário de extrema desestabilização, onde \beta está altamente correlacionado com Y_t. No caso em \omega Y_t \beta = 0, temos um cenário sem correlação precisa e onde as variáveis podem convergir ou não. Uma vez que somente as correlações negativas irão gerar estabilização, é possível que as políticas gerem desestabilização econômica. Por essa razão, existe uma restrição natural no tipo de políticas que podem ser adotadas por uma autoridade monetária (essa é uma das bases teóricas para a observação normativa de Friedman de que a política monetária deveria ser guiada por regras automáticas).
Essa crítica, contudo, dá apenas uma relação mecânica entre política e produto. Ela não fala sobre as possibilidades de falha das políticas econômicas que podem surgir devido a variações de \beta. O modelo anterior pressupõe que os efeitos das políticas econômicas sejam dados, mas eles podem sofrer variações devido ao fato de que os agentes econômicos respondem de formas diferentes aos incentivos criados por essas mesmas políticas.
Kydland e Prescott (1977) notam que um dos erros das políticas macroeconômicas é supor que os agentes formam suas expectativas apenas de maneira ad hoc com base em preços passados. Nesse cenário, um controle mecânico dos agregados macroeconômicos é relativamente fácil, pois basta a autoridade estimar as variáveis correntes e realizar uma valoração dos efeitos de uma dada política sobre os valores futuros das mesmas. Contudo, se os agentes forem capazes, com a informação de que dispõem, de antecipar os objetivos das políticas econômicas, então qualquer tentativa de se estabelecer um controle econômico ótimo tenderá ao absurdo de lutar contra as próprias variáveis que busca controlar.
Essa restrição se manifesta sobretudo na forma como a autoridade monetária lida com o trade-off entre desemprego e inflação. Em um modelo de preços rígidos simples, onde as firmas determinam seus preços com base no preço de suas firmas concorrentes, a taxa de inflação será determinada pela variação percentual de ajuste dos preços da firma em relação a suas concorrentes com base na demanda anterior. Todavia, essa demanda anterior pode ou não estar alta ou baixa em relação ao produto potencial da economia em condições de pleno emprego. Assim, podemos supor que as firmas não precificam essa informação. Logo, a taxa de inflação se comportará segundo a Curva de Phillips, onde:
\pi = f(Y_{t-1}, Y_p)
Onde \pi é a taxa de inflação, Y_{t-1} é o produto agregado efetivo do período anterior e Y_p é o produto potencial. Contudo, em tal modelo os agentes precificam somente com base em mudanças nos preços correntes, ignorando que eles podem formar seus preços com base na expectativa racional de um aumento futuro de preços dadas certas informações presentes. O conceito de expectativa racional aqui empregado não implica que eles irão fazer previsões perfeitas sobre o futuro, mas sim que eles, dado algum conhecimento próprio, irão formar expectativas sobre como a economia irá se comportar considerando determinada informação corrente (Sargent e Wallace, 1973). Nesse cenário a taxa de inflação já não seria mais determinada pela Curva de Phillips, mas pela relação das expectativas dos agentes, em que:
\pi = f( \pi^e, Y_{t-1}, Y_p)
Onde \pi^e é a taxa de inflação esperada pelos agentes no período t+1. Assim, a taxa de inflação e, por consequência, o trade-off entre inflação e desemprego não dependerá apenas de variáveis controláveis, mas também da expectativa dos agentes sobre os rumos da política econômica. Kydland e Prescott observam que, nesse cenário, se a taxa esperada de inflação se igualar à taxa estimada pela autoridade monetária, então os indivíduos irão racionalizar as suas avaliações da conjuntura macroeconômica com base no portfólio de índices utilizado pela autoridade monetária em suas estimativas. Isso gera um cenário delicado para a condução da política monetária, pois um desvio na taxa de inflação pode ser interpretado como uma futura redução de poder de compra da moeda pelos agentes.
