A economia dos fumantes

O problema das externalidades é que sua ocorrência gera uma falha de mercado, ou seja, faz com que o mercado falhe em alocar os recursos da maneira mais eficiente possível. Discutimos em um outro texto (que pode ser lido clicando aqui) sobre todos os problemas envolvidos nessa falha de mercado. Porém, como foi dito: “resolver os problemas de externalidades já é difícil quando existe uma externalidade clara e facilmente identificável, como é o caso da firma poluidora; porém é ainda mais difícil resolver o problema quando a externalidade não é facilmente identificável. Um exemplo claro disso é o caso dos cigarros”.

Pois bem, vamos analisar nesse texto o consumo de cigarros e discutir se isso constitui uma externalidade ou não.

Segundo a teoria econômica tradicional, ao consumir cigarro, o indivíduo faz uma escolha racional sobre o fumo, e dada a análise de custo-benefício, o fumante escolhe racionalmente consumir a droga. Mas e o vício gerado pelo consumo? Não é preciso que o governo regule devido ao vício? A resposta é não, pois, como argumentam Becker e Murphy (1988), na avaliação dos custos o fumante computa o fato de que o consumo do cigarro pode aumentar as chances de aumentar seu consumo futuro devido ao vício.

Se não existe nenhuma falha de mercado que esteja impedindo os agentes de alcançarem o consumo ótimo do bem, então a teoria econômica tradicional diz que não deve haver interferência governamental no mercado. Então acabou a discussão? A teoria econômica tradicional diz que não se deve regular o consumo do cigarro e ponto? Ainda não podemos chegar a essa conclusão, pois ainda não analisamos se há falhas de mercado no consumo de cigarros. Pode ser que haja externalidades no consumo de cigarro. Vamos analisar abaixo cada uma das possíveis externalidades geradas pelo consumo desse bem e possíveis formas de combatê-las.

O problema das externalidades no fumo de cigarro

A externalidade no sistema de saúde

Pode-se argumentar que o consumo de cigarro aumenta os custos do sistema de saúde. Em virtude disso seria preciso haver regulamentação ou taxação desse bem. Ou, alternativamente, bastaria que o sistema de saúde fizesse um ajuste atuarial, ou seja, alterasse o prêmio de seguro para compensar a diferença gerada pelo consumo da droga. Isso faz os consumidores internalizarem os custos do consumo de cigarro para o sistema de saúde, de modo que a externalidade some.

A externalidade da produtividade menor

Outro argumento em prol da ideia de que cigarro é uma externalidade é o argumento da produtividade. Segundo o argumento, a produtividade do trabalhador fumante é menor, e isso prejudica a economia como um todo. Porém, basta que a empresa contratante ajuste o salário do fumante para compensar a produtividade mais baixa. Se isso acontecer, não há externalidade.

A externalidade dos incêndios

Há também o argumento dos incêndios. Cigarros poderiam causar uma quantidade não trivial de incêndios. Segundo Leistikow et al (2000), cigarros são causadores de cerca de 3% a 4% dos casos de incêndio em residências americanas. Se esse número justifica (em termos de custo-benefício) a regulamentação governamental, isso é outro debate.

A externalidade do fumo passivo

Por fim, há o argumento do fumo passivo. Primeiramente, não há um consenso na literatura sobre quais são os danos de fumo passivo,e em segundo lugar, a maior parte do consumo passivo vem de familiares fumando no ambiente residencial. Se seguirmos a teoria tradicional econômica e considerar que o familiar fumante maximiza a utilidade considerando as utilidades dos outros familiares, então foi plenamente racional sua decisão, não há porque ter externalidade.

Mas a suposição de considerar a família como um agente unitário é uma simplificação que nem sempre reflete a realidade. Pode haver conflitos de interesses e relações de barganha dentro de uma mesma família, de modo que um fumante da família não leve em conta o bem-estar de outro membro desta família e gere, assim, uma externalidade negativa a esse membro. Para ler uma revisão de literatura sobre heterogeneidade de agência dentro da família, veja esse paper de Chiappori e Donni.

