Paul Romer contra os “macroeconomistas de água doce”

Vou fazer nesse texto um resumo da crítica feita por Paul Romer, ex-economista-chefe do Banco Mundial e Nobel de economia em 2018, a uma das correntes predominantes na macroeconomia atual — a Escola Novo-Clássica; ou a Nova Escola de Chicago; ou, ainda, como alguns preferem chamá-los, os “macroeconomistas de água doce” (em referência ao fato de que os principais centros dessa escola estão localizados no interior dos EUA — Minnesota e Chicago, principalmente — enquanto que os principais centros da Escola Novo-Keynesiana estão localizados nas universidade das costas americanas — Harvard, MIT, Stanford, etc.; estes, por sua vez, são chamados de “macroeconomistas de água salgada”).

Essa escola surgiu com Robert Lucas na década de 70 a partir de suas críticas à economia keynesiana. A ideia inicial de Lucas era de que as variações no produto real que acompanham as variações no produto nominal são frutos de informação incompleta por parte dos produtores, e isso explicaria a não-neutralidade da moeda no curto prazo. Uma vez que os produtores obtivessem as informações necessárias para perceber que o aumento na demanda por seu produto se deveu meramente a um aumento na quantidade de moeda e não à uma variação nos preços relativos, eles voltariam a produzir o mesmo que antes. Se o governo tentasse com frequência aumentar o produto real com injeções monetárias, com o passar do tempo o efeito seria nulo, pois os produtores absorveriam a informação de que o governo faria isso e agiriam de acordo com tal informação. As expectativas dos agentes econômicos seriam, portanto, racionais. Esta foi a grande inovação teórica dos novos-clássicos: a ideia de que os agentes agem com base não só naquilo que já aconteceu, mas naquilo que eles esperam, de forma racional, que vá acontecer.

Romer diz que essa teoria deu uma contribuição enorme para a ciência econômica, comparável em importância com o modelo de crescimento de Solow ou o modelo de competição monopolística de Dixit-Stiglitz. Segundo ele, “ao mostrar como introduzir informações imperfeitas [na teoria econômica], Lucas ofereceu uma explicação intelectualmente séria da regularidade empírica conhecida como a curva da Philips”. O problema, para Romer, surge com as teorias derivadas do modelo inicial de Lucas, sobretudo a teoria dos Ciclos Reais de Negócios (ou RBC, na sigla em inglês).

A RBC parte do conceito de expectativas racionais para chegar à proposição de que os ciclos econômicos se devem às maximizações intertemporais dos agentes, que reagem a mudanças exógenas (geralmente mudanças tecnológicas) elevando ou diminuindo o nível de produção. Foi a partir daí, segundo Romer, que Lucas e seus seguidores se perderam.

Romer diz que tais economistas abandonaram aquilo que ele chama de “integridade de Feynman” (em referência ao físico ganhador do Nobel em 65, Richard Feynman). A integridade de Feynman seria, citando o próprio físico, “uma espécie de integridade científica, um princípio de pensamento científico que corresponde a uma espécie de completa honestidade. Por exemplo, se você está fazendo um experimento, você deve reportar tudo o que você acha que pode torná-lo inválido — não só o que você acha que é certo sobre ele. […] Detalhes que possam causar dúvidas sobre a sua interpretação devem ser reportados. Você deve fazer o melhor que puder para explicá-la. Se você criar uma teoria, por exemplo, e anunciá-la, então você também deve colocar todos os fatos que não concordam com ela, bem como aqueles que concordam”.

Nas palavras de Romer, Lucas e seus seguidores “parecem ter parado de se envolver com qualquer macroeconomista fora do seu círculo bem definido de apoiadores, mesmo que alguns desses macroeconomistas os levassem a sério. O isolamento auto-imposto resultante permitiu que os modelos RBC ganhassem raízes e persistissem por muito tempo. O pensamento de grupo desses economistas permitiu um movimento coordenado para longe do uso de dados para avaliar ou testar uma teoria e, em vez disso, o uso de dados apenas para fazer calibração. A lealdade parece ter impedido qualquer crítica interna, uma vez que a teoria tornou-se opaca e enganadora”.

Romer considera que inicialmente Lucas possuía a integridade de Feynman, mas com o tempo se perdeu na “convicção de Stigler” (em referência ao economista Nobel em 82). A convicção de Stigler se refere a uma citação deste economista a respeito daqueles pesquisadores que deixaram de se guiar pela verdade e passaram a fazer proselitismo. Segundo Stigler, este tipo de pesquisador “está perfeitamente persuadido do significado e da exatidão de suas ideias e a elas subordina todas as outras verdades, porque parecem-lhe menos importantes do que a aceitação geral de sua verdade. Ele é mais um guerreiro contra a ignorância do que um estudioso entre as ideias”.

