Por qual razão deveria existir um Banco Central?

Introdução

Quando estudamos economia monetária dificilmente pensamos nos pressupostos que são assumidos naquilo que nos é ensinado. O aluno de graduação aprende como interpretar mudanças nas curvas IS-LM-BP, como ocorre as decisões de determinação da taxa de juros, como essa mesma taxa afeta as decisões dos agentes econômicos e como teoricamente as decisões de política monetária tem efeito sobre o PIB. Todavia, dificilmente ele fará a seguinte pergunta: é realmente tudo isso necessário?

Existe um problema de falta de pensamento contrafactual no ensino de macroeconomia. O aluno é ensinado que o natural é que a oferta de moeda seja determinada de maneira exógena por uma instituição externa ao mercado (no caso, o Banco Central ou outra forma de autoridade monetária). Isso é estranho dentro da economia, pois todas as outras áreas partem de cenários hipotéticos até chegar em casos mais concretos.

Nenhum estudante de organização industrial parte já aprendendo que o natural é uma estrutura de mercado oligopolista. Primeiramente, ele deve aprender o cenário hipotético da competição perfeita e a partir daí ir derivando as consequências teóricas de modificações a partir desse cenário. Somente assim ele conseguirá entender adequadamente o funcionamento de outras estruturas de mercado, como a competição entre oligopólios. O mesmo se aplica a explicar por qual razão ensinamos o modelo de livre-comércio para os alunos, ainda que nosso comércio internacional esteja anos-luz longe desse cenário1.

Dado isso, por qual razão ensinamos aos alunos primeira e exclusivamente um cenário onde existe um Banco Central? Ao fazer isso estamos privando o aluno de pensar o que aconteceria se não existisse um Banco Central, se os agentes do mercado regulassem a oferta de meios de troca de outras formas. A falta desse pensamento é o que corta a originalidade do pensamento monetário nacional e, na minha visão, impede que o aluno faça a integração dos seus conhecimentos de macroeconomia e finanças.

O objetivo do presente artigo é fazer aquelas que deveriam ser as primeiras questões de qualquer curso de economia monetária: por qual razão deveria existir um Banco Central? Deveria o sistema financeiro ser realmente regulado? Até que ponto os bancos privados podem substituir a autoridade monetária de maneira eficiente?

Deveria existir um sistema com várias moedas?

Para começar nossa lição devemos fazer a seguinte pergunta: qual seria o problema de um sistema monetário onde as pessoas utilizam várias moedas ao mesmo tempo? Por qual razão os agentes não poderiam usar simultaneamente dólares, euros, ienes, bitcoins e pedaços de platina em suas transações do dia-a-dia?

Tal sistema monetário naturalmente teria alguns problemas associados a seu funcionamento. O mais imediato desses problemas é a dificuldade de realizar trocas em grandes escalas geográficas se cada banco emitir sua própria moeda. Mundell (1961) nota que um grande número de moedas é inconveniente para o comércio em grandes áreas, pois isso afeta a função de transação da moeda ao criar custos de transação. Em um mundo desses existiria o custo de que qualquer transação de comércio entre duas áreas com moedas diferentes teria que envolver múltiplas conversões de preços cambiais, de tal forma que cada mercadoria teria que ser cotada em termos de todas as outras moedas segundo a seguinte regra de três:

Camb(M) = \frac{QM(QM-1)}{2}

Onde Camb(M) é a quantidade de preços de moeda ou taxas de câmbio de tal economia e QM é o número de moedas. Assim, em um exemplo hipotético, uma economia que possua 100 moedas teria um total de 4950 taxas de câmbio para cada bem.

Contudo, tal problema de ajustar o preço de cada mercadoria a uma taxa de câmbio poderia ser evitado se uma unidade comum fosse adotada e segundo a qual todas as moedas seriam cotadas. Por essa razão é racional que tal economia tenha suas moedas lastreadas em algum numerário ou conjunto de numerários comuns segundo o qual todas elas possam ser cotadas, como o ouro2. Assim, o sistema monetário descentralizado com várias moedas ainda poderia existir desde que suas moedas fossem lastreadas em um conjunto de mercadorias de amplamente aceito.