Assim, uma autoridade monetária estaria limitada em suas possibilidades de ação pelas expectativas dos agentes econômicos, de forma que teria que agir conforme as mesmas. Poderia ser argumentado que uma política poderia se aproximar do seu ideal se a autoridade monetária usasse indicadores de expectativas de mercado para guiar a formulação de ações estabilizadoras. Entretanto, esse argumento ignora as falhas que podem surgir devido a problemas epistêmicos. Os bancos centrais são organizações diferentes daquelas de um sistema monetário privado (mercado bancário) essencialmente devido a duas diferenças: (I) os bancos centrais são, por definição, uma forma de firma monopolista na oferta de moeda; e (II) eles não operam segundo critérios de lucros e perdas, mas sim segundo impulsos políticos discricionários ou regras de política monetária.
A consequência dessas duas características dos bancos centrais é que eles operam em um ambiente exógeno ao mercado, no sentido de que ele não está envolvido no mesmo processo de lucros e perdas que os outros agentes (Cachanosky e Salter, 2020). Assim, ao contrário dos agentes de mercado que captam informações do mercado pelo processo de atuar dentro dele, os bancos centrais, para fins de efetividade de suas políticas, tem que aprender sobre o mercado recolhendo informações sobre o mesmo e utilizando essas informações como proxies para o tipo de conhecimento que os agentes de mercado já possuem. Essa restrição de conhecimento impõe dois problemas aos bancos centrais: (I) como definir de maneira adequada qual seria a política monetária adequada para um dado cenário; e (II) quais informações usar para substituir os sinais de preço do mercado para desenhar tal política?
Essa restrição se mantém mesmo no caso de um banco central que tente seguir estritamente as expectativas de mercado expressas em seus indicadores ou tente transmitir a política monetária via mercado bancário. Mesmo nesses casos ele só consegue fazer isso impondo de maneira exógena sua taxa de juros; dado que para ele a taxa natural de juros não é tacitamente conhecida como é para os agentes do mercado. Ou seja, o banco central nunca toma o equilíbrio do mercado monetário, ele racionaliza tal equilíbrio ao atuar como maior agente do sistema.
Tal limitação epistêmica se torna ainda mais crítica quando se considera um cenário onde existe uma dinâmica complexa. Orphanides e Williams (2006) demonstram que mesmo uma política monetária baseada em regras e informações de mercado tem limitações e possibilidades de falhas devido a problemas de conhecimento, sobretudo ao estimar os níveis de juros e desemprego que deveriam ser considerados naturais. Para realizar tais políticas, os banqueiros centrais precisam estimar as taxas naturais em tempo real para calibrar o\beta ótimo para dada política. Todavia, se tal processo tiver certo grau de incerteza, o estimador tenderá a ser defeituoso e a política será inadequada para fins de estabilização. Essa dinâmica fica ainda mais complicada se for levado em conta um cenário onde os agentes econômicos formam expectativas por meio de aprendizagem através de dados finitos e onde eles tomam os dados de série temporal com certos pesos subjetivos. A aprendizagem em um modelo de expectativas racionais está associada com uma maior volatilidade dos indicadores e persistência de erros de política monetária.
Apesar dessas limitações epistêmicas serem consideráveis, é interessante observar que mesmo no caso pouco provável de a autoridade monetária conseguir superá-las ainda assim existiria uma limitação organizacional importante sobre suas ações. O primeiro aspecto dessa limitação organizacional é com relação ao tamanho do banco. Bancos centrais são organizações hierárquicas de grande escala e escopo e que superam em tamanho todos os agentes dentro de um mercado monetário. Contudo, eles não podem possuir um tamanho muito grande devido aos problemas de coordenação que seriam gerados nesse caso. Klein (1996) pontua que um dos limites superiores para o tamanho de uma firma é dado pelo problema dos preços de transferência. Uma organização que seja estruturada como uma corporação integrada composta por núcleos administrativos semi-autônomos enfrenta o problema de como alocar recursos de uma unidade para outra; como no caso de um banco central alocando recursos para suas unidades espalhadas por diferentes regiões ou mercados de um país. Esse problema pode ser expresso por uma série de questões: como valorar os recursos que estão sendo alocados? Qual o seu preço relativo? Em qual proporção ele deve ser alocado?
