Destrinchando 25 anos (ou 5 mandatos presidenciais) de política fiscal

Nesta entrada, falaremos brevemente sobre a política fiscal no Brasil. O objeto de estudo específico é o resultado fiscal do governo central, que, em contraste com o conceito de ‘governo geral’, não considera as contas públicas dos estados e municípios brasileiros.

O motivo de contemplarmos somente o governo federal (ou governo central, também denominado como União), é a sua maior facilidade na obtenção dos dados públicos, disponibilizados em riquíssimo detalhe a partir de 1997 até hoje pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN).

O resultado fiscal do governo central é, grosso modo, obtido através da soma de suas diversas fontes de receita (tributos federais, dividendos e operações de capital com empresas estatais) líquida das transferências a estados e municípios, subtraída dos gastos primários (todos os dispêndios, excetuado o pagamento dos juros da dívida pública), e descontando, finalmente, o resultado financeiro oriundo dos juros da dívida. Vamos defini-lo, algebricamente, da seguinte forma:

Em que ‘F(s)’ é o resultado fiscal, ‘R’ a receita líquida, ‘G’ os gastos primários e J os juros nominais da dívida

Como é de praxe na análise de variáveis fiscais, expressaremos cada um desses números como porcentagem do PIB. Assim, normalizamos para uma proporção da economia brasileira:

Onde ‘PIB’ é o PIB nominal, que pode ser definido como o produto entre o produto real ‘Y’ e o nível de preço medido pelo deflator ‘P’.

Enxergando graficamente o resultado (balanço) fiscal do governo, temos:

Aqui, tomei o cuidado de discriminar da receita líquida ‘r(l)’ uma parte definida como ‘r(ex)’ (um componente extraordinário acontecido em 2010 e 2019). Falaremos dela mais pra frente. ‘pfs’ representa o resultado fiscal primário, antes dos juros ‘j’.

Percebemos pelo gráfico que ao longo dos 25 anos de política fiscal, a mudança mais perceptível dos números foi uma virada do que costumava ser um superávit primário médio de aproximadamente 2% do PIB entre 2000 e 2013, para um déficit primário perto de 1.5% do PIB entre os anos de 2014 e 2019. Essa deterioração fiscal é conhecida e levou a um aumento de 20 pontos percentuais do PIB na dívida bruta – colocando em cheque a sustentabilidade fiscal brasileira.

Para além da sustentabilidade da dívida, mais coisas podem ser ditas sobre a evolução do resultado financeiro do governo federal. Em benefício de nuances nada triviais a esse respeito, proponho uma decomposição algébrica da variação do resultado do governo nos últimos cinco mandatos presidenciais. Assim, podemos avaliar se cada governo entregou um número melhor do que aquele que herdou.

Partindo da identidade fundamental que tínhamos anteriormente:

Podemos definir a variação do resultado fiscal em % do PIB da seguinte maneira:

Sabendo que ‘Y(t)’ e ‘P(t)’ crescem a taxas compostas que vamos definir como \delta (t) e \pi (t), temos:

Fazendo algumas manipulações algébricas finais do lado direito da equação e definindo tudo que está como proporção do PIB nominal como x(t) = X(t)/PIB(t) podemos chegar a:

Esses componentes valem como uma identidade, permitindo grande precisão na análise da evolução do resultado fiscal. Se quiséssemos ver o primeiro gráfico a partir das taxas de variação do resultado fiscal e as contribuições de cada um de seus componentes, teríamos:

Ou, alternativamente, podemos pegar períodos mais longos e não necessariamente idênticos e analisar a variação do resultado fiscal herdado no primeiro ano de mandato (resultado de um orçamento votado no último ano do mandato anterior), com o último ano efetivo de cada ciclo presidencial:

Os números fiscais apresentados nessa tabela ajustam aquilo que definimos como ‘efeito receita’ para os momentos em que, há pouco, identificamos ‘receitas extraordinárias’ (o ‘r(ex)’ do nosso primeiro gráfico), oriundas da cessão onerosa da Petrobras (ver aqui e aqui). A exclusão dessas receitas em 2010 e em 2019 ajudam a tornar a comparação entre mandatos um tanto mais justa, uma vez que faziam parte do balanço de ativos de todos os governos contemplados na análise, mas foram vendidos ocasionalmente no último ano do mandato Lula e primeiro ano do mandato Bolsonaro, contribuindo para um resultado aparentemente melhor do que os demais. O resultado da tabela conta algumas histórias interessantes.

