Os anos 70, embora tenham começado sob a euforia das taxas de crescimento superiores a 10% a.a. combinadas a uma inflação significativamente inferior à da década anterior, vivenciaram um aumento do produto que foi acompanhado de um agravamento da concentração de renda a que não se costuma dar tanta atenção. Em 1960, os 1% mais ricos concentravam pouco mais de 28% da renda nacional. Em doze anos, a porcentagem subiu para 39%. Paralelamente, os 50% mais pobres perderam 6 p.p. da sua participação sobre o rendimento da população economicamente ativa. No passado, era muito comum que se atribuísse o aumento da desigualdade à incomodamente verdadeira rigidez de curto prazo da oferta de mão de obra qualificada durante o período de crescimento. A partir desse raciocínio, no entanto, é possível inferir que a desigualdade é um sinal de que o governo andava na direção certa. Nada mais falso. Essa visão, por ser lastreada em alguns elementos corretos – com destaque para teoria do capital humano -, transmite uma sensação enganosa de que a má distribuição de renda é um acidente. Veremos mais à frente que outras disfunções econômicas igualmente sérias, como a inflação, foram alvo de explicação semelhante.
No começo, quando o Brasil não só tinha a seu favor termos de troca amigáveis como ainda usufruía dos benefícios institucionais derivados das reformas introduzidas pelo PAEG sobre seus níveis de maturidade tecnológica e eficiência alocativa, a produtividade anual por trabalhador subiu, em média, 7% ao ano. De 1973 em diante, após o primeiro choque do petróleo, apesar de termos continuado crescendo a taxas elevadas, a principal fonte do crescimento passou a ser gasto público em capital fixo. Apesar da diferença entre as cargas tributárias passada e atual e da injustificavelmente parecida taxa de poupança, o nível de investimento da época é recordista até hoje. Embora a estratégia tenha sido bem-sucedida no seu objetivo de manter fortes taxas de crescimento, o excelente desempenho econômico – que, em razão do baixo nível de poupança doméstica, apenas foi possível graças aos empréstimos externos que produziram assombrosos déficits em transações correntes – ajudou a esconder os efeitos inflacionários das despreocupadas desobediências a restrições orçamentárias cujos desencadeamentos só eram suavizados por generosas ofertas de bens subsidiados por via de estatais e pela indexação – que, para muitos, teve papel determinante sobre a hiperinflação.
Em fins de 1980, a redução da liquidez global somada ao aumento das taxas de juros internacionais e à consequente deterioração do balanço de pagamentos provocada pelo segundo choque do petróleo, em 1979, levaram o governo brasileiro a adotar políticas de contenção de demanda agregada. Em resposta ao ajuste, o crescimento médio despencou de 7% a.a. entre 1978 e 1980 para -2,1% a.a. entre 1981 e 1983. Foi a primeira vez que o Brasil sofreu recessão desde que o cálculo do PIB passou a ser feito por órgãos oficiais, em 1947. A despeito das muitas críticas que a gestão foi alvo na época, a inflexão da política econômica significava, na prática, uma tentativa de reencontro com a esquecida agenda de compromisso com as contas fiscais. Talvez, no calor do momento, não tenha sido fácil para todos perceberem a importância desse movimento, mas, após, pelo menos, sete anos de populismo, os ditadores voltaram a se guiar pelas melhores práticas internacionais a que se tinha acesso. É uma pena que tenham demorado tanto tempo para abandonar a irracionalidade econômica.
Diferentemente do que o governo esperava, entretanto, a inflação manteve-se quase indiferente à tentativa de ajuste das contas públicas. Tem muitas maneiras de explicar por que razão a taxa de inflação não deu resposta. No excelente paper Larida, André Lara Resende e Pérsio Arida enxergam, pelo menos, cinco enfoques. O primeiro deles nega que medidas de austeridade tenham falhado. Segundo os que advogam em favor desta tese, a desinflação somente acontece com alguma defasagem em relação ao choque. Além dos que defendem essa teoria, há, também, os que questionam a existência de políticas mais rígidas. Estes desconfiam dos números do governo e alegam má mensuração dos dados fiscais disponibilizados pela ditadura militar. Um terceiro enfoque enfatiza o aspecto psicológico da inflação. Dessa leitura do fenômeno inflacionário conclui-se que este só existe por causa da falta de credibilidade do Banco Central. Outro grupo sustenta que uma maior contração da base monetária achataria a renda nominal e, logo, reduziria a inflação. Boa parte dos que rejeitavam essa tese, muito embora não discordassem dela, consideravam-na excessivamente custosa. Por último, havia aqueles, geralmente mais associados à esquerda, que argumentavam em favor de um “choque heterodoxo”. Estes acreditavam não só na teoria da inflação inercial, como na administração de preços para solucioná-la.
