Curva de Lorenz e outras representações de desigualdade

Introdução

Em um outro texto (que pode ser lido aqui) clareamos algumas confusões típicas que se encontram em discussões sobre desigualdade econômica e sua relação com a desigualdade de renda. Fazendo uma leitura próxima a de Ray (1998), iremos agora adentrar na discussão delicada de como medir a desigualdade. Quais são os critérios que gostaríamos que nossa medida atendesse e quais suas possíveis limitações? Isso que tentaremos responder aqui.

Para resolver o problema de achar uma métrica para mensurar a desigualdade, primeiro vamos assumir que já possuímos uma medida ideal de renda que mapeia perfeitamente o bem-estar entre os indivíduos, supondo que sejam superadas todas as dificuldades de se inferir bem-estar a partir da renda. Uma vez possuindo esse santo graal, então fica a questão de como medir a desigualdade econômica.

Medindo a desigualdade a partir de um exemplo simples

Sob a hipótese de existência de uma medida ideal unidimensional de renda (que mapeia univocamente o bem-estar), então como medir a desigualdade econômica a partir dessa medida? Vamos assumir que temos dois indivíduos, x e y, numa economia cuja renda total seja de 100 unidades. Suponha as seguintes situações (cada uma delas dadas por números romanos):

É intuitivo afirmar que a situação I é a mais desigual. A segunda pior é a V e em seguida a situação com 70/30, o que implica que tanto III quanto IV são iguais do ponto de vista da desigualdade, uma vez que o que importa é a razão entre o mais rico e o mais pobre ou entre o mais pobre e o mais rico. Concluindo, a situação menos desigual é aquela com igualdade plena, ou seja, a situação II. Sendo assim, a situação I tem desigualdade máxima, enquanto a situação II tem desigualdade mínima.

Num quadro como esse é trivial ordenar as situações de acordo com a desigualdade. Entretanto, o que acontece quando se acrescenta mais um indivíduo, que chamaremos de z? Vejamos.

Tendo em vista esse cenário, qual situação é mais desigual? Como medir a desigualdade entre essas duas situações? De I para II, tanto o indivíduo x, quanto z ficaram mais ricos, embora em proporções e quantidades diferentes. Entretanto, o indivíduo y ficou mais pobre, possuindo a maior variação de renda em termos absolutos. Então, qual medida usar para mensurar a desigualdade econômica neste exemplo?

Antes de discutir quais medidas usar dentre as várias disponíveis, faz-se necessário estabelecer critérios desejáveis (ou até ideias) que queremos que tais medidas satisfaçam. Então a questão se torna: quais são os critérios desejáveis para uma medida de desigualdade econômica?

Critérios desejáveis

A busca por critérios desejáveis se justifica pelo fato de possuirmos inúmeras medidas de dispersão de renda. Então precisamos ter algum norte de qual usar, dados nossos objetivos. Antes de adentrarmos nessa discussão, é necessário separar o conceito de medida de desigualdade e representação de desigualdade. Uma medida de desigualdade é uma função que mapeia diferentes níveis e/ou categorias de renda em um número real, já uma representação de desigualdade é uma forma de documentar graficamente uma dada distribuição de renda. Ou seja, como regra de bolso, pode-se considerar que medida é uma função, ao passo que representação é um gráfico.

Agora podemos adentrar nos critérios que gostaríamos que uma medida ou representação de desigualdade (idealmente) tivesse:

Princípio da Anonimidade

Toda medida (ou representação) deve ser anônima. Ou seja, a medida (ou representação) deve ser independente da identidade dos indivíduos.

Um exemplo que violaria o princípio da anonimidade seria a seguinte. Suponha duas distribuições de renda iguais, com a única diferença entre elas sendo que em uma um indivíduo x é o mais rico da distribuição e em outra esse mesmo indivíduo x é o mais pobre. Se uma medida considerar que existe diferença de desigualdade entre as duas distribuições, então essa medida fere o Princípio da Anonimidade.

Princípio da População

Toda medida (ou representação) de desigualdade deve ser invariante ao tamanho da população.

Uma maneira de entender esse princípio é o seguinte: suponha uma dada população com uma certa medida de desigualdade. Agora suponha que cada um dos indivíduos dessa população seja clonado, com seu clone possuíndo exatamente a mesma renda que o indivíduo original possui. O Princípio da População diz que a medida de desigualdade não deve se alterar. Caso se altere, então tal medida fere esse princípio.

