Calibragem em macroeconomia

Uma das grandes dificuldades da macroeconomia, tanto teórica quanto prática, é o problema da identificação. Por causa desse problema, derivam-se várias outras dificuldades técnicas para a aceitação de modelos e, portanto, dos resultados de um determinado modelo macroeconômico estimado.

Vamos tentar entender brevemente o porquê: modelos macro são geralmente compostos por um sistema de equações que precisam valer simultaneamente, onde os erros de predição podem ser correlacionados entre si para as diferentes variáveis de interesse. Para a coisa não ficar muito abstrata, vamos olhar para um modelo bastante parecido com aqueles usados pelos bancos centrais para analisar política monetária:

Aqui, definimos y como o hiato do produto (nossa medida de superaquecimento da demanda agregada), π como a inflação, r como a taxa de política monetária (no caso do Brasil, a taxa Selic) e ε é a nossa taxa nominal de câmbio contra o dólar.

Os epsilons (ε) de cada uma dessas equações estão intimamente relacionados: um erro de previsão no hiato do produto vai afetar nossa previsão de inflação, logo de política monetária, logo da taxa de câmbio, e esse erro, em razão da endogeneidade entre as variáveis, pode se acumular ao longo do tempo.

Os dados também não ajudam, uma vez que as séries de tempo de interesse dos macroeconomistas estão sempre lotadas de choques (situações idiossincráticas inesperadas) que poluem bastante a informação procurada pelos modelos usuais. Imagine que um problema de manutenção numa grande plataforma de petróleo na Rússia afete o preço do petróleo, que afeta o custo dos combustíveis no Brasil, gerando inflação. É do interesse do pesquisador/analista capturar esse tipo de dinâmica em seu modelo ou não? Esse tipo de pergunta vai estar associada ao processo de especificação das equações do modelo em questão. Se é do propósito do seu modelo considerar/ignorar tais fatores, é uma escolha específica do analista. Se este não quiser capturar tal dinâmica, ele pode simplesmente desconsiderar, por exemplo, o efeito das commodities em sua previsão de inflação (expresso no sistema acima pela variável π(imp)), assim, todos os movimentos associados a preços de commodities serão capturados exclusivamente por ε(π).

Mas voltemos ao ponto de interesse. Identificação é um problema que afeta processos de estimação das médias e erros-padrão dos coeficientes do nosso sistema de equações, e esta é uma das principais motivações por trás do uso da calibragem, que é o tema do post de hoje. A calibragem consiste basicamente em assumir valores para os parâmetros c(n) do modelo, a partir dos seguintes critérios (sem uma ordem de importância específica): a) Respeitar os resultados mais aceitados de uma teoria para a relação entre as variáveis; b) Permitir um ajuste razoável aos dados em uma janela específica de tempo; c) Oferecer propriedades preditivas desejáveis; entre outras. Muitas vezes, esses critérios vão concorrer entre si, e sacrificar um em prol do outro entra, mais uma vez, no rol de julgamentos a ser considerado pelo pesquisador/analista.

A vantagem da calibragem é que ela é um acordo entre cavalheiros, o que pode parecer um pouco frustrante para o jovem adulto empolgado com a possibilidade de fazer “hard-science” em ciências sociais. Há bastante discricionariedade no processo de pesquisa, mas isso não faz dela menos valiosa. É muitas vezes mais importante ter clareza e ser transparente naquilo que se faz do que descobrir um resultado a partir de um instrumento ultrasofisticado porém pouquíssimo comunicável e verificável entre pares.

Vamos aproveitar o tópico para fazer a calibragem do modelo macro exemplificado acima para o Brasil. Voltemos a ele:

Nosso modelo pretende determinar trajetórias futuras para o hiato do produto, a inflação, a taxa Selic e a taxa de câmbio nominal.

Calibrar todas essas equações é um processo bastante semelhante, que pode tomar tempo. Por isso, ilustrarei algumas etapas da calibragem da Curva de Phillips (PC). Primeiro é preciso definir nossa medida de inflação. Aqui, optei por usar a variação trimestral sazonalmente ajustada anualizada – assim, posso compará-la a cada período com a expectativa e a meta de inflação do período.

Fonte: BCB. A meta de inflação apresentada aqui foi ajustada para considerar a gestão Tombini, conforme este post.

Agora vamos recuperar a equação da Curva de Phillips, partindo de valores quaisquer para nossos parâmetros c4, c5 e c6, alterando-os marginalmente para comparar os resultados:

Aqui, MAD é o desvio absoluto mediano entre o dado observado e o estimado pelo modelo. MAD é uma medida de erro análoga ao erro quadrático médio, usado nas regressões por mínimos quadrados ordinários.

Dessa forma, podemos perceber que o processo de calibragem pode ser muito semelhante a um processo de estimação de coeficientes através da minimização de erros quadráticos tradicionalmente utilizado em econometria clássica (característico da estimação por OLS ou MLE). A diferença é que, aqui, “vale tudo”: o analista tem a liberdade de escolher se prefere um modelo que se ajusta melhor aos dados em um determinado período do que em outro, ou, até mesmo, ignorar a história e argumentar que a série de tempo mudou/mudará de regime. A calibragem só requer um acordo, que pode ser razoável ou não. Na mão de um economista experiente pode ser mais útil do que um modelo tradicional ajustado aos dados históricos.

Por humildade (não me considero um economista capaz de julgar se os dados mudaram de regime ou não neste momento), optei pelas equações com o melhor ajuste histórico aos dados pelo critério de desvio absoluto mediano que escolhi. Assim, nosso modelo toma a seguinte estrutura:

Com base nestes parâmetros para esta especificação, acrescidas de algumas hipóteses para as trajetórias futuras das variáveis exógenas, podemos usar este modelo calibrado para projetar o futuro das nossas variáveis endógenas:

As projeções são razoavelmente parecidas com aquelas esperadas pelo Boletim Focus mais recente, e, inclusive, poderiam se aproximar até um pouco mais a depender dos coeficientes utilizados para algumas equações específicas, como c4 (que dá o caráter inercial da inflação para a Curva de Phillips) ou o c8 (que captura a sensibilidade do Banco Central aos desvios da expectativa de inflação em relação à meta). Há espaço para melhoria nessa calibragem neste aspecto, que vai do sabor/objetivo do analista.

Outra vantagem interessante de ter um modelo estrutural como este é a sua capacidade de criação de cenários a partir de contrafactuais. Suponha que o analista queira estudar o efeito de um choque exógeno nas variáveis modeladas, como, por exemplo, uma depreciação cambial e um aumento acima daquele recomendado pela Regra de Taylor na taxa Selic, qual seria o efeito líquido de tais circunstâncias? Podemos analisar isso também:

Cenário construído a partir do choque conjunto de uma depreciação cambial permanente de 10% e um aumento conjuntural adicional de 2% na taxa Selic.

Ou até analisar as diferenças entre os cenários no formato de impulso-resposta:

Aqui vale lembrar que ϵ representa o desvio absoluto em reais, ou seja, um aumento permanente de R$1 por dólar oriundo do nosso choque permanente de 10% após a resposta de todas as demais variáveis ao câmbio.

Como tem sido costume, disponibilizarei todos os dados utilizados e a modelagem em uma planilha de Excel no meu Google Drive. A planilha também dará conta da fonte dos dados e a tradução das notações e variáveis utilizadas que não tenham ficado claras ao longo do post. Por hoje é isso, bons estudos a todos.

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Publicado originalmente aqui.

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