Por que o futebol gera comportamento rent-seeking?

Introdução

O Brasil é o país do futebol. E essa paixão vai muito além do mero entretenimento. O futebol influencia o ambiente de trabalho, molda a cultura da classe trabalhadora, impacta as relações raciais, movimenta causas políticas e sociais e auxilia na formação da identidade nacional brasileira (Fontes e de Holanda, 2014). Nesse sentido, o Brasil é um país com uma cultura pujante.

Por outro lado, o Brasil é também um país muito pobre. Antes que diga que “não é que o país seja pobre, mas desigual”, saiba que, sim, ele é extremamente desigual também. Acontece que ele é desigual e pobre. Pobre em termos monetários, considerando o valor adicionado na produção de bens finais quando dividido por toda a sua população (ou seja, PIB per capita). Veja, não estou falando de bem-estar ou outras medidas que capturam o desenvolvimento de uma nação de maneira multidimensional (para uma análise sobre esses conceitos, recomendo este texto).

De acordo com relatório do IBGE (2024), 5,8% da população brasileira reside abaixo do limiar de pobreza de US$ 2,15 por dia. Assim, o Brasil possui o segundo maior percentual com população abaixo da linha de pobreza dentre os países do G20. Pelos dados do índice Better Life da OCDE, a renda média doméstica disponível líquida ajustada per capita no Brasil é inferior à média da OCDE, de US$ 30.490 por ano. Com relação ao índice de emprego, aproximadamente 57% das pessoas com idades entre 15 e 64 anos no Brasil têm emprego remunerado, abaixo da média de empregos da OCDE, de 66%.

Segundo o Relatório sobre as Desigualdades Mundiais do World Inequality Lab, os 10% mais ricos no Brasil ganham quase 59% da renda nacional total, enquanto a metade mais pobre ganha 29 vezes menos do que estes 10% mais ricos. Além disso, os 50% mais pobres possuem menos de 1% da riqueza do país, enquanto o 1% mais rico detêm quase a metade da fortuna patrimonial brasileira. Entre os mais de 100 países analisados no relatório, o Brasil é um dos mais desiguais. Ou seja, desigual e pobre.

E uma das infelizes tragédias da nossa pobreza e desigualdade é justamente sermos o país do futebol… “Espera aí, mas como assim?“, você deve estar se perguntando. Meu objetivo neste texto é demonstrar como o fato de sermos um país imbuído no futebol, juntamente com o fato de sermos pobres e desiguais, gera desperdícios de recursos no formato de rent-seeking. Mas, antes que eu possa fazer isso, precisamos entender a definição correta de rent-seeking.

A definição correta de rent-seeking

De acordo com Robinson e Torvik (2011), a forma como as economias reagem a choques ou novas oportunidades econômicas depende da robustez das instituições. Essas oportunidades podem vir de recursos naturais, inovações tecnológicas e mais. Em países com instituições fortes, as novas oportunidades tendem a trazer benefícios. Já onde as instituições são fracas, os efeitos podem ser prejudiciais. Nesse cenário, é interessante explorar a abordagem da Public Choice (ou Escolha Pública) na economia política.

A Escola da Escolha Pública ampliou o escopo dos modelos de escolha racional da economia aplicados ao cenário político e, além disso, introduziu a ideia de que o interesse próprio motiva todo o comportamento humano, não apenas o de agentes no mercado, mas de políticos, burocratas, grupos e empresas que buscam favores do governo. Desse modo, o economista não só fala de falhas de mercado, mas também de falhas de governo. E é nesse contexto de economia política que os alunos de economia ou ciência política aprendem sobre rent-seeking.

Ao realizarmos uma breve pesquisa no Google, encontramos as seguintes definições incompletas de rent-seeking:

  • Rent-seeking é o nome utilizado nas ciências políticas e econômicas para falar sobre a influência de agentes privados em decisões de políticas públicas.
  • O termo “rent-seeking” refere-se a atividades econômicas e comportamentos que buscam obter ganhos para o setor privado por meio da manipulação de políticas governamentais e regulamentações, ao invés de criar atividades produtivas ou inovadoras.
  • Rent-seeking é uma prática bastante conhecida no Brasil. Ela ocorre quando uma pessoa ou organização usa o seu poder econômico para obter vantagens do governo.

O problema dessas formulações é que elas limitam o conceito ao cenário em que foi originalmente proposto. Isso estreita desnecessariamente o conceito, impedindo a exploração de suas implicações lógicas. Por exemplo, muitos estudantes de economia aprendem o conceito de vantagens comparativas para explicar os fluxos de comércio entre países, pois essa lei afirma que o comércio entre dois países é sempre benéfico, mesmo que um deles produza todos os bens de forma mais eficiente. No entanto, como mostra Peñaloza (2021), essa lei se aplica a qualquer situação de comércio econômico, seja entre dois indivíduos, seja entre duas nações.