Para solucionar essas questões, a administração central da organização dificilmente pode se basear em seus preços internos, mesmo se esses forem gerados por barganha entre as unidades, pois eles irão expressar de maneira imperfeita os custos de oportunidade dos usos sociais alternativos de tais recursos em comparação com os preços de mercado. Por essa razão, tal organização irá necessitar de um preço de mercado externo que possa usar como base de referência para seu preço de transferência interno. Isso gera a restrição de que nenhuma organização pode ser grande demais ao ponto de internalizar todos os mercados. No caso das autoridades monetárias, isso se traduz no fato de que elas jamais poderão substituir adequadamente os mercados financeiros e bancários e sempre terão que recorrer a eles em busca de informações para alocações de moeda e crédito entre mercados.
Outro problema organizacional que as autoridades monetárias podem enfrentar é uma situação especial chamada de problema dos múltiplos principais (Oritani, 2010). Diferentemente dos bancos privados que tem que responder essencialmente a dois principais (depositantes e acionistas), os bancos centrais tem que responder a vários principais: o público, o legislativo, o executivo, o mercado financeiro e outros bancos centrais (estes últimos se configuram como principal devido ao fato de que muitos deles oferecerem serviços de custódia de divisas entre si, possuem obrigações uns com os outros e transacionam em operações de câmbio).
Teoricamente isso seria bom, pois impediria que o banco central fosse capturado pelos interesses de um único principal em detrimento dos demais, todavia em realidade tal problema significa que o banco central terá que coordenar múltiplos interesses conflitantes e ponderar qual é o mais adequado enquanto que o banco privado só necessita se preocupar com a maximização de seus resultados. Tal questão de ponderação e influência de múltiplos interesses na sua tomada de decisão pode levar a política monetária a se tornar inconsistente com o tempo.
Por último, os problemas organizacionais, sobretudo no caso de governança pública, acabam gerando problemas de natureza política. No caso das autoridades monetárias, o principal óbice político está nos usos das funções micro e macroeconômicas dos bancos centrais para fins fiscais. Devido ao fato de existir uma dificuldade do público em identificar se as causas de um processo inflacionário são reais ou monetárias, um governo que deseje expandir seu poder de consumo discricionário ou receitas via senhoriagem pode encontrar um cenário favorável mesmo no caso da existência de um banco central conservador. Buchanan e Wagner (2000) notam que os membros do corpo político podem atuar como free riders da estabilidade de preços e incorrer em déficits inflacionários, pois será responsabilidade do banco central e não do tesouro manter a estabilidade de preços. Isso gera a questão de que podem existir incentivos para promover menos estabilidade de preço do que seria adequado dado que as ações estabilizadoras do banco central serão anuladas pelas ações da política fiscal.
Além disso, o governo pode usar dos poderes regulatórios das autoridades monetárias como fonte de receita fiscal. A principal forma deste problema é quando o governo utiliza as regulações bancárias da autoridade monetária como uma forma de alavancar os títulos públicos por meio da instituição de reservas bancárias obrigatórias. Reinhart e Rogoff (2009) observam que essa forma de repressão financeira é uma forma de tributação indireta comum nas evidências históricas. Essa medida faz com que os cidadãos de um país sejam obrigados a depositar seus recursos em determinado número de bancos e faz com que os bancos, por sua vez, sejam forçados por lei a terem reservas mínimas em títulos da dívida pública. Esse esquema permite que o governo se financie com os recursos dos depositantes a taxas extremamente baixas ao custo de vincular a estabilidade do setor bancário à solvência das contas públicas. Essas falhas políticas acabam por justificar que exista uma certa independência das autoridades monetárias em relação à política de governo. Contudo, até onde essa separação é feita por instituições eficientes é uma questão em aberto (Buchanan e Wagner, 2000).
Dadas todas essas questões colocadas aqui, um cidadão prudente e racional deveria ao menos ser um pouco mais cético com relação aos discursos fáceis de populistas de que a política monetária é algo simples de se resolver ou mesmo de se entender. As coisas sempre são mais complicadas do que realmente parecem.
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