Como observa Sachs e Larrain (2000, p. 477): “Um dos problemas mais assustadores na política macroeconômica é a administração simultânea da inflação e do desemprego”. O conceito de estagflação surge de maneira circunscrita a este debate, em meio às controvérsias na teoria econômica a respeito da relação existente entre as variáveis de inflação e desemprego.
O modelo teórico de curto prazo mais conhecido, que apresenta o tradeoff entre as variáveis citadas, é a curva de Phillips. De maneira intuitiva, a curva de Phillips estabelece uma relação inversa entre o aumento no nível de preços e o nível de desemprego numa dada economia. Ou seja, tomando como pressuposto a validade do modelo, em caso da implementação de uma política econômica que busca reduzir o nível de desemprego, é necessário tolerar uma aceleração do processo inflacionário.
Porém, em determinadas ocasiões, a curva de Phillips pode aparentemente perder seu poder explicativo. A estagflação é um exemplo desse caso. A estagflação pode ser definida como uma situação em que, não obedecendo a dinâmica dada pela curva de Phillips, uma economia passa por um período em que, mesmo em recessão, há tanto o aumento da inflação como do nível de desemprego. De todo modo, para compreender as implicações e a dinâmica de uma economia nesse estado, bem como avaliar a aplicação teórica no mundo real, é preciso compreender a origem e os desdobramentos da discussão na literatura econômica.
1 — Retomada histórica
1.1. A inflação
No capítulo 15 de Sachs e Larrain, os autores abordam duas formas de desencadear um aumento de preços: pelo lado da demanda, de modo que os preços sobem porque a demanda agregada sobe depois de um aumento da oferta de moeda; e pelo lado da oferta, em que o aumento de preços pode ser provocado pelas variações da oferta agregada. Ou seja, o aumento de preços pode ser causado por uma política fiscal expansionista ou através de um deslocamento contracionista da oferta agregada – dada uma redução da oferta e permanecendo a demanda constante.
A dinâmica das situações é formalizada através dos seguintes gráficos:
No gráfico (a), a variação dos preços no eixo vertical do plano cartesiano se deu através do deslocamento para a direita da curva da demanda – deslocamento expansionista. Já no gráfico (b), a variação de preços do eixo das coordenadas foi provocada pelo deslocamento da curva de oferta para a esquerda – deslocamento contracionista. O deslocamento contracionista da curva de oferta pode ser causado por “choques de ofertas”, como: uma colheita ruim, que reduz a quantidade ofertada dada uma queda na produção; um aumento salarial resultante de um contrato sindical ou de indexação, que aumenta o custo marginal de produção; e uma pandemia, que reduzindo a quantidade de mão-de-obra disponível, desloca a curva de oferta para a esquerda.
1.2. O desemprego
Ainda em Sachs e Larrain: “Quando o desemprego está baixo, os empregadores têm dificuldade para atrair novos funcionários e tentam evitar que seus funcionários troquem de emprego”. Ou seja, os sindicatos possuem mais poder para negociação salarial, de modo que os salários reais tendem a aumentar. Já quando o desemprego está alto, os sindicatos perdem esta barganha e os salários reais tendem a diminuir. Contudo, devido à dinâmica econômica – dado ao desemprego estrutural e friccional -, o reajuste não ocorre de maneira instantânea.
Desse modo, mesmo no longo prazo, o desemprego não é nulo; ou seja, há uma taxa natural – ou estrutural – de desemprego para uma dada economia. A existência da taxa natural de desemprego implica em afirmar que em uma economia que opera a um nível de desemprego inferior a da taxa natural, o salário real tende a aumentar no período posterior; se superior, o salário real tende a cair. Ou seja, há uma defasagem no ajuste salarial de um período para outro – ou, “preços rígidos”.
Quando os acordos salariais se dão através de um índice de indexação, os contratos são firmados em função de expectativas de inflação, pois não é possível saber antecipadamente qual será a taxa de inflação.
1.3. Inflação, desemprego e a curva de Phillips
A curva de Phillips, em sua formalização original, não era tão sofisticada. Em princípio, o estudo de Phillips focalizou apenas em salários nominais e a taxa real de desemprego. Ou seja, inicialmente a curva de Phillips não levava em consideração as expectativas inflação e a taxa natural de desemprego. A equação original era:
w = a - bU
em que “w” é o salário, “a” e “b” são constantes e U é a taxa de desemprego.