É, no mínimo, curioso que, apesar dos muitos anos que nos separam do nascimento do Real, ainda se discuta quem estava certo. Dos livros de economia, aprendi que, ao contrário do que o primeiro grupo imaginava, a inflação cresceu com o passar do tempo; que, embora o segundo grupo estivesse surpreendentemente certo ao colocar um asterisco sobre os dados disponíveis, equivocou-se ao colocar em dúvida o maior conservadorismo fiscal do governo. O terceiro enfoque a que os autores fazem alusão abusa, ao meu juízo, do direito de errar ao ignorar a relevância de um orçamento equilibrado sobre a estabilidade; o quarto, embora não tenha sido colocado à prova, provou-se incomparavelmente pior que o programa de estabilização de 1994 na medida que os seus efeitos sobre variáveis reais teriam sido muito mais deletérios. De todos os diagnósticos a que o paper faz menção, nenhum prescreve um remédio tão danoso quanto o quinto, ao meu ver. A “mágica” dos congelamentos não só terminou em filas e escassez, como no adiamento do efetivo tratamento do paciente. Foram anos de negacionismo econômico dado a um organismo cuja doença que o acometia nunca esboçou resposta ao “tratamento alternativo” receitado pela heterodoxia brasileira.
Em agosto de 1982, enquanto o Brasil ainda se recuperava da retração de 3,1% do PIB, o México, ao ver-se diante de um endividamento externo equivalente a 134% do PIB e sem nenhuma condição de honrar com as suas obrigações externas, declarou moratória da dívida. Ainda que o governo brasileiro repetisse que “o Brasil não é o México”, a equipe econômica – que não tinha qualquer tipo de compromisso com o nacionalismo enfadonho dos seus chefes – sabia que, cedo ou tarde, seria obrigada a buscar um acordo com o FMI. E o acordo ocorreu em fevereiro, sob as justas condições de manter o pagamento dos credores e cortar gastos. Na época, a esquerda, em tenebrosa consonância com o que de pior há na direita brasileira, enxergou nessa obviedade uma maneira de submissão aos interesses estrangeiros – notadamente, americanos.
No mês em que o Brasil acordou o socorro financeiro, o governo carecia de reservas internacionais – sem as quais não seria possível saldar suas dívidas. Para resolver o problema, a autoridade estatal desvalorizou a sua moeda corrente em 30%. Era uma maneira muito convencional de incentivar as exportações e estimular o ingresso de dólares na conta de capital. O problema é que na lista de colaterais de uma maxidesvalorização cambial estão presentes o encarecimento dos bens intermediários importados (a que alguns chamam de “inflação de custos”). É impossível afirmar com certeza como as coisas teriam sido na ausência ou mudança de uma política pública passada. No entanto, acho muito pouco provável que as adversidades provenientes das desvalorizações da taxa de câmbio tivessem produzido tanto impacto se Castelo Branco, na década de 1960, no lugar de ter escolhido trilhar o caminho da indexação, tivesse optado pela estabilidade monetária. Na prática, a decisão do militar pode ser traduzida como uma preferência pela convivência harmônica com a inflação em vez de erradicar o problema.
As consequências inflacionárias da segunda maxidesvalorização foram, até então, as mais duras de que se tem registro na literatura monetária brasileira. Em um só ano, a inflação subiu 60 p.p. Do ângulo distributivo, esses choques eram terríveis, pois somente uma pequena elite abastada gozava da proteção a que a indexação dava acesso. Pelo lado das contas externas e do produto, na contramão do que aconteceu com a taxa de inflação, a suposta “crise cambial” foi extremamente útil. Em primeiro lugar, pelo estupendo acúmulo de reservas internacionais derivado do aumento das exportações de industrializados. No caso brasileiro, que chegou ao absurdo de, literalmente, não ter reservas, a notícia serviu de alento. Em segundo, porque o aquecimento da atividade produtiva surgiu em um contexto dentro do qual a economia sofrera, no ano anterior, retração de quase 3% em relação ao ano que a antecedeu. Com todas as dificuldades que se impunham ao cotidiano econômico por força da inflação, o crescimento de 5,4% ficou de muito bom tamanho.