Princípio da Renda Relativa

Toda medida (ou representação) de desigualdade deve ser invariante a mudanças proporcionais na renda de todos os indivíduos.

O que isso quer dizer é que, por exemplo, se for dobrada a renda de cada um dos indivíduos de uma determinada população (mantendo, assim, a distribuição de renda relativa dos indivíduos), então uma medida de desigualdade que satisfaça o Princípio da Renda Relativa não se altera.

Princípio de Dalton

Toda medida (ou representação) de desigualdade “aumenta” (i.e., entrega uma medição de desigualdade maior) quando são feitas distribuições regressivas entre os indivíduos (i.e., dos mais pobres aos mais ricos).

Esse princípio nos diz que se há duas distribuições de renda, se consigo ir da distribuição A para a distribuição B fazendo transferências regressivas, então deve ser o caso de que a medida (ou representação) de desigualdade aumentou. Ou seja, na medida em que a distribuição de A se torna a de B com as transferências dos pobres para os ricos, então B ficou mais desigual do que A, segundo essa medida.

Com esses princípios em mente, vamos agora olhar para formas clássicas de representação de desigualdade e ver se satisfazem os princípios estipulados.

Analisando as formas de representação de desigualdade

I) Dispondo indivíduos em ordem crescente de renda

Uma representação possível é simplesmente ordenar os indivíduos em ordem crescente de renda no eixo da abscissa, enquanto representa a renda desses indivíduos no eixo das ordenadas. Como ordenamos de forma crescente, segue-se que o gráfico também vai ser crescente.

Satisfaz o Princípio da Anonimidade?

Sim, pois se arbitrariamente trocarmos as rendas entre indivíduos de tal modo que o indivíduo i fique com a renda do indivíduo j, que por sua vez fique com a renda do indivíduo k e assim por diante, temos que ao final desse processo a representação da desigualdade permanece a mesma.

Satisfaz o Princípio da População?

Não, pois se dobramos a população, o gráfico vai ficar mais “esticado”. Sendo assim, se colocarmos o gráfico da população dobrada em cima do gráfico original ficará claro que são representações distintas, uma vez que não coincidem.

Satisfaz o Princípio da Renda Relativa?

Não, pois se dobrar a renda da população, o novo gráfico ficará acima do gráfico original. Sendo assim, fica claro, quando colocamos um gráfico sobreposto ao outro, que são representações distintas, uma vez que não coincidem.

Satisfaz o Princípio de Dalton?

Não, pois ao transferirmos dos mais pobres aos mais ricos, a representação no gráfico dos mais pobres será em uma região menor no eixo das ordenadas, enquanto dos mais ricos será uma região maior. Sendo assim, fica claro, quando colocamos um gráfico em cima do outro, que são representações distintas, uma vez que não coincidem. (Embora, vale notar, que o Princípio de Dalton não faz muito sentido em representações de desigualdade, sendo mais apropriado para medidas. De qualquer forma, checaremos em todas as representações colocadas neste texto se o princípio é satisfeito).

II) Histograma

Outra forma muito comum na representação da desigualdade são histogramas por intervalos de renda em nível, considerando a porcentagem da população nos intervalos estipulados, como são representados na imagem a seguir.

Satisfaz o Princípio da Anonimidade?

Sim, pois se arbitrariamente trocarmos as rendas entre indivíduos de tal modo que indivíduo i fique com a renda do indivíduo j, que por sua vez fique com a renda do indivíduo k e assim por diante, temos que ao final desse processo a representação da desigualdade permanece a mesma. Além do mais, a representação não permite com que se identifique os indivíduos, uma vez que estamos considerando faixas de rendas e porcentagens, portanto não dá pra individualizar uma representação a ponto de tornar a identidade algo relevante.

Satisfaz o Princípio da População?

Sim, pois se multiplicarmos a população por um escalar qualquer, o percentil da população em cada intervalo de renda em nível permanece o mesmo.

Satisfaz o Princípio da Renda Relativa?

Não, pois como a representação da renda é em nível, ao dobrarmos a renda da população (ou multiplicarmos por um escalar positivo qualquer) teremos que a representação gráfica vai ser deslocada para a direita quando comparada com a representação original.

Satisfaz o Princípio de Dalton?

Não, pois podemos pensar em um exemplo no qual transferimos renda de um indivíduo mais pobre para outro mais rico com ambos dentro de um mesmo intervalo de renda, de modo que o gráfico continua o mesmo. Este tipo de gráfico viola o princípio na medida em que se espera uma piora na desigualdade com uma transferência dessas.