Além disso, pela lógica do argumento anterior, não faria sentido existir uma taxa cambial fixa entre moedas regionais. Tal regime implicaria que uma mudança de demanda entre duas regiões levaria a desemprego em uma e inflação na outra. Por essa razão, Mundell pontua que existe mais lógica para um regime de taxas cambiais flutuantes entre moedas regionais do que entre moedas nacionais.

O setor bancário é naturalmente instável?

Outro problema surge, entretanto, devido à natural instabilidade do setor bancário. A grande fragilidade do setor bancário enquanto agente de produção econômica é que seu output configura formas de dívidas de curto prazo, como notas bancárias, depósitos e títulos. O problema com essa forma de dívida é quando ela é utilizada em transações que exigem que seu valor de face seja mantido igual a seu valor de mercado.

Problemas de eficiência surgem quando analisamos transações feitas com base em dívidas de curto prazo. O primeiro é a liquidação dessas dívidas. De que forma é feita? Quanto tempo leva? Onde são realizadas?

Para solucionar esse problema uma opção de put sempre foi colocada nas notas bancárias: a possibilidade de conversão das notas em algum numerário líquido, como moedas de ouro e prata. Contudo, mesmo com essa possibilidade, poderia haver riscos de liquidez devido à distância entre o portador das notas e o local de conversão mais próximo.

O outro problema se deve ao fato de as notas serem transacionadas com múltiplos descontos devido à dificuldade de atestar a validade de seu valor de face. Como saber se o banco emissor possui mesmo os valores para compensar aquela nota? Devido a esse problema, poderia ocorrer uma divergência entre valor de face e valor de mercado.

Dois argumentos se originam a partir dessa visão da instabilidade do setor bancário. O primeiro é o argumento de Minsky (1986) de que as crises bancárias tendem a acompanhar as flutuações dos ciclos econômicos. Quando ocorre uma redução da atividade real da economia ocorre uma corrida contra o sistema bancário para a liquidação das dívidas de curto prazo, notavelmente os depósitos. Contudo, os bancos investem a maior parte de seus recursos captados em ativos de longo prazo e não tão líquidos quanto suas dívidas. Como resultado, existe uma divergência entre as necessidades de curto prazo da economia e a capacidade do banco de liquidar seus ativos. Logo, pelo ponto de vista de Minsky, o sistema bancário seria pró-cíclico e tenderia a piorar as flutuações econômicas.

Esse argumento, contudo, não é corroborado pelas evidências empíricas disponíveis. Como observa Calomiris (2009), as crises bancárias não acompanham sempre as flutuações dos ciclos econômicos e não são constantes ou ocorrem da mesma maneira em todos os lugares e períodos.

A razão para a amplitude do argumento de Minsky é sua confusão ao tratar sobre as crises bancárias como crises financeiras sistêmicas. Quando se define crises bancárias é necessário ter atenção especial para não confundir tal fenômeno com a categoria mais ampla de crises financeiras, que podem ou não ser acompanhadas de crises bancárias, e não generalizar a quebra de alguns bancos como um fenômeno sistêmico. Para não cometer esse erro é necessário se ter uma definição de crises bancárias que a diferencie de outros fenômenos. Por essa razão crises bancárias são melhor definidas como ou a ocorrência de insolvência dos ativos bancários ou a ocorrência de pânicos bancários3.

Seguindo essa definição e olhando para os casos históricos de crises bancárias, Calomiris observou que tais crises são mais comuns em alguns lugares do que em outros e ocorrem com um período de frequência maior em certos países do que nas outras partes do globo. Em verdade, analisando as 16 grandes crises bancárias entre 1870 e 1913, Bordo (1990) observou que todas elas ocorreram exclusivamente nos Estados Unidos e em nenhuma outra grande economia. Essas diferenças em espaço e tempo apontam que as causas de tais crises se encontram em fatores endógenos particulares de cada país e não em características intrínsecas do setor ou na constância dos ciclos econômicos.