Em 1985, após a decepcionante morte de Tancredo Neves, José Sarney assumiu a presidência da República. Na carência da legitimidade popular a que, talvez, somente um civil em nada identificado com o regime que ficava para trás teria acesso, o peemedebista, embora tenha colocado fim à conta movimento e ao orçamento monetário, condescendeu com pressões corporativas por aumentos de despesas que dificultaram a estabilização. A elevação dos gastos, embora tenha anabolizado um crescimento de curto prazo, também ajudou a empurrar para cima as expectativas inflacionárias dos agentes, que se desfaziam dos Cruzeiros que mantinham em suas carteiras e refugiavam-se em ativos que retivessem o valor dos depósitos. Àquela altura, o nível geral dos preços subia a uma taxa superior aos 240% a.a. e, para frustração dos muitos brasileiros que acreditaram que a redemocratização poderia servir de “bala de prata” para todo sofrimento a que este país estava sujeito, não dava sinais de melhora. Ao contrário, a cada dia que se passava, o quadro inflacionário era agravado pela sistemática indiferença fiscal do governo.
Para interromper a espiral inflacionária, foi lançado, em fevereiro de 1986, o primeiro programa de combate à inflação sob regime civil: o Plano Cruzado. O Cruzado, embora trouxesse consigo coisas inovadoras, – como, por exemplo, uma merecida homenagem a Villa-Lobos na cédula de 500 -, teve o seu sucesso de longo prazo inviabilizado pelo diagnóstico do qual partia. O plano possuía como fundamento teórico uma tese de acordo com a qual a hiperinflação tinha matriz inercial. Ou seja, a inflação corrente, por relação de causa e efeito, era determinada pela inflação passada. Dessa maneira nada convencional de se enxergar as coisas, os autores do plano, no lugar de terem elaborado uma estratégia de combate à inflação, desenvolveram um programa de combate ao aumento dos preços.
Essa distinção, tão importante quanto estranha e indevidamente ignorada, resultou em uma política de controle de preços cujas consequências foram trágicas de tão esperadas e esperadas de tão trágicas. Possivelmente, o desastre não teria sido tão retumbante caso o presidente tivesse mantido os aumentos de salário mínimo e abono recomendados por seus economistas. Não obstante, a despeito da correção dos benefícios sociais pagos pelo Estado, a tentativa de replicar o pacto social israelense em solo brasileiro teria, muito provavelmente, dado com os burros n’água. Em primeiro lugar, pela pouco perspicaz criação de um sistema de “gatilho” responsável pelo fracasso da superdesindexação. Em segundo, pela falta de maior coesão social em torno de instituições inclusivas. Sobretudo, em terceiro, por causa de uma política fiscal não menos expansionista que a dos governos anteriores. Talvez este seja um bom resumo do tripé sobre o qual esteve assentado o “cruzadismo“.
Após as eleições gerais em novembro e a acachapante vitória do PMDB nas urnas, Sarney pôs fim ao plano no começo de 1987. A escassez de reservas provocada pela expansão da demanda doméstica em combinação com uma excessiva valorização cambial e falta de liquidez global havia sido tão profunda que, em vez de desvalorizar a moeda, preferiram declarar moratória da dívida externa em fevereiro. Ainda que muitas pessoas tenham compreensivelmente contestado a suspensão dos pagamentos de vencimentos externos, a decisão não foi nada mais que a mais óbvia das consequências do completo esvaziamento de divisas estrangeiras desencadeado pelo Cruzado. Foi desta demoníaca união entre os expansionismos fiscal e monetário somados a uma não menos diabólica política de administração de preços sob regime de câmbio fixo que resultou a causa pela qual o Brasil tornou-se inadimplente. Nenhum país planeja ou gosta de dar calote. Diferentemente do que se pode imaginar, os passivos dessa decisão são gigantescos. Contudo, por causa dos misticismos econômicos que deram suporte técnico ao Cruzado, o país foi obrigado a interromper os pagamentos.
