Por que os medicamentos estão cada vez mais caros? – Parte 1

Uma matéria de 2008 do New York Time intitulada “Costly Cancer Drug Offers Hope, but Also a Dilemma” tratava da chegada do Avastin ao mercado, um revolucionário anticorpo monoclonal voltado para pacientes com câncer colorretal. Ao custo de 50.000 mil dólares por ano de tratamento, o produto fazia parte da primeira leva de medicamentos biológicos que viriam a transformar a forma como tratamos alguns tipos de câncer, porém os valores chocavam a comunidade médico-científica. Cerca de 15 anos depois, é raro que um novo medicamento chegue ao mercado com um preço minimamente próximo a esse. Um estudo baseado em dados do FDA identificou que entre 2008 e 2021 o preço médio de entrada, por ano de tratamento, saiu de $2.115 dólares (variando entre $928 e $17.866) para $180.007 dólares (variando entre $20.236 e $409.732), um crescimento anual equivalente a 20,4%.

Dados da OCDE apontam que gastamos cada vez mais com medicamentos. Os Estados Unidos tiveram uma média de 2,8% de aumento anual de gastos per capita nos últimos 5 anos, tendência que se repete para países desenvolvidos, e é até maior para países em desenvolvimento. Um relatório do IPEA, por exemplo, calculou a evolução do gasto com medicamentos no SUS e identificou que somente entre 2010 e 2015 houve um crescimento de R$14,3 bilhões para quase R$20 bilhões, equivalente a 40%.

Essa trajetória de gastos não necessariamente é um problema. Do ponto de vista médico, uma nova terapia medicamentosa pode economizar em outras áreas da saúde. Um novo medicamento oncológico, por exemplo, pode evitar a necessidade de cirurgia muito mais custosa que o tratamento em si. Porém, do ponto de vista orçamentário é importante perguntar: por que os medicamentos estão chegando ao mercado cada vez mais caros?

Neste texto em duas partes tentarei responder a essa pergunta. Mas antes, é preciso deixar claro o conceito de novo medicamento, que se refere a uma nova molécula sintetizada (New Molecular Entity – NMEs) ou a um novo produto biológico (New Biological Entity – NBEs), não a genéricos ou similares recém-chegados ao mercado.

Iniciarei abordando o impacto do custo de desenvolvimento, e para contar essa história, é necessário abordar brevemente a evolução do nosso arcabouço regulatório, construído ao longo do último século, a partir de erros e acertos cometidos durante nessa jornada. Alguns momentos importantes dessa trajetória deixaram marcas profundas e moldaram nossa postura extremamente cautelosa, como a tragédia da Talidomida, um medicamento indicado para náusea e vômitos durante os estágios iniciais da gravidez, que anunciava a possibilidade de “ser dado com total segurança a mulheres grávidas e mães lactantes sem efeitos adversos sobre a mãe ou o filho”, apesar de não possuir nenhum estudo em humanos que suportasse essa informação. Contraditoriamente, o medicamento utilizado durante a gravidez foi revelado capaz de gerar danos no desenvolvimento fetal, resultando no nascimento de mais de 10.000 mil bebês com má formação congênita entre 1957 e 1962.

A Talidomida era comercializada nos EUA sem registro do FDA, que possuía somente 60 dias para avaliar o pedido e caso não cumprisse esse prazo, a solicitação era prontamente concedida. Esse acontecimento é o retrato de um tempo em que ainda não tínhamos plena noção dos efeitos nefastos que um medicamento mal desenhado pode causar. O resultado, foi o início da criação do arcabouço regulatório que conhecemos hoje, com o FDA deixando de ser um coadjuvante e passando a avaliar estudos de eficácia e segurança antes de qualquer droga entrar no mercado.

Atualmente, para um novo medicamento chegar ao consumidor, cerca de 10.000 compostos são testados; posteriormente, apenas 250 chegam às fases pré-clínicas, em que são testadas em culturas de células e animais. Dentre esses, apenas 5 chegam a ser testados em humanos. Na Fase I, onde a potencial droga é administrada em pequenos grupos de indivíduos saudáveis, para avaliar sua segurança, dados históricos apontam que apenas 63.2% seguem adiante. Nas Fases II e III, onde são testadas em grandes grupos de pacientes, para verificar a segurança e eficácia, em média 30.7% e 58.1% avançam, respectivamente. Finalmente, essas drogas podem ser submetidas a avaliação das agências regulatórias, na qual 85.3% são aprovadas. Ou seja, partindo da etapa clínica, somente 9,6% das moléculas desenvolvidas pela indústria conseguem se tornar um medicamento. Classes terapêuticas mais complexas tem uma taxa de sucesso ainda menor: somente 5,1% dos oncológicos chegam à aprovação.

