A consolidação de uma nova era? Destruição criativa e inovação farmacêutica

Há quase 50 anos tinha início a Conferência de Asilomar. As recentes inovações tecnológicas traziam um importante dilema que precisava ser debatido: quais deveriam ser os limites da atuação humana na genética? No espaço de poucos anos, a clonagem, o sequenciamento genético e a técnica do DNA recombinante tinham se tornado realidade, e o balanço entre os inegáveis benefícios e o potencial perigo ético precisava ser encontrado. Em um notável caso de autorregulação, os 140 cientistas reunidos estabeleceram as regras para a continuidade da pesquisa genética.

Essas tecnologias eram simples, porém disruptivas. Na década de 60 dávamos os primeiros passos. Dentro de um laboratório na Universidade de Stanford, utilizou-se do próprio maquinário celular para unir trechos de DNA de diferentes organismos, formando um material genético híbrido. A técnica ficou conhecida como DNA recombinante. Com esse avanço pensamos além: e se transferíssemos um gene para dentro de um outro microrganismo? Em maio de 1974, essa barreira foi quebrada e inserimos um gene de uma rã dentro de uma bactéria. Assim, começávamos a manipular a genética a nosso favor.

Você, leitor de um site de economia, pode estar se perguntando: qual é a aplicabilidade de transferir um gene de uma rã para uma bactéria? Veja bem, já tínhamos a capacidade de produzir a Insulina desde o final da década de 20. Dentro das fábricas da farmacêutica Eli Lilly, 7 toneladas de pâncreas de porcos e vacas eram liquefeitos para que 1 kg de insulina fosse produzido. O método era ineficiente e quase que medieval, mas seria revolucionado com as recentes inovações tecnológicas. Se transferíssemos os genes responsáveis pela produção da insulina para uma bactéria, poderíamos transformá-las em verdadeiras fábricas biológicas? Com a união entre dois professores universitários, Stan Cohen, da Universidade de Stanford, e Herb Boyer, da Universidade da Califórnia, e 100 mil dólares de investimento de capital de risco, era possível. Assim, foi concebida uma das mais importantes empresas da história, a Genentech, que dentro de seus laboratórios revolucionou a forma como produziríamos vacinas, medicamentos e hormônios nas próximas décadas.

Imagino que ao ouvir falar de inovação farmacêutica você imagine Pfizer, Johnson, Merck, GSK e outras. Essa impressão não estaria errada, mas também não estaria completamente certa. A história acima não é uma mera exceção. Evidências apontam que nas últimas décadas, a inovação tem vindo cada vez mais de pequenas empresas de biotecnologia, que podem ser consideradas startups do mundo farmacêutico, e cada vez menos das gigantes do setor. Kneller (2010) realizou um estudo que analisou a origem de 252 medicamentos aprovados no FDA entre 1998 e 2007, e identificou que somente 56% deles vieram das grandes indústrias farmacêuticas, o restante teve origem nas novas biofarmacêuticas, ou da parceria entre elas e universidades. Já Munos (2009) identificou que desde os anos 80 até 2007 a fração de novas moléculas descobertas pelas grandes farmacêuticas caiu de em torno de 75% para 35%, enquanto a das pequenas farmacêuticas saiu de 23% para quase 70%. Assim, a inovação nesse setor é produto de um mercado altamente descentralizado, concorrido e volátil.

Nos anos 50, o grande economista austríaco Joseph Schumpeter, no seu livro “Capitalismo, Socialismo e Democracia” inaugura o conceito de destruição criativa. Para ele, o capitalismo “é por natureza uma forma ou método de mudança econômica e não apenas nunca é, mas nunca pode ser estacionário1 e, portanto, sua sobrevivência depende de um processo que constantemente “revoluciona a estrutura econômica por dentro, destruindo incessantemente a antiga e criando incessantemente uma nova2. O capitalismo é cíclico, depende de constantes destruições e reconstruções para progredir, “novas tecnologias tornam obsoletas as competências e equipamentos existentes3 e “novos setores atraem e desviam recursos dos antigos4.

Lembre-se de uma década atrás, onde você fazia suas compras em um shopping e não na Amazon, e alugava um DVD na blockbuster ao invés de assistir a um streaming. Negócios precisaram falir e setores inteiros precisaram ser extintos para que essa nova realidade fosse alcançada. A constante remodelação da estrutura econômica é o que nos faz progredir. O capitalismo é alérgico à estagnação. Graças a isso temos cada vez menos pessoas vivendo na pobreza e nunca na história da humanidade tivemos uma expectativa de vida tão alta. A destruição criativa está fortemente ligado ao crescimento econômico exponencial dos últimos séculos.

Se esse processo está acontecendo no mercado farmacêutico e se, em algumas décadas, vamos ver uma grande indústria perder sua relevância para empresas novas, é difícil de imaginar nesse momento. Indícios, como o fato de as gigantes farmacêuticas ainda possuírem receitas crescentes e produtos muito consolidados, tendem a indicar que não, porém dados recentes que apontam que, em 2022, 65% do pipeline de novas moléculas é vindo de biofarmacêuticas emergentes, indicam que talvez seja mais real do que imaginamos. O que podemos ter certeza é que esse risco já foi identificado e que movimentações estão sendo feitas para tentar frear essa possível transição, como as sucessivas compras de pequenas biofarmacêuticas buscando absorver novas moléculas, plataformas de desenvolvimento e outras tecnologias.