Em junho, Luís Carlos Bresser Pereira lançou o “Plano Bresser”. Embora tenha, sabiamente, executado uma política creditícia mais restritiva, o plano também partia do pressuposto de que a inflação era inercial. Este erro de diagnóstico levou o governo a, uma vez mais, adotar uma políticas de congelamento com forte efeito sobre o ágio e o abastecimento dos mercados. A sensação era parecida com a do enfermo que não acredita na medicina tradicional e, a cada frustração clínica, busca um novo charlatão para lhe receitar o mesmo medicamento ineficaz – como se a persistência dos sintomas da doença estivessem menos ligados ao remédio que a quem o indica. Embora as políticas de fixprice tenham maior importância do que se pensa na doutrina econômica, essa sabedoria alternativa ao tratamento conservador da inflação tornou-se, após o fracasso do Cruzado, não mais que mero ato de fé. E, com o perdão da provocação, é dessa maneira como eu enxergo o Plano Bresser. Com algumas poucas ressalvas aos acertos na política cambial (com evidente destaque para a nada desprezível desvalorização e consequente reposição das reservas despendidas no ano anterior), o programa foi, essencialmente, disciplinado pela não menos mágica que infantil crença de que, ao apagar o passado, é possível curar um câncer com quase vinte anos de metástase. Infelizmente, quando se chega a um estágio tão avançado de degradação do organismo econômico, alguns sacrifícios são necessários. Não serão uma desindexação inocente e um congelamento temporário que vão tirar o paciente da UTI.
Em janeiro de 1989, o governo lançou o seu primeiro programa de enfrentamento à inflação sob a égide da então recém promulgada Constituição democrática. Se na política o clima era de otimismo com as primeiras eleições diretas para presidente depois de quase três décadas e da ampliação de direitos civis, sociais e políticos, na economia o contexto era desolador. A inflação, já muito elevada e beirando a hiperinflação, não indicava trégua. O produto, tão pujante durante a década anterior, estava estagnado. Não faltavam motivos para desânimo. E o ministro Maílson, embora tenha acertado ao reajustar tarifas públicas, ainda que sob pena de um temporário aumento dos preços, assinou um plano que, apesar dos seus méritos, também acreditava na feitiçaria inercialista de que a inflação era uma doença concentrada mais nas mentes que na moeda.
Há, na medicina, um excelente paralelo com a hiperinflação brasileira. Todos, pelo menos uma vez na vida, já sentiram dor de cabeça. Isso ocorre porque a cefaleia é um sintoma comum a muitas desordens que afligem o corpo humano. O estresse, por exemplo, por liberar hormônios como adrenalina e cortisol em quantidades superiores às que o organismo está acostumado, acelera tanto a frequência cardíaca que, muitas vezes, contrai os vasos que irrigam o cérebro. Outra coisa, esta mais grave, que pode gerar dor de cabeça são os tumores cerebrais. Isso acontece em razão de uma pressão intracraniana que causa a sensação de “cabeça inchada”. No Brasil, nós insistimos, por muito tempo, no diagnóstico de que a economia só estava estressada. Essa teimosia de receitar-se nada mais que um repouso fez o câncer chegar a proporções absolutamente desnecessárias. Tanto a desvalorização do câmbio quanto a contração da oferta monetária foram positivas, mas a ausência de maior controle das despesas governamentais, agravada pelas novas exigências fiscais da Constituição, comprometeu o plano que, apesar dos seus pouco contestáveis acertos, errou ao congelar preços e taxa de câmbio.
Em quatro anos de governo Sarney foram três congelamentos. Alguns mais longos, outros menos. Mas todos nasceram do mesmo diagnóstico segundo o qual a inflação resulta de expectativas inflacionárias tóxicas. Na Argentina tentou-se um plano com embasamento teórico parecido. A mais óbvia dessemelhança, talvez, tenha estado na intenção do Austral em comprimir o déficit público e o financiamento inflacionário. Aqui, nossa escolha foi estritamente pelo combate à inércia que, supostamente, disciplinava a hiperinflação. A (primeira) década perdida, além de ter acumulado uma média de 330% de inflação anual, registrou declínio da renda per capita. Mas não se pode perder de vista que esses planos terríveis somente aconteceram em resposta a uma doença que já existia antes. A doença não é filha dos governos civis, mas dos militares que, por décadas, além de terem endividado o país com credores externos, transformaram aquilo que parecia ser uma tendência à estabilidade, com a criação do Banco Central, em inflacionismo.
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