Para concluir todo esse processo, uma estimativa conservadora aponta em torno de 96,8 meses do início da Fase I até a aprovação regulatória, excluindo as fases pré-clínicas, que são mais complexas de estimar. Os gastos são impressionantes. O estudo mais citado da área, realizado com valores de 2013, estima em $965 milhões de dólares somente para fazer uma droga avançar das fases clínicas. No entanto, como dito anteriormente, é preciso adicionar o custo do desenvolvimento das moléculas que falharam no caminho das fases clínicas. Trazendo esse valor para a conta, chegamos a uma média de $1,46 bilhão de dólares. Unindo a uma estimativa do custo dos estudos pré-clínicos, chegamos a $2,56 bilhões de dólares para que o medicamento chegue ao mercado. A fim de comparação, os mesmos autores realizaram esse estudo buscando essa média no período de 1983-1994 e estimaram em 802 milhões de dólares (valores do ano 2000), um aumento espantoso para pouco mais de uma década. Outro estudo dividiu o total gasto em P&D pelas grandes indústrias farmacêuticas pelo número de medicamentos que foram aprovados, chegando ao intervalo de 3.7 bilhões (Amgen) a 11.8 bilhões (Astrazeneca) de dólares em investimento para uma nova droga chegar ao mercado.

O custo de desenvolvimento de um novo medicamento, além de ser altíssimo, vem crescendo exponencialmente desde a década de 50, e não aparenta ter perspectivas de redução. Apesar do desenvolvimento das vacinas para Covid-19 ter passado a impressão que é um processo simples e rápido, na verdade é extremamente caro, arriscado, lento e burocrático.

Aliado ao alto custo, há outros fatores importantes. A indústria farmacêutica tem investido cada vez mais na busca de alvos terapêuticos mais complexos, consequentemente em campos com probabilidades de sucesso cada vez menores. Afinal, após um século de desenvolvimento farmacêutico agressivo, os frutos mais baixos já foram colhidos. Investimos cada vez mais no câncer, em doenças genéticas raras e no Alzheimer, porém cada vez menos em medicamentos para o sistema cardiovascular e respiratório, e para isso utilizamos mais tecnologias e plataformas de desenvolvimento inovadoras, porém arriscadas e caras.

Razões econômicas simples explicam essa tendência. Hoje, já temos domínio sobre diversas áreas terapêuticas, por isso faz sentindo econômico buscar mercados pouco explorados. A indústria sabe agregar os dados de custo de desenvolvimento, probabilidade de sucesso e potencial tamanho de mercado para prospectar quais áreas terapêuticas têm mais potencial de lucro. Acemoglu e Linn (2004) estimaram que um aumento de 1% no tamanho do mercado potencial, para uma classe terapêutica, leva a um aumento de 6% no número total de novos medicamentos que entram no mercado dos EUA.

Essa também é uma tendência gerada por incentivos que os governos têm criado. Há algumas décadas, para um medicamento entrar no mercado era necessária somente a avaliação de qualidade, segurança e eficácia pelas agências reguladoras. Hoje, dada a grande quantidade de opções que temos em algumas áreas terapêuticas, governos tem se utilizado cada vez mais de comparações de custo-efetividade entre as alternativas, fazendo com que se aumente a probabilidade de incorporação de medicamentos voltados para doenças órfãs. O mercado e os governos estão mais dispostos a pagar por inovações em áreas com menos opções terapêuticas, criando incentivos para investimentos nessas áreas, que são necessariamente mais arriscadas e custosas.

Por isso, para conseguir alcançar resultados, o setor possui uma relação entre faturamento e investimento em P&D cinco vezes maior do que a média de outras indústrias [1]. Investimos um montante enorme no desenvolvimento farmacêutico e em termos de quantidade de novas descobertas estamos estagnados. A complexidade, o risco e, consequentemente, o custo aumentaram de maneira impressionante.

Apesar da influência do custo de desenvolvimento no preço de entrada de uma droga no mercado ser controversa no meio acadêmico, evidências surgem a partir de correlações. Giaccotto et al. (2005) verificaram que um aumento do preço do medicamento em 10% corresponde a um aumento de investimentos em P&D de 5,8%; já Civan e Maloney (2009) identificaram que uma redução no preço em 10% impacta entre 2,8% e 4,9% a chegada de novas drogas no mercado. Há uma correlação muito forte entre lucro e investimento em pesquisa e desenvolvimento. Um estudo de uma série temporal das últimas décadas correlacionou os períodos em que a margem de lucro da indústria foi reduzida com os investimentos em P&D caindo na mesma proporção [2].

Por mais que a magnitude do impacto do custo de desenvolvimento no preço de entrada de um novo medicamento seja um debate, é indiscutível que há alguma correlação entre esses dois fatores. Porém, o custo não é a única influência sobre o preço, e no próximo artigo abordaremos fatores intrínsecos ao mercado farmacêutico que podem ter ainda mais impacto.

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[1] F. M. Scherer – Handbook of Health Economics, cap. 12, p. 541.
[2] F. M. Scherer – Handbook of Health Economics, cap. 12, p. 563.

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