A organicidade intrínseca da economia e o problema do central planning

A ideia de que os homens estão para a sociedade assim como as células estão para um organismo vivo não é nova, ela está presente na filosofia de nomes como Emile Durkheim e consagrada na fisiocracia de François Quesnay. E, apesar de poder parecer uma ideia demasiadamente poética para as pragmáticas ciências do século XXI, essa alegoria pode nos ensinar importantes lições.

Se formos comparar estes dois entes encontraremos inegáveis similaridades, especialmente no que diz respeito ao funcionamento econômico das sociedades humanas. Ocorre que os mercados se parecem muito com os mecanismos de controle de variáveis fisiológicas exercidos pelo nosso organismo, e não apenas no que diz respeito à distribuição e uso de recursos biológicos em órgãos e tecidos, mas também na preocupação em estabilizar as variáveis em resposta à perturbações externas.

Enquanto os mercados ajustam o nível de preços em resposta à alterações na oferta e na demanda, nossos órgãos efetores respondem à alterações de variáveis como temperatura, fornecimento de nutrientes e níveis hormonais para manter o funcionamento do organismo. Esses processos ocorrem de forma independente da nossa vontade consciente, sem que precisemos dar comandos voluntários para a liberação de uma quantidade “x” de suor para reduzir “y” graus nossa temperatura corporal ou de liberar uma quantidade “x” de insulina para metabolizar “y” gramas de glicose, por exemplo. Esse sistema costuma funcionar tão bem que nos manteve vivos desde muito antes de sabermos que tais processos existiam.

Agora façamos um experimento mental: suponhamos que esses sistemas de controle do nosso corpo deixassem de ser autônomos e passássemos a ter a necessidade de controlá-los conscientemente. Conseguiríamos ordenar corretamente a quantidade de hormônios, enzimas e nutrientes para satisfazer cada reação química que permite o funcionamento de cada célula de cada órgão do nosso corpo? Provavelmente não. Isso porque não possuímos todas as informações sobre a química que nos mantém vivos. Mas mesmo que possuíssemos, dificilmente teríamos uma memória apta para armazenar todas as informações de todas as milhares de reações químicas que realizamos e, mesmo que por um milagre conseguíssemos, seria enlouquecedor coordená-las e controlá-las em tempo integral com a precisão e a velocidade que a vida exige.

Tendo em mente a monstruosa dificuldade vislumbrada nesse experimento imaginário que acabamos de realizar, imaginemos agora como seria a tentativa de substituir os processos orgânicos realizados pelas decisões de agentes econômicos individuais por um órgão de planejamento central composto por indivíduos que decidiriam consciente e voluntariamente acerca de todas as transações realizadas dentro do território sob seu mando. Desprezando os possíveis problemas de coordenação entre os indivíduos desse órgão (suponhamos que essa coordenação seja perfeita), ele teria que, em substituição ao sistema de preços, alocar os recursos através de “ordens executivas”, decidindo quanto de cada produto/serviço cada outro ente receberia, em todos os mercados finais e, também, dentro das cadeias produtivas, além de alocar pessoas certas nos lugares certos e nas proporções adequadas de trabalho e instrumentos (capital físico) dentro dos tempos necessários para não haver desabastecimento.

Não é preciso de muito para perceber que esse último caso seria tão enlouquecedor quanto o anterior (senão mais). Ocorre que essa quantidade inconcebível de informações que os mercados processam organicamente somando esforços relativamente pequenos de indivíduos que visam seu próprio interesse teria de ser aprendida e manejada por um grupo de indivíduos que, quanto menor fosse, mais propenso à sobrecarga estaria; e, quanto maior fosse, mais propenso aos problemas de coordenação estaria. E tudo isso em prol de pessoas que eles nem conhecem e nem necessariamente se preocupam com. Esses são os motivos pelo qual economistas como F.A. Hayek e Milton Friedman acreditavam que as políticas de planejamento central da economia tendem ao fracasso.

Isso, evidentemente, não significa que uma intervenção não possa melhorar os resultados desses sistemas. Assim como podemos tomar uma medicação que remedie um problema de funcionamento em nosso organismo, podemos intervir alterando uma ou outra variável do funcionamento econômico e esperar que as demais se ajustem organicamente à essa alteração, e eventualmente melhorar os resultados obtidos. Mas, como também ocorre nos tratamentos médicos, precisamos estar cientes que essas intervenções podem possuir efeitos colaterais indesejados.

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