Com a modificação da abordagem feita por Samuelson e Solow, considerando as variáveis de inflação e desemprego, a equação fica:
\pi = c - dU
em que \pi é a taxa de inflação, “c” e “d” são constantes e U, novamente, é a taxa de desemprego.
Pelo fato de desconsiderar o salário real, a validade da formalização inicial da curva foi criticada. Milton Friedman e Edmund Phelps argumentaram que a variação dos salários nominais deveria ser corrigida em termos reais pelas expectativas e pela inflação. Devido às críticas, a equação da curva foi modificada, sendo introduzidas as expectativas (adaptativas) de inflação e o desemprego natural:
\pi_t = \pi_{t-1} - b(U-U_n)
em que U_n é a taxa natural de desemprego.
Desse modo, a taxa de inflação é determinada pela taxa de inflação do período anterior menos o coeficiente de resposta “b” multiplicado pela variação entre a taxa de desemprego efetiva e a taxa de desemprego natural. Se a taxa de desemprego efetiva for inferior à natural, a inflação tende a acelerar; se superior, a inflação tende a desacelerar.
Durante a década de 70, devido aos constantes aumentos no preço do petróleo feitos pela OPEP, as economias em geral passaram por grandes choques de oferta, que pressionaram um aumento elevado da inflação. A economia americana, por exemplo, experimentou conjunturas em que havia tanto desemprego como inflação elevados, o que levou a ser acrescentado um novo termo “v” na equação da curva de Phillips:
\pi_t = \pi_{t-1} - b(U-U_n) + v
em que “v” representa choques que contraem a oferta e elevam a inflação.
A representação gráfica disso pode ser feita da seguinte forma:
2 — A estagflação e a curva de Phillips
Como definido anteriormente, a estagflação ocorre quando uma economia entra em um período de recessão – aumentando o desemprego, devido à lei de Okun, que estabelece uma relação negativa entre crescimento do produto e taxa de desemprego -, mas, ainda assim, sofre com o aumento do nível geral de preços. De início, a situação aparenta contrariar o tradeoff proposto pela curva de Phillips. Porém, como este fenômeno, em geral, é causado por choques de oferta, a formalização atual da curva de Phillips já engloba esta variável, mediante a variável “v” da equação acima.
Desse modo, um choque de oferta, que contrai a curva de oferta agregada, é introduzido na equação como uma variável exógena. Ou seja, em caso de, por exemplo, um aumento no preço do petróleo, este choque é incorporado pelo modelo através da variável “v”, o que implica um deslocamento da curva de Phillips para a direita:
De outro modo, o tradeoff entre inflação e desemprego permanece, porém em um patamar diferente; o que implica em um aumento concomitante da taxa de inflação e da taxa de desemprego, na comparação entre dois períodos. Portanto, a estagflação não entra em contradição com a curva de Phillips em sua formalização atual.
3 — A economia brasileira
Como é amplamente sabido, a atual fragilidade da economia brasileira não é fruto – apenas – da crise sanitária que estamos vivenciando. A origem da crise pode ser retomada a partir do primeiro trimestre de 2015, quando a queda no PIB se tornou sistemática; seguida por um baixo crescimento em 2017 e 2018 e uma queda de 9% no segundo trimestre de 2020, devido à disseminação da COVID-19. Ou seja, a pandemia teve o papel de aprofundar uma situação que já era ruim. Isto, somado à ingerência do atual governo federal, pode explicar em grande medida a atual conjuntura econômica.
Devido à desaceleração da atividade econômica, seguindo a relação exposta pela lei de Okun, houve um aumento no nível de desemprego; que, de acordo com dados do IBGE, segue em dois dígitos em pelo menos desde 2018, com 14,7% no segundo trimestre de 2021. Além disso, o IPCA acumulado de 12 meses, de acordo com dados do IBGE, está em 9,68% – quase batendo dois dígitos.
Desse modo, se a definição de estagflação for uma situação econômica de baixo crescimento ou diminuição do produto, seguido por um aumento da inflação e altos níveis de desemprego, a economia brasileira se caracteriza nesse estado. A alta da inflação pode ser justificada por um choque de oferta devido à alta no preço do petróleo, elevando o custo com combustível, contraindo a curva de oferta, elevando os preços.
De todo modo, por ser um choque de oferta, a alta no preço do petróleo tende a ser temporária. Assim, o Banco Central deve perseguir a meta de inflação, elevando a taxa de juros, para que não haja uma perda de credibilidade na autoridade monetária.
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Publicado originalmente aqui.
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