O segundo argumento, mais refinado e consistente com a definição anterior de crises bancárias, é o que foi colocado por Diamond e Dybvig (1983). Segundo o modelo desses autores, existe um problema de assimetria informacional entre bancos e depositantes. Os bancos possuem informação privada a respeito da qualidade de seus empréstimos e, portanto, os depositantes não tem como ter certeza acerca da segurança de suas reservas. Devido a esse problema de assimetria, os depositantes não tem como discriminar adequadamente entre bancos solventes e insolventes unicamente pela marca. Tal condição implica que quando rumores surgem no mercado acerca da insolvência de um banco isso pode levar os indivíduos a suspeitarem da solvência de bancos em bom estado e forçarem estes a liquidar seus ativos para garantir os depósitos, dado que não podem acessar as informações reais sobre solvência. Como resultado, bancos em boas condições podem ser levados a perder reservas em meio a um pânico bancário e quebrarem juntamente com os bancos ruins.

Além disso, os portadores das notas bancárias podem não distinguir corretamente entre um processo inflacionário de demanda e de oferta. Um choque negativo de oferta que afete o produto da economia pode ser confundido com uma inflação de demanda, pois ambos os processos vão ter como efeito uma redução da renda real. Em consequência dessa confusão, uma moeda bancária saudável pode correr o risco de sofrer um pânico mesmo que a causa não esteja em sua emissão excessiva.

Esse problema gera então o segundo problema do modelo de Diamond e Dybvig: os saques sequenciais. Nesse cenário, considerando que os agentes do sistema possuem direitos uns sobre os outros, os bancos de uma localidade, ao enfrentar um choque de saques por parte do público, irá demandar suas reservas para com um banco em outra localidade, que por sua vez demandará de um banco em outra localidade e assim por diante. Assim, os saques sequenciais irão drenar os vários bancos de suas reservas e poderão transformar um pânico bancário regional em um pânico sistêmico.

Apesar do modelo de Diamond e Dybvig ser útil para mostrar que, em um mundo com assimetria de informação, os pânicos estão ligados a sinais específicos que afetam a valoração dos ativos bancários, ele possui uma limitação: seus resultados teóricos só são mantidos se a restrição dos saques sequenciais for mantida como hipótese. Se um pânico bancário local tiver a possibilidade de ser solucionado por meio do próprio sistema de empréstimos interbancário, pelos saldos das agências fora daquela localidade ou por mecanismos de comunicação parcial, tal pânico não implicará em um quadro sistêmico de crise bancária. O banco conseguirá honrar seus passivos de notas emitidas por meio da compensação de saldo e o sistema continuará estável. Esse é o mecanismo de estabilização das moedas bancárias e uma das razões, segundo Calomiris e Gorton (1991), pela qual pânicos bancários são eventos historicamente raros.

O problema da política macroprudencial e o Banco Central enquanto agente microeconômico

Essas falhas de mercado relacionadas com a instabilidade do setor bancário podem ser utilizadas como justificativa suficiente para a criação de um banco central. A razão para isso está relacionada com as funções desempenhadas por essa organização. Goodhart (1988) nota que os bancos centrais devem ser vistos pelo prisma de que eles desempenham duas funções: as funções macroeconômicas clássicas (política monetária e cambial) e as menos comentadas funções microeconômicas (regulação do sistema financeiro e a oferta de liquidez emergencial). Considerando que as funções macroeconômicas se tornam irrelevantes em um mundo onde bancos podem ofertar moeda endógena de maneira ordenada, são as funções microeconômicas que dão a justificativa racional para a existência de um banco central.

Em razão do argumento microeconômico das falhas de mercado, Goodhart pontua que existe uma justificativa natural para a formação de um sistema monetário centralizado. Essa justificativa está relacionada com o problema do monopólio natural. Segundo essa visão, um banco privado tenderia naturalmente a concentrar as reservas do sistema devido a possíveis ganhos de escala em captação de recursos e empréstimos. Essa concentração faria esse banco se tornar o maior detentor de liquidez do sistema e, consequentemente, se tornaria o responsável por garantir a estabilidade de todo o sistema bancário. Em um cenário onde esse banco seja uma instituição privada maximizadora de lucro, o poder de mercado que ela detém sobre a liquidez do sistema a faria agir contra a eficiência do mesmo, pois tal banco teria o incentivo de usar de restrições sobre a liquidez para limitar a disponibilidade de reservas para seus concorrentes, tornando os bancos rivais mais frágeis e propensos a quebrar. Tal falha de mercado tornaria imperativo, em nome da eficiência do sistema bancário, criar uma organização não-lucrativa responsável por prover o sistema com liquidez e regular as práticas de seus membros.