III) Quartis

Outra representação possível é ordenar os quartis da população no eixo da ordenadas, enquanto o percentual de renda que vai para cada um desses quartis é colocado no eixo das abscissas.  O primeiro quartil representa os 25% da população mais rica da economia, portanto tem a maior barra; o segundo os próximos 20%, portanto a segunda maior barra; e assim por diante.

Satisfaz o Princípio da Anonimidade?

Sim, pois se arbitrariamente trocarmos as rendas entre indivíduos de tal modo que o indivíduo i fique com a renda do indivíduo j que por sua vez fique com a renda do indivíduo k e assim por diante, temos que, ao final desse processo, a representação da desigualdade permanece a mesma. Além do mais, a representação não permite identidade, uma vez que estamos considerando faixas de rendas e porcentagens, portanto não dá pra individualizar uma representação a ponto de tornar a identidade algo relevante.

Satisfaz o Princípio da População?

Sim, pois se multiplicarmos a população por um escalar qualquer, a porcentagem da renda em cada quartil permanece a mesma.

Satisfaz o Princípio da Renda Relativa?

Sim, pois se multiplicarmos a renda por um escalar qualquer, a representação permanece a mesma, uma vez que estamos considerando a porcentagem da renda.

Satisfaz o Princípio de Dalton?

Não, pois se fizermos a distribuição de renda do mais pobre do quarto quartil para o mais rico do primeiro quartil, temos que a barra do primeiro quartil não vai se alterar. Consequentemente, o princípio não é satisfeito na medida em que a representação pré-redistribuição e pós-redistribuição permanece a mesma.

IV) Curva de Lorenz

A figura abaixo representa uma curva de Lorenz. No eixo das ordenadas temos a porcentagem da renda acumulada dos indivíduos, enquanto no eixo das abscissas temos a porcentagem da população em ordem crescente de renda. Naturalmente, 100% da população tem que ter 100% da renda acumulada, já os 20% mais pobres da população podem ter no máximo até 20% da renda. A mesma lógica se aplica aos 40% mais pobres da população, e assim por diante. A linha pontinlhada vermelha do gráfico representa a porcentagem máxima que qualquer faixa acumulada da população pode ter de renda acumulada, formando assim uma reta de 45°. Porém, os pontos verdadeiros da curva de Lorenz se encontram, tipicamente, abaixo da linha de 45° e vão convergindo ao valor máximo na medida em que consideramos toda a população.

Alguns fatos que podemos tirar dessa representação é que quanto mais próximo a curva estiver da linha de 45° menos desigual é a distribuição de renda dessa economia. Simetricamente, quanto mais distante a curva de Lorenz estiver da linha de 45° mais desigual é a distribuição de renda. Esse resultado se deve ao fato de que a linha de 45° representa justamente a distribuição na qual há igualdade plena na renda dos indivíduos.

Quando consideramos o caso contínuo da curva de Lorenz (que é o caso do gráfico abaixo), o crescimento da linha ocorre a taxas crescentes, de modo que a curva é convexa.

Tendo isso em vista, vejamos se essa representação satisfaz os critérios desejáveis estipulados.

Satisfaz o Princípio da Anonimidade?

Sim, pois as identidades não têm relevância para a representação gráfica, já que estamos lidando com termos percentuais. Se realocarmos as rendas, não há motivo para esperar que o gráfico mude.

Satisfaz o Princípio da População?

Sim, pois se multiplicarmos a população por um escalar qualquer, como representamos em termos percentuais, qualquer ponto da população no gráfico permanecerá igual.

Satisfaz o Princípio da Renda Relativa?

Sim, pois se multiplicarmos a renda por um escalar qualquer, a representação permanece a mesma, uma vez que estamos considerando a porcentagem da renda. Essa é a mesma razão pela qual é satisfeito o princípio anterior (porém agora considerando a renda ao invés da população).

Satisfaz o Princípio de Dalton?

Sim, pois se é realizada uma redistribuição de renda de um ponto arbitrário para outro ponto arbitrário à direita do primeiro (portanto, uma redistribuição de indivíduo mais pobre para um indivíduo mais rico), temos que o percentual da população antes do ponto em que se fez a transferência permanece com o mesmo formato. O mesmo ocorre para o percentual depois do ponto que recebeu a transferência.