O problema das internalidades no fumo de cigarro

Então a depender da situação pode ser que, considerando a teoria econômica tradicional, não haja externalidade no fumo do cigarro, de modo que não haja motivo para a taxação ou a regulamentação. Todavia, a teoria econômica tradicional pressupõe racionalidade na decisão, só que pesquisas em economia comportamental vêm demonstrando que nem sempre o pressuposto da racionalidade é verificado na prática. Desse modo, o dano infligido pelos indivíduos a si mesmos através do cigarro pode combatido mediante a ação governamental.

Um motivo porque o modelo tradicional falha é que ele considera que a maior parte dos fumantes começou a fumar quando jovem e é difícil argumentar que jovens sabem calcular de forma racional os custos e benefícios a longo prazo de suas decisões. Segundo a literatura experimental, jovens tendem justamente a ignorar as consequências de longo prazo de suas decisões. Segundo Gruber (2001, p.1279), “para os jovens há evidências claras de que eles subestimam a probabilidade futura de fumar. Por exemplo, entre os alunos do último ano do ensino médio que fumam, 56% dizem que não fumarão cinco anos depois, mas apenas 31% deles realmente pararam de fumar daqui a cinco anos. Além disso, entre aqueles que fumam mais de um maço por dia, a taxa de tabagismo cinco anos depois entre aqueles que afirmaram que fumariam (72 por cento) é na verdade menor do que a taxa de tabagismo entre aqueles que afirmaram que não fumariam (74 por cento) [U.S. Departamento de Saúde e Recursos Humanos 1994]”.

Há também, em relação aos jovens fumantes, o argumento da economia comportamental que mostra que as pessoas não descontam futuros mais distantes na mesma taxa que descontam futuros mais próximos. Esse viés pode justificar o porque os mais jovens começam a fumar mais cedo. As evidências sobre essa inconsistência no desconto intertemporal para fumantes pode ser encontrada em Bickel et al., 1999.

Há também o fato de que pessoas têm problema de autocontrole. Sendo assim, os indivíduos, mesmo planejando de maneira ótima o que fazer, podem ter dificuldades de realizar esses planos. Um caso típico é justamente a ação de fumar. Uma forma de se evitar o problema do autocontrole são os dispositivos de compromisso (commitment devices) no qual um indivíduo fumante aposta com os outros que consegue parar, justamente para aumentar os seus custos e assim conseguir realizar a tarefa prometida.

O consumo de cigarro seria, portanto, um exemplo de internalidade, ou seja, um dano causado no próprio indivíduo pelo comportamento adverso que não é totalmente levado em conta na hora da tomada de decisão. Por existir uma internalidade, existe, pelo menos sem levar em conta outros argumentos, justificativa para ação governamental, assim impondo custos para diminuir os problemas gerados no curto prazo por falhas dos indivíduos e assim aumentar a eficiência, corrigindo a falha do mercado.

Vimos, então, que é possível haver externalidades no consumo de cigarro (mas que não é necessariamente sempre o caso), assim como vimos que com internalidades existe um motivo para o governo corrigir a falha de mercado. Porém ainda vem a pergunta: deve o governo fazer isso, mesmo na presença de internalidades? Afinal, tal decisão dá muito poder ao governo, que está efetivamente regulando uma decisão privada dos indivíduos em prol do bem comum — mas até que ponto o governo vai efetivamente parar em sua regulamentação? A sociedade deve entrar num consenso sobre se o governo deve ou não intervir, e se essa intervenção é legítima para começo de conversa.

Referências

Becker, Gary S., and Kevin M. Murphy. “A theory of rational addiction.” Journal of Political Economy 96.4 (1988): 675-700.

Bickel, Warren K., Amy L. Odum, and Gregory J. Madden. “Impulsivity and cigarette smoking: delay discounting in current, never, and ex-smokers.” Psychopharmacology 146.4 (1999): 447-454.

Chiappori, Pierre-André; Donni, Olivier (2009). “Non-unitary models of household behavior: a survey of the literature”. IZA Discussion Papers, No. 4603, Institute for the Study of Labor (IZA), Bonn.

Leistikow, Bruce N., Daniel C. Martin, and Christina E. Milano. “Fire injuries, disasters, and costs from cigarettes and cigarette lights: a global overview.” Preventive Medicine 31.2 (2000): 91-99.

Gruber, Jonathan, and Botond Köszegi. “Is addiction “rational”? Theory and evidence.” The Quarterly Journal of Economics 116.4 (2001): 1261-1303.

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