Comecemos do básico: o que é “rent”? Uma tradução literal seria “aluguel”. Mas é disso que os economistas estão falando?

Segundo Alchian (1991, p. 591): “Rent (renda) é o pagamento pelo uso de um recurso, seja ele terra, trabalho, equipamentos, ideias ou até mesmo dinheiro. Normalmente, a renda para o trabalho é chamada de ‘salário’; o pagamento por terra e equipamentos é frequentemente chamado de ‘aluguel’; o pagamento pelo uso de uma ideia é chamado de ‘royalty’; e o pagamento pelo uso de dinheiro é chamado de ‘juros’. Na teoria econômica, o pagamento por um recurso cujo valor disponível não é sensível ao tamanho do pagamento recebido por seu uso é denominado ‘renda econômica’ ou ‘quasi-renda’, dependendo de se a insensibilidade ao preço é permanente ou temporária“.

Naturalmente, agentes racionais vão querer maximizar suas remunerações o máximo possível. Por exemplo, quem não quer ganhar um salário alto e trabalhar o mínimo possível? Rendas, que funcionam como favores ou presentes, atraem esses atores devido à sua natureza contestável. Assim, o tempo e os recursos gastos disputando essas rendas acabam desviados da produção social efetiva. Esse desperdício, resultante da competição por rendas, é o que chamamos de rent-seeking (Hillman, 2013).

Para esse conceito, estamos considerando renda (rent) econômica, ou seja, a diferença entre a remuneração que um fator de produção comanda e o seu custo (marginal) de oportunidade. Portanto, rent-seeking é um dispêndio de recursos reais na economia para aferir rent. Em outras palavras, a competição por renda (econômica) é um desperdício de recursos da sociedade, dados seus custos de oportunidade, para agentes maximizarem seus rents.

Note, nada nessa definição nos limita ao contexto político da busca pelo lucro ou ganho a partir do uso do governo. Basta que haja uma má-alocação de recursos produtivos decorrente de uma competição por rendas. Tal qual no caso das vantagens comparativas, o conceito de rent-seeking é uma ferramenta teórica muito poderosa e muito mais ampla do que se supõe normalmente. Um exemplo ilustrativo é justamente o caso do futebol no Brasil.

O que rent-seeking tem a ver com futebol?

Como já mencionado, o Brasil é um país pobre e, portanto, com grandes desafios econômicos. As causas desses problemas estruturais na economia do Brasil decorrem da persistência de instituições políticas extrativistas. Essas instituições, que se beneficiam da extração de recursos e riqueza de uma parte da sociedade em favor de outra, geralmente os mais poderosos, moldaram historicamente a distribuição de terras e recursos no Brasil. A continuidade dessas práticas gerou profundas desigualdades e impediu reformas estruturais essenciais, limitando o acesso equitativo a oportunidades e afetando negativamente o crescimento econômico e a eficiência institucional do país (Engerman e Sokoloff, 2002; Naritomi et al., 2007; Naritomi et al., 2012).

E aqui entra o futebol. Decorrente das nossas instituições ruins e da persistência de desigualdades, o jovem de baixa renda se vê em um cenário em que lhe é ofertada uma escola pública de baixa qualidade e cheia de problemas, e as possibilidades de mobilidade social via trabalho formal são limitadas. Se esse jovem tiver algum talento em futebol, então vale mais a pena alocar recursos produtivos que poderiam ser destinados ao acréscimo do estoque de capital humano para quem sabe virar um profissional e ter a chance de melhorar de vida.

Ser o país do futebol desvela, por trás dessa linda e genuína tradição cultural, instituições ruins e um histórico de desigualdade persistente que reforça essas instituições. O que desencadeia um comportamento de rent-seeking dos mais pobres se agarrando a qualquer possibilidade de sair da situação atual. Tal superinvestimento (individual) no futebol, mesmo que racional do ponto de vista de indivíduos auto-interessados, culmina em uma tragédia agregada.

De fato, o futebol movimenta muito dinheiro. Para se ter uma noção dos dados, a indústria do futebol no país responde por 0,72% do PIB brasileiro (Confederação Brasileira de Futebol, 2019). O relatório também revela que o futebol brasileiro contribuiu com R$ 52,9 bilhões para a economia em 2018, levando à criação de aproximadamente 156 mil empregos (Confederação Brasileira de Futebol, 2019; Nakamura e Cerqueira, 2021).

