Analisando a identidade da renda nacional

Vamos começar esse tópico de forma bastante direta olhando para a identidade contábil das contas nacionais:

A identidade contábil pela ótica da despesa é medida por Y (PIB) como a somatória de C (consumo das famílias), I (formação bruta do capital fixo, ou investimento), G (consumo do governo), X (exportações) e M (importações).

O subscrito ‘t’ na notação matemática acima é indicativo de que estamos lidando com tempo discreto. ‘t’ é um intervalo de tempo, que neste caso em particular vamos definir como trimestre. Adiante precisaremos lidar com variáveis em diferentes momentos (‘t-1’, ‘t+1’, ‘t+n’ para qualquer n sendo um número inteiro), mas sempre respeitaremos a medida discreta de ‘t’ intervalos trimestrais de tempo.

Vamos agora olhar os dados. O leitor pode acompanhar a lição seguindo os passos a seguir, baixando na tabela do IBGE os valores encadeados da equação em valores constantes e ajustados sazonalmente dos valores da equação acima de 1996 até 2020T2, conforme a tabela a seguir.

Em um exercício algébrico inicial, vamos aprender a computar e em seguida analisar as contribuições ao crescimento de cada um dos componentes do gasto público ao longo da série que nos é disponibilizada pelo IBGE. Para isso, faremos algumas transformações algébricas em nossos dados. Partindo da equação inicial, temos:

Subtraindo o quarto lag (mesmo trimestre do ano anterior) de cada um dos dados, ficamos com:

Vamos definir essa diferença interanual com um sinal de delta, pra facilitar a notação:

Agora vamos dividir ambos os lados da equação pelo PIB a preços de mercado, de novo em seu quarto lag:

Equação 1

Chegamos em uma equação interessante. Podemos ver que a taxa de crescimento do PIB pode ser decomposta pelas diferenças interanuais de um dos seus componentes da ótica da despesa e ser facilmente somado. Vamos definir essa decomposição da taxa de crescimento de contribuição, mudando a notação da seguinte forma:

Dessa forma, a equação 1 pode ser reescrita da seguinte forma:

Aplicando essas operações nas contas do IBGE, podemos obter os seguintes dados, ilustrados pelo gráfico abaixo.

Neste gráfico, podemos analisar não somente a história dos últimos 20 e poucos anos de crescimento da economia brasileira, como conseguimos também abrir cada componente da demanda por trás deste crescimento. Facilmente notamos que o consumo das famílias (c) é o principal driver de crescimento da economia brasileira, mas isso é uma característica amplamente esperada visto o tamanho da sua participação total no PIB (totalizando quase 2/3 do produto). Por outro lado, é possível notar como as contribuições ao crescimento por parte do investimento (i) foram muito mais tímidas desde a crise de 2015, fator bastante sintomático da lenta recuperação observada na economia brasileira desde então. Sem investimento e sem capital, a recomposição do mercado de trabalho e a retomada do emprego ficou bastante dificultada, pesando sobre a geração de renda e consumo futuro na economia.

O leitor atento deve ter notado que o gráfico possui uma variável a mais nele, que não é observável na base de dados que baixamos do IBGE. Esse dado é o resíduo da identidade do PIB (y-(c+i+g+(x-m)), frequentemente denominado como ‘variação dos estoques’. Esse item incorpora tanto uma conta que o IBGE não divulga a valores constantes, somente correntes (não deflacionados), quanto as diversas discrepâncias estatísticas do uso de deflatores únicos para cada um dos componentes da ótica da despesa (onde o deflator do PIB não é igual a composição dos deflatores do consumo das famílias, do governo, do investimento e assim por diante). Essa é mais uma daquelas diversas ‘surpresas’ que só quem trabalha com o dado na prática vai conhecer e saber tratar.

Espero que este texto tenha dado um gostinho do que significa a macroeconomia na prática, isto é, aquela feita em tempo discreto, com auxílio dos dados. De nenhuma forma é um material substituto ao conteúdo ensinado e aprendido na academia, mas é sem dúvida uma lacuna que só pode ser preenchida pelas disciplinas aplicadas, que estão em falta nos currículos acadêmicos hoje em dia, mesmo nas mais renomadas escolas de economia.

Publicado originalmente aqui.

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