Uma dificuldade com esse argumento naturalista para a existência de um banco central é que ele desconsidera a possibilidade de formas institucionais alternativas. Paniagua (2017) observa que o argumento da existência de uma tendência natural de concentração das reservas em alguns bancos não implica que o sistema esteja naturalmente evoluindo para um banco central.

A razão para isso é que o ambiente institucional e regulatório no qual os bancos privados atuam deve ser levado em conta. Diferentes normas legais e regulatórias irão gerar diferentes respostas e organizações sobre como competir e cooperar no setor. Os membros de um sistema bancário podem escolher, por exemplo, formar uma associação para lidar com problemas sistêmicos, como assimetria de informação ou alocação de liquidez, devido a isso ter ganhos de escala e redução de custos de monitoramento4. Essa associação pode tomar a forma tanto de um banco central como de uma associação privada. Logo, uma análise sobre as falhas de mercado do setor bancário deve ter uma compreensão dos incentivos à luz do ambiente institucional no qual a ação coletiva do setor é tomada.

Calomiris e Haber (2014) mostram, contudo, que existe um tipo de falha de mercado que faz com que a presença do governo no setor bancário seja inevitável. Para evitar riscos de crédito e liquidez inerentes à sua atividade de transmutação de dívidas ao longo do tempo, o banco irá necessitar criar reservas para atender eventuais execuções de obrigações. Essas reservas poderão ser criadas por retenção de parte dos depósitos correntes ou de capital próprio do banco, porém elas são mais comumente criadas por meio do aumento no número de depósitos ou por captação de capital social por meio da venda de ações a investidores. Essa solução, contudo, levanta uma questão: por qual razão deveria esses agentes confiarem recursos aos bancos?

O risco dessa operação sob o ponto de vista do investidor minoritário é mais óbvia5. O banco e seus controladores majoritários poderiam investir os recursos captados em empréstimos ou ativos ruins e comprometer os retornos futuros para o investidor ou, mais grave ainda, as perdas sofridas pelo banco poderiam ser responsabilizadas junto a esses investidores minoritários.

Usualmente esse problema é resolvido por meio da instituição da responsabilidade limitada aos investidores. Todavia, a responsabilidade limitada só pode ser garantida contratualmente pelo Estado; geralmente por meio da carta de autorização bancária6. Outro problema que pode surgir é que tanto acionistas quanto depositantes irão necessitar de mecanismos que impeçam os controladores do banco de se aproveitarem de uma assimetria de informação para capturar rendas do banco por meio de fraude ou pela prática de “tunneling”, que é uma prática de desviar recursos de uma organização para empresas associadas a seus membros (no caso bancário, isso se manifesta na alocação de empréstimos favorecidos para empresas onde os controladores possuem participação acionária ou são sócios).

Esses problemas de governança fazem com que a estabilidade do setor bancário seja vinculada à capacidade do Estado de utilizar o monopólio legal da força para assegurar direitos de propriedade e regular práticas de gestão. Assim, a presença de alguma organização estatal com as funções microeconômicas de um banco central se torna inevitável na maioria dos casos, mesmo que a justificativa para a existência e execução de uma política monetária não exista.

1. O professor Josh Hendrickson fornece uma excelente explicação da razão pela qual esse é o método correto de ensinar economia neste texto.

2. É por essa razão que o sistema monetário internacional, mesmo seguindo teoricamente o regime de câmbio flutuante, não apresenta esse problema. Apesar das moedas flutuarem entre si, o dólar americano atua como unidade comum que unifica os vários preços.

3. Essa definição é dada por Gorton (2020).

4. Esse é o caso histórico do Sistema de Suffolk.

5. Os depositantes podem ser vistos como investidores minoritários do banco, apesar de isso ser uma visão reducionista e debatível.

6. O licenciamento bancário também é conhecido como bank charter.

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Publicado originalmente aqui.

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