A primeira delas é a relevante melhora no resultado fiscal observada entre 1997 e 2002, apesar dos anos turbulentos de crises internacionais na Ásia, na Rússia e que se prolongou na Argentina. O governo brasileiro, no entanto, precisou apelar nesse período para um aumento de carga tributária que se mostrou permanente, e a receita líquida do governo saltou de 14% para 18% do PIB ao fim do quinto ano.

A segunda história é fruto dos anos Lula, que desfrutou de um cenário internacional favorável e conseguiu manter um superávit fiscal razoável, elevando-o em 0.5% do PIB ao fim de 2010. O mandato Lula foi inigualável em termos de crescimento econômico no período, com PIB crescendo 4.5% ao ano em termos compostos, disparado na frente do segundo colocado FHC, com 2% ao ano. Foram ciclos econômicos diferentes cujas visões políticas trarão diferentes interpretações para as razões pelas quais essas taxas de crescimento se deram. Deixarei esse debate de lado.

A terceira história vem dos anos Dilma, cujo segundo mandato foi interrompido em maio de 2016, ano em que o vice-presidente Temer assume. Durante seu mandato, Dilma observou uma deterioração grave do resultado fiscal, com pioras substanciais em todos os componentes. Em relação ao mandato anterior, o ‘efeito receita’ de Dilma caiu quase 7 pontos do PIB, insuficientes para fazer frente à redução do ‘efeito gasto primário’ que caiu apenas 4.3 pontos do PIB no período, que foi somado ao aumento do ‘efeito juro’, que reduziu em 3 pontos do PIB. Nesse momento, o ‘efeito juro’ passa a tomar certo protagonismo na determinação do resultado fiscal, e ele é fruto de um grande aumento no prêmio de risco fiscal e da mais elevada inflação brasileira naquele período, forçando a taxa Selic a um pico de 14.25% em termos nominais e pressionando o custo de carregamento da dívida pública, cujo estoque aumentou significativamente. Caso seja do seu interesse discutir um pouco mais a condução da política monetária nesse período, tenho um texto dedicado a isto aqui.

Em quarto lugar, temos o curto mandato Temer, que durou oficialmente dois anos e meio, entre 2016 até 2018. Quando colocamos em perspectiva sua curta duração, percebemos que este foi o mandato que mais eficientemente melhorou a saúde financeira das contas públicas, sobretudo quando consideramos seu estado inicial (um déficit nominal de 8.6% do PIB) e suas condições nada favoráveis de governo (um crescimento econômico nada espetacular de 1.7% ao ano em média). Temer entregou uma reversão completa do ‘efeito juros’, conseguindo efetivamente reduzir o gasto nominal dos juros da dívida mesmo com um estoque mais elevado ao fim de seu mandato. Teve ajuda de uma queda forte da Selic no período, mas também gozou de uma boa redução dos prêmios de risco fiscal após a aprovação de emenda constitucional do ‘Teto dos Gastos’, que congelou o gasto primário do governo em termos reais. Isso, naturalmente, reduziu os juros de mercado e por consequência a Selic neutra.

E, finalmente, temos o mandato Bolsonaro, que ainda tem mais um ano de história para contar, mas que até agora se caracteriza principalmente por um governo com menos crescimento econômico e mais inflação do que os demais (0.3% de crescimento anual médio e 8% de inflação anual pelo deflator do PIB). Seria bastante injusto falar do atual mandato sem considerar a enorme reviravolta que foi a crise da pandemia ou desprezar o mérito da política fiscal feita em 2020 que foi rapidamente revertida em 2021, evitando maiores danos às contas públicas. O Brasil fez a consolidação fiscal mais dura do mundo no ano passado, devolvendo 8 pontos do PIB de gasto primário de 2020 para 2021. Até o momento, no entanto, o mandato tem pouco legado para deixar, e como está entregaria as contas públicas 0.7 ponto do PIB piores do que recebeu de Temer.

Considerações finais

A entrada da vez teve mais história do que costuma ser do meu agrado. O objetivo era trazer um pouco mais de cor aos números apresentados na tabela, que embutem bastante informação dentro de cada um deles. Como é do meu costume, deixarei toda a memória de cálculo desta análise em uma planilha pública no meu Google Drive. Este é o link.

A ideia da conta é inspirada em um exercício de decomposição fiscal feito por Carlos Góes no Twitter em 2019. Recomendo a leitura integral do fio dele. Ele merece os créditos.

Obrigado por chegar até aqui, bons estudos a todos.

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