Os problemas da macroeconomia

“Something is rotten in the state of Denmark.”

Shakespeare; Hamlet, cena 4, ato 1.

Quando se pergunta para o público leigo sobre o que se estuda dentro das ciências econômicas, logo vêm à mente coisas que são associadas à palavra “economia”: “inflação”, “juros”, “bancos”, “emprego”, etc. Além de, é claro, “oferta e demanda”. Economia, para o público leigo, é sinônimo de macroeconomia.

Para quem não sabe, a macroeconomia é a área que estuda os “agregados econômicos” – consumo das famílias, investimento, etc. Em síntese, ela modela a economia como um todo; suas derivações geralmente estão mais relacionadas a aplicações práticas. Em paralelo, a microeconomia estuda a decisão de agentes econômicos, sejam eles indivíduos ou firmas. Ao contrário do que se supõe, os modelos “micro” têm caráter mais descritivo do que preditivo. [Regra de bolso: em geral, micro fala de escolhas, macro fala de dinheiro. Ou para usar a analogia favorita dos livros de macro: enquanto a microeconomia olha para as árvores, a macroeconomia olha para a floresta.]

Os dois problemas da macro

Vejo dois proeminentes problemas na macroeconomia, que duvido que vão ser decisivamente resolvidos any time soon. São eles: problema dos agregados e problema da indeterminação.

O que estou chamando de problema dos agregados é basicamente o óbvio problema da impossibilidade prática e técnica (e às vezes até ética) de se fazer experimentos controlados com o objeto de estudo sendo um amontoado de coisas heterogêneas.

O problema de fazer experimentos assola tanto a micro quanto à macro. Em verdade, assola toda ciência social e, em alguma medida, as ciências naturais também (um exemplo é a astronomia, que não nos permite fazer muitos experimentos). Mas o caso da macro é particularmente alarmante porque não só não abre margem para experimentos, como, se abrisse, também seriam, de todos os ângulos, extremamente problemáticos. O motivo? Diferentemente da microeconomia, o objeto de estudo da macroeconomia são agregados. Se fosse uma unidade, poderíamos isolar, fazer grupo de controle e comparar médias. Para piorar, do que temos na pesquisa observacional, nós praticamente nunca conseguimos inferir causalidade. E, como todo aluno que já estudou estatística sabe, correlação não implica em causalidade.

Então, o que nos resta? Bom, podemos estipular mecanismos causais e tentar prever usando correlações. Mas aí mora um problema, pois esse tipo de expediente enseja uma convergência no modelo em questão – coisa que não se observa na fronteira da pesquisa. Há várias escolas de pensamento que, a partir de seus próprios modelos, estipulam mecanismos causais que, não raro, podem chegar a conclusões razoavelmente parecidas.

Segundo o economista Ricardo Reis, em um post no twitter, as principais teorias inflacionárias diziam que a inflação americana corrente apenas seria maior que 2% a.a. em 2021-22. A abordagem keynesiana, que utiliza a “curva de Phillips”, afirma que os hiatos entre o potencial da economia e seu nível atual estavam se fechando. A isso, somam-se as expectativas crescentes para que tenhamos inflação. Enquanto isso, os monetaristas enxergam nos grandes depósitos e na propensão ao gasto dos consumidores a causa pela qual a moeda tem perdido seu poder aquisitivo.

A inflação estava, de fato, na direção prevista pelas teorias. Qual delas é a certa? É impossível saber. Agora, imaginemos que a inflação não chegasse a níveis maiores que 2%. Digamos que, por alguma razão, houvesse deflação. Um popperiano ingênuo diria que devemos abandonar teorias frente a evidências falseadoras. Mas qual teoria? Todas? E essas, de fato, foram falseadas? Obviamente que não, pois talvez nós não tenhamos considerado um choque exógeno, por exemplo. De fato, modelos macroeconômicos têm programado um fator que captura estocasticamente esses choques (o termo de erro). Mas vamos supor que não tenha sido o caso. Por modus tollen [para saber um pouco mais de lógica, recomendo Mortari (2001)], sabemos que os pressupostos de algumas dessas teorias estão errados.

Esse exemplo é ilustrativo da tese de Duhem-Quine, tese segundo a qual toda teoria é subdeterminada pelas evidências [Quine (1951), Duhem (1954)]. Para saber mais sobre este tópico filosófico sugiro Godfrey-Smith (2003). Mas, além do golpe contra o falsificacionismo, é sintomática, no âmbito macroeconômico, a pouca (quiçá, nenhuma) informatividade dos resultados – sejam eles positivos ou negativos.

Agora, sobre o problema da indeterminação. Este afeta todo modelo que considera as expectativas – o que, em essência, caracteriza todo modelo macroeconômico. Peguemos um exemplo prático advindo de Sumner (2021, p. 78). Como se explica o valor do dinheiro? De verdade, porque dinheiro tem algum valor? Sob um regime de padrão-ouro, podemos reduzir a questão ao valor do ouro, que por sua vez pode ser explicado por oferta e demanda (para explicar o que são oferta e demanda, temos este e este texto). Mas como determinar o valor da moeda fiduciária?

Ao que aparenta, o valor do dinheiro (sob um regime fiduciário) depende de quanto as pessoas acreditam que a moeda vai valer no futuro, ou seja, da expectativa do seu valor futuro. Mas o valor do dinheiro daqui a um ano dependerá de quanto as pessoas acham que vai valer o dinheiro daqui a dois anos, e assim por diante.

Analogamente, um modelo de política monetária (ou fiscal) depende das expectativas dos agentes sobre as variáveis de interesse no futuro. De igual modo, a política monetária (ou fiscal) daquele período futuro depende das expectativas para o período subsequente. E repete-se o ciclo de expectativas até o infinito.

E como são formadas as expectativas dos agentes? Dessa caixa preta temos no máximo chutes bem aproximados. O melhor modelo que a macroeconomia conseguiu alcançar é o das expectativas racionais. Basicamente, essa estratégia de modelagem toma por base uma previsão adequada dos agentes a partir das informações disponíveis [Sheffrin (1996)]. Basicamente, eliminamos a possível heterogeneidade na formação de expectativas entre famílias e empresas e operamos de uma única forma.

Conclusão

Eu elencaria esses como os principais problemas que a macro sofre. Obviamente, não digo que esses problemas não têm respostas, nem muito menos que não houve progresso na macro ao longo do tempo. Tampouco digo que esses problemas são um impeditivo para que se gere conhecimento nesta área. No entanto, reitero que um consenso na área está longe de ser encontrado, e os principais motivos disso são os dois problemas colados acima.

Referências

Keynes, John Maynard. Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Saraiva Educação SA, 2017 [1936].

Mortari, Cezar A. Introdução à lógica. Unesp, 2001.

Sheffrin, Steven M. Rational expectations. Cambridge University Press, 1996.

Quine, Willard Van. “Two dogmas of empiricism”. The philosophical review, vol. 60 (1951): pp. 20–43.

Duhem, Pierre Maurice Marie. The aim and structure of physical theory. Vol. 13. Princeton University Press, 1991 [1954].

Smith, Peter Godfrey. “Theory and reality: an introduction to the philosophy of science.” (2003).

Sumner, Scott. The Money Illusion: Market Monetarism, the Great Recession, and the Future of Monetary Policy. University of Chicago Press, 2021.

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