O que fez Lucas se desviar tanto de sua rota original? Para Romer, um dos motivos foi que suas ideias iniciais foram muito mal recebidas entre os macroeconomistas bem-estabelecidos. Esse comportamento, por si só um tanto anti-científico, levou à reação tão anti-científica quanto do auto-isolamento já dito acima, pois isto era “a única maneira de manter viva a revolução das expectativas racionais. O mal-entendido é que Lucas e seus colegas interpretaram a reação hostil que eles receberam de economistas como Robert Solow como uma forma de resistência implacável e irracional de departamentos como o MIT”.

Paul Krugman, Nobel em 2008, também escreveu alguns posts sobre esse tema e seu diagnóstico diverge ao de Romer quanto ao motivo do afastamento da ciência por parte dos macroeconomistas de água doce. Segundo ele, foi mais uma questão de orgulho mesmo. Escreve ele queno início dos anos 80, no entanto, era esmagadoramente claro que a confusão racional [a tese de Lucas] não poderia explicar os ciclos econômicos, seja empiricamente ou teoricamente […] E então uma parte substancial da profissão voltou aos modelos de preços rígidos, argumentando que, sob competição imperfeita, coisas como custos de menu ou pequenos desvios da racionalidade perfeita eram suficientes para fazer a moeda não ser neutra no curto prazo […] Mas Lucas e sua escola não poderiam voltar atrás, pois eles queimaram suas pontes. Eles haviam aproveitado o momento em que as pessoas levavam seus modelos a sério para declarar forte e agressivamente que o keynesianismo de qualquer tipo era um absurdo total, que tudo o que os macroeconomistas haviam feito nas quatro décadas anteriores era inútil. Eles teriam que ter muita integridade intelectual para admitir que poderiam ter sido prematuros, que seus modelos não estavam funcionando e que afinal talvez houvesse algo que servisse na teoria keynesiana. Mas esse tipo de integridade não se manifestou […] Em vez disso, eles foram ainda mais longe no “buraco do coelho” de equilíbrio geral, principalmente com a Teoria do Ciclo Real de Negócios”.

A maior parte da discussão abordada aqui se deu em 2015. Em setembro de 2016, Romer reuniu suas suas críticas em um artigo intitulado “O Problema com a Macroeconomia”, que incendiou a profissão.

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Cabe ressaltar duas coisas:

(i) Particularmente não possuo inclinação para nenhum dos lados, nem a favor de Lucas e os novos-clássicos, nem contra, pelo simples motivo de que não tenho o conhecimento técnico mínimo requerido para entender de forma completa a teoria novo-clássica e as críticas a ela relacionadas. Apenas escrevi esse texto com o pretexto de trazer ao conhecimento do leitor essa discussão entre os grandes economistas do mundo.

(ii) É interessante imaginar o desfecho dessa trama. Será que a crítica de Romer vai prevalecer e as teorias dos novos-clássicos, que têm hoje muito influência no mainstream, vão aos poucos perder importância entre as novas gerações de macroeconomistas? Ou será que tais teorias continuarão firme como um dos pilares da macroeconomia moderna? Será que nos livros de HPE do futuro veremos algum capítulo reservado à “crítica de Romer”, que levou os novos-clássicos do apogeu à queda? Seria um tanto irônico se isso ocorresse, já que a própria ascensão de Lucas foi marcada por suas críticas a Keynes, que levou à derrocada da economia keynesiana no mainstream.

Finalizo com uma citação do Romer. Estando ele certo nessa discussão ou não, sua seguinte citação é um belo guia a todas as pessoas que queiram se engajar de forma séria na pesquisa científica:

“Não há motivo para sufocar o desenvolvimento de novas linhas de investigação teórica ou empírica com medo de que algum dano terrível se produza. Se os economistas aderirem à ciência, as idéias erradas desaparecerão. Somente os que estão certos terão uma influência duradoura. Aderir à ciência significa prestar atenção aos estudiosos que estão explorando novos caminhos e se recusar a prestar atenção aos grupos separatistas. Não importa o que eles [os grupos separatistas] digam, quando eles param de se engajar com pessoas de fora que discordam, eles param de fazer ciência”.

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