Se você já assistiu algumas palestras do Ciro Gomes, certamente já o viu falando mal do regime de meta de inflação. Segundo o ex-candidato à presidência, não se pode tabelar uma variável macroeconômica desta forma. Na visão de Ciro, o BC teria que perseguir uma “meta de inflação a pleno emprego”, subordinando o cumprimento da meta da inflação ao nível de atividade.
De fato, no curto prazo há um trade-off entre reduzir a inflação ou o desemprego através da política monetária. Mas será que anunciar uma política monetária de pleno emprego desta forma seria a melhor maneira de manter a economia em plena capacidade no longo prazo com preços estáveis? Neste texto demonstraremos que não, e também será explicado resumidamente de onde vem o insight que fundamenta o regime nos dias de hoje mundo afora.
Construindo o modelo
Partindo de uma função de produção do tipo Cobb-Douglas, podemos definir o produto real Y em função da mão-de-obra empregada, N, do estoque de capital físico, K, e da tecnologia, A:
Y_t = A_t N_{t}^{\alpha} K_{t}^{1-\alpha}
em que 0 < \alpha < 1 .