Entretanto, o percentual entre esses pontos está mais desigual, então a porcentagem da renda acumulada dos indivíduos mais pobres que estavam neste intervalo vai ficar menor e, consequentemente, representamos com uma curva abaixo da original. Assim, as transferências regressivas, de fato, tornam a representação gráfica da redistribuição de renda mais desigual.

Consequentemente, a curva de Lorenz satisfaz os nossos critérios desejáveis. Além disso, podemos apresentar um critério objetivo de modo a comparar duas distribuições de renda, assim podendo afirmar qual é a distribuição mais desigual.

Algumas informações adicionais sobre a curva de Lorenz

Vamos supor que temos duas distribuições de renda, uma curva em vermelho que chamaremos de L(1). Tal curva pode ser interpretada como a distribuição de renda de um país ou de uma década. E uma outra curva em azul que chamaremos de L(2), que pode ser interpretada como a distribuição de renda de um outro país ou do mesmo, mas em uma outra década.

Como a curva azul L(2) está abaixo da curva vermelha L(1), isso significa que conseguimos ir da curva L(1) para a curva L(2) fazendo distribuições regressivas, ou seja, se retirarmos renda dos mais pobres da distribuição vermelha e darmos para os mais ricos desta mesma distribuição, vai chegar um momento em que a distribuição vai ir para baixo até que coincida com a distribuição azul.

Portanto, se a curva de Lorenz de um país (em um determinado tempo) está abaixo da curva de Lorenz de outro país, então podemos dizer que o primeiro país é mais desigual que o segundo. No exemplo acima, podemos dizer que L(2) é mais desigual que L(1), pelos critérios que adotamos. Ou seja, se acreditarmos que para comparar a desigualdade deve-se usar os princípios da anonimidade, população, renda relativa e Dalton, então segue-se que podemos usar o critério de Lorenz para comparar distribuições de renda.

Todavia, o critério de Lorenz é um critério incompleto. Lembrando que esse critério nos diz que se uma curva de Lorenz representando uma dada distribuição está abaixo de uma outra curva de Lorenz, então a primeira é mais desigual que a segunda. Assim, o critério é incompleto na medida em que não provê uma forma de ordenar as distribuições em relação à desigualdade quando as curvas de Lorenz se cruzam.

No gráfico acima, a curva azul até o ponto de intersecção está acima da curva vermelha, o que faz dela ser a distribuição menos desigual pelo critério de Lorenz, até o ponto de intersecção. Entretanto, após o ponto de intersecção, a curva azul fica à direita da vermelha, o que faz dela ser a distribuição mais desigual segundo o critério de Lorenz. Ou seja, a única forma de sair da curva azul para chegar na vermelha é fazendo uma combinação de distribuições regressivas e progressivas. Dado isso, não conseguimos afirmar pelo critério de Lorenz qual das distribuições analisadas é mais desigual. Portanto, tem-se que o critério de Lorenz é incompleto, pois não permite comparar distribuições de renda em que as curvas se cruzam.

Tendo visto isso, como transformar o critério de Lorenz em uma medida de desigualdade? Para fazer isso, usamos o critério de consistência de Lorenz.

O critério de consistência de Lorenz

Diz-se que uma medida de desigualdade é Lorenz-consistente se ela atribui uma medida de desigualdade maior para a distribuição de renda que possui a sua curva de Lorenz abaixo.

Podemos dizer que a consistência de Lorenz é equivalente a satisfazer os quatro princípios (o da Anonimidade, da População, da Renda Relativa e de Dalton). Ou seja, se uma medida é Lorenz-consistente, então ela satisfaz os princípios desejáveis, justamente porque a curva de Lorenz já satisfaz esses mesmos princípios. Se uma medida satisfaz os quatro princípios, também se segue que ela é Lorenz-consistente. Vale destacar que embora o critério de Lorenz seja incompleta, uma medida completa, i.e., que consegue ordenar quaisquer par de distribuições de modo a saber qual é a mais desigual, pode ser Lorenz-consistente.

Conclusão

Ficaremos por aqui para evitar um texto excessivamente extenso. Para uma leitura mais completa sobre medidas de desigualdade, leia Hoffman (1998) e Ray (1998). Espero que o presente texto tenha clareado um pouco desses problemas para um público mais amplo. Até a próxima!

Referência

Hoffmann, Rodolfo. “Distribuição de Renda”. Medidas de Desigualdade e Pobreza. Editora da Universidade de São Paulo (1998).
Ray, Debraj. Development Economics. Princeton University Press, 1998.

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