A relevância dessas pequenas farmacêuticas é um fenômeno que precisa ser melhor abordada aqui. Localizadas majoritariamente nos Estados Unidos, perto de locais que historicamente se notabilizam pelo desenvolvimento tecnológico, como Vale do Silício e Massachusetts, elas são altamente dependentes de capital de risco, o mesmo que financia a indústria de tecnologia. Grande parte delas não possui mais de 50 funcionários e muitas foram criadas por professores universitários utilizando do conhecimento gerado em laboratório universitário. Algumas já se consolidaram e se tornaram gigantes farmacêuticas, outras foram vendidas e incorporadas a empresas consolidadas, mas grande parte não chegou a lançar um produto no mercado e foi à falência. É desse mercado extremamente volátil que surgiram algumas das mais importantes inovações terapêuticas da nossa história.

A localização tão concentrada desses polos biotecnológicos é intrigante, porém não poderia ser diferente. Somente em circunstâncias específicas indivíduos tem incentivos para buscar inovação em um mercado tão volátil e arriscado. Aptidão ao risco e avidez pela mudança não são uma coincidência, e sim o resultado de um conjunto de incentivos. Nas palavras de Acemoglu e Robinson, a inovação somente é viabilizada quando há “instituições econômicas que estimulem a propriedade privada, assegurem contratos, criem condições igualitárias para todos, e incentivem e possibilitem o surgimento de novas empresas, capazes de trazer as novas tecnologias à vida5. Não à toa, estudos indicam que, dos fatores que influem na localização desses clusters biotecnológicos, a disponibilidade de mercado financeiro com capital de risco, regulações e leis não proibitivas, proximidade de universidades produtivas e mão de obra qualificada estão entre os fatores mais relevantes. A nova face da inovação farmacêutica está fortemente ligada a instituições políticas e econômicas que criam incentivos para indivíduos tomarem risco, o que essencialmente é o processo empreendedor.

Buscando um exemplo mais recente, há as vacinas de RNA mensageiro (ou mRNA), umas das tecnologias mais disruptivas da atualidade, que promete, dentro de algumas décadas, trazer ao mercado vacinas para câncer. A técnica foi pensada na década de 80, e consiste em injetar um trecho de um código genético que contém as instruções para que nosso corpo produza as proteínas necessárias para a imunização. Ainda não tínhamos superado os desafios tecnológicos necessários para que seja utilizada em pacientes, até que a Moderna, empresa criada em 2010, com foco em aplicar essa tecnologia para produção de vacinas, levantando centenas de milhões de dólares em capital de risco, pela primeira vez na história utiliza a tecnologia do mRNA para produzir mais de 500 milhões de doses da sua vacina para COVID-19. Igualmente, a BioNTech, empresa de pouco mais de 15 anos, criada com 150 milhões de euros de capital de risco, foi a base tecnológica da vacina da Pfizer, que juntas produziram uma das vacinas para COVID-19 mais aplicadas do mundo. Mais uma vez, a inovação disruptiva, que pode mudar a forma como pensamos no desenvolvimento farmacêutico nas próximas décadas, tem origem em empresas que há pouco mais de 10 anos eram somente pequenas startups com muito capital humano e em busca de capital financeiro.

Quando analisamos esse cenário, é preciso ter em mente que a inovação é o motor da indústria farmacêutica. Medicamentos que há algumas décadas eram referência no setor, hoje são a segunda ou terceira opção de tratamento. Como já abordamos em outro texto, a perda da patente carrega junto uma perda de, em média, 85% do mercado para a indústria de genéricos após um ano, e por isso o poder das grandes indústrias farmacêuticas está muito ligado a um forte fluxo de novas moléculas. Unindo a redução da fração da inovação com essa realidade, é possível visualizar um horizonte potencialmente preocupante para as gigantes farmacêuticas.

Temos uma propensão a imaginar que o status quo permanecerá inalterado e presumir que tendências de alta seguirão inabaladas. Somos, de certa forma, avessos a mudanças. Mas a realidade é que o cenário dos últimos séculos é um reflexo da destruição criativa, sucessivas remodelações, transições e volatidade constante. Se no futuro Schumpeter será utilizado para analisar essa possível transição que estamos vivendo só o tempo poderá dizer. Mas para agora, urge lembrar que é preciso sempre ficar atento ao legado de grande pensadores.

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Leituras recomendadas:

  • O Gene: Uma História Íntima – Siddhartha Mukherjee;
  • O Imperador de Todos Os Males – Siddhartha Mukherjee.

Dois livros que abordam com primazia o desenvolvimento farmacêutico dos últimos séculos.

1. Capitalism, Socialism and Democracy – Joseph Schumpeter – Página 83.
2. Capitalism, Socialism and Democracy – Joseph Schumpeter – Página 84.
3. Por Que as Nações Fracassam – Daron Acemoglu, James A. Robinson – Página 89.
4. Por Que as Nações Fracassam – Daron Acemoglu, James A. Robinson – Página 89.
5. Por Que as Nações Fracassam – Daron Acemoglu, James A. Robinson – Página 82.

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