Entretanto, como analisado por Araujo e Borghi (2024): “Um fator implícito no mundo do futebol é que apenas uma minoria consegue conquistar uma vida de luxo através dessa profissão. […] 23.238 jogadores de futebol ganhavam até R$ 1.000,00 mensais em seus clubes, o que equivalia a 82,40% dos atletas cadastrados. Além disso, 96,08% ganhavam até 5 mil reais. Para efeito de comparação, no ano de 2016, o salário mínimo era de R$ 880,00, valor semelhante ao que a maioria dos jogadores do país ganhava mensalmente.

Portanto, o quadro geral é o seguinte: considerando, por um lado, a falta de oportunidades e perspectivas profissionais de um jovem pobre brasileiro, e, por outro lado, a alta quantidade de dinheiro em circulação no mundo do futebol, este jovem pobre irá optar por gastar grande quantidade de seu tempo e energia (seus recursos) buscando se profissionalizar no futebol (ou seja, terá um comportamento rent-seeking, segundo a definição correta deste termo), ao passo que negligenciará a obtenção de capital humano, a busca por uma profissão remunerada mediana. Sem nada a perder, o jovem pobre brasileiro irá apostar todas as suas fichas em um moonshot, seja no futebol, no funk ou, até mesmo, no mundo do crime. Poucos irão acertar esse tiro, e a maioria se verá inevitavelmente em uma vida adulta com trabalhos mal remunerados, devido ao seu baixo nível educacional.

Conclusão

Em suma, o futebol, embora seja uma paixão nacional e uma parte crucial da cultura brasileira, também reflete as profundas desigualdades e problemas estruturais do país. O Brasil é rico em recursos naturais, mas pobre e desigual em termos econômicos. Essa pobreza e desigualdade é tanto causa quanto consequência da nossa má alocação de recursos produtivos, em um feedback loop difícil de sair.

O fenômeno do rent-seeking, onde indivíduos buscam maximizar seus ganhos através de favores em vez de gerar riqueza, agrava esses problemas decorrentes da má alocação de recursos produtivos. No contexto do futebol, jovens de baixa renda investem suas esperanças e recursos neste esporte como uma possível saída da pobreza, resultando em uma tragédia coletiva onde poucos alcançam sucesso financeiro. Os dados demonstram que, apesar da enorme movimentação econômica gerada pelo futebol, ele não resolve o problema da desigualdade no país e pode, na verdade, perpetuar o ciclo de pobreza e má alocação de recursos no Brasil.

Referências

ALCHIAN, Armen A. Rent. In: The World of Economics. London: Palgrave Macmillan UK, 1991. p. 591-597.

ARAUJO, Mayhan; BORGHI, André. In: Clube, N. E. (2024, January 23). Adolescentes e jovens de baixa renda veem o futebol como uma esperança de ascensão social. Mídia NINJA, 21 jan. 2024.

CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Impacto do futebol brasileiro. 2019.

ENGERMAN, Stanley L.; SOKOLOFF, Kenneth L. Factor endowments, inequality, and paths of development among new world economics. National Bureau of Economic Research, 2002.

FONTES, Paulo Roberto Ribeiro; DE HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque (Ed.). The country of football: Politics, culture & the beautiful game in Brazil. Hurst & Company, 2014.

HILLMAN, Arye L. Rent seeking. In: The Elgar Companion to Public Choice, Second Edition. Edward Elgar Publishing, 2013. p. 307-330.

IBGE. Criando sinergias entre a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável e o G20: caderno desigualdades: primeiras análises. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.

NAKAMURA, Wilson Toshiro; CERQUEIRA, Sérgio de Albuquerque. The New Era of Brazilian Football and Clubs Managed as a Business. Revista de Administração Contemporânea, v. 25, n. 4, p. e-210055, 2021.

NARITOMI, Joana; SOARES, Rodrigo R.; ASSUNCAO, Juliano. Rent seeking and the unveiling of ‘de facto’ institutions: development and colonial heritage within Brazil. National Bureau of Economic Research, 2007.

NARITOMI, Joana; SOARES, Rodrigo R.; ASSUNÇÃO, Juliano J. Institutional development and colonial heritage within Brazil. The journal of economic history, v. 72, n. 2, p. 393-422, 2012.

PEÑALOZA, Rodrigo A. S. Microeconomia em doses: lei das vantagens comparativas. Medium, 20 abr. 2021.

ROBINSON, James A.; TORVIK, Ragnar. Institutional comparative statics. National Bureau of Economic Research, 2011.

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