Multiplicadores fiscais e neutralidade da dívida pública

Neste exercício, que considero uma continuação sobre a discussão promovida no post anterior sobre multiplicadores fiscais no meu blog, exploro a possibilidade de uma política fiscal expansionista que seja fiscalmente neutra. Em poucas palavras, considero qual seria o aumento de gasto público com determinada política específica cujo impulso ao crescimento seja suficiente para aumentar a arrecadação e manter estável a relação da dívida bruta sobre o PIB.

O contexto que motiva esta análise surge do atual debate de possibilidade de implementação de uma política de renda mínima focalizada ou universal para a economia brasileira. Visto a experiência promovida pelos coronavouchers implementados em 2020 e o seu considerável sucesso em reduzir a pobreza, acredito que um modelo simplificado como o que proponho aqui possa ajudar analistas a estruturar este debate.

Vamos apresentar o modelo enunciando hipóteses para a dinâmica da dívida, do crescimento econômico e da arrecadação:

Imagem 1

Na equação 1, B denota o estoque da dívida bruta, i descreve a taxa de juros de carregamento da dívida bruta no longo prazo, E e R representam gastos e receitas primárias do governo, respectivamente. Na equação 2, Y é o produto (PIB), g é o crescimento nominal de longo prazo, k é o multiplicador do gasto público e ΔE o nível do impulso fiscal. Na equação 3, x é a elasticidade-PIB da receita do governo. As variáveis denotadas em letras minúsculas são variáveis que estao em % do PIB.

Neste simplificado sistema de equações, descrevemos a dinâmica da dívida pública como função do estoque no período anterior mais o saldo entre despesas e receitas primárias do governo, o crescimento econômico como função de um crescimento sustentável autônomo (potencial) e o produto de um impulso fiscal vezes o seu multiplicador fiscal (k), e finalmente a dinâmica da arrecadação do governo, que segue um fator de elasticidade-PIB da receita (x) que segue o crescimento da economia.

Ao representar todas as equações deste modelo simplificado em percentual do PIB com uma equação final resolvida para o multiplicador fiscal e impondo que b(t+1) = b(t) = b (condição de solvência da dívida), chegamos na seguinte expressão algébrica:

Imagem 2

Aqui, o multiplicador fiscal encontrado é aquele requerido para que o gasto público seja fiscalmente neutro, ou seja, para que uma política fiscal expansionista impulsione o crescimento de forma a manter estável a dívida/PIB no nível b.

Temos que o multiplicador fiscal requerido para a neutralidade da solvência fiscal é função do nível da dívida, da relação de solvência entre (i-g), que representa o diferencial do custo de carregamento da dívida pelo crescimento autônomo, e do diferencial entre receita (denotado por x*r) e gastos futuros em percentual do PIB. Importante perceber que se k e x podem assumir valores maiores do que 1, então o crescimento responderia mais ainda a um impulso fiscal maior, permitindo um valor mínimo para k. Graficamente isso fica mais claro:

Em virtude do modelo ponderar o crescimento da economia entre o seu potencial autonômo e o estímulo fiscal e também deste crescimento determinar a receita futura, o multiplicador toma um caráter decrescente e assintótico a depender do tamanho do estímulo fiscal.

Os parâmetros adotados como premissas para este gráfico utilizam as expectativas futuras (média das projeções de 2021–2024) da Instituição Fiscal Independente (IFI) em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal de Dez/2020:

É importante notar que o resultado destes multiplicadores (1.5, mesmo adotando uma premissa otimista para a elasticidade-PIB da receita de 1.1) estaria fortemente condicionado ao tamanho do estímulo de um novo programa de gastos do governo. Ao compararmos este multiplicador requerido aos multiplicadores verificados para os impulsos agregados da economia brasileira (ver aquiaqui e aqui), percebemos que eles ainda são pouco factíveis, sendo possíveis apenas para momentos específicos de forte recessão econômica.

Também é razoável supor que quanto maior o estímulo requerido para determinado multiplicador, menor deve ser a probabilidade deste estímulo ter um multiplicador elevado, visto a maior dificuldade em se encontrar espaço suficiente para focalizar o gasto de forma eficiente (escassez de projetos de infraestrutura confiáveis, comprometimento do desenho de uma política de renda mínima, transbordamento do estímulo para compra de bens importados, etc). Desenhos de estímulo fiscal importam muito tanto para determinar o seu multiplicador, quanto para determinar também qual a elasticidade-PIB da receita esperada a partir deste estímulo, uma vez que gastos pouco focalizados que, por exemplo, incentivem a compra de serviços (tradicionalmente menos tributados no Brasil) reflitam em uma queda da elasticidade-PIB da receita em virtude de uma política fiscal ineficiente.

Outra observação importante deste framework é que ele não considera um fenômeno de crowding-out do gasto público, visto que, conforme previsto pela teoria, um aumento de gasto que pode ser percebido como aumento da tributação futura pode frear investimentos privados e reduzir o crescimento autônomo de longo prazo da economia. Normalmente este fenômeno tende a ser mais relevante quanto maior tende a ser a resposta das taxas de juros da economia para o crescimento da dívida. Este aumento, no entanto, nao é facilmente identificado empiricamente para o caso da economia brasileira.

Em conclusão, mesmo em um modelo simplificado e bastante leniente com relação à possibilidade de um moto-perpétuo, onde um aumento de gasto pode ser eternamente autofinanciável (em virtude da não-incorporação de uma dinâmica de crowding out, uma resposta cíclica de política monetária e/ou agentes ricardianos), podemos ver que encontrar um multiplicador fiscal que permita um aumento permanente de gasto público neutro ao aumento da dívida/PIB é improvável.

Cabe lembrar que detalhes importantes da intuição sobre multiplicadores fiscais podem ser encontrados no post anterior sobre eles no meu blog.

Apêndice

Abaixo se encontra a apresentação de como cheguei das 3 premissas da imagem 1 na equação da imagem 2.

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Publicado originalmente aqui.

Leia também:
Sob quais condições os multiplicadores fiscais são positivos? – Resumo de “How Big (Small) are Fiscal Multipliers”
Econometria de séries de tempo — Estudando a partir de aplicações em ambientes controlados (parte 1)
Auxílio Brasil e inflação — Análise de um choque de gasto em modelo macro estrutural
Crescimento econômico brasileiro – 100 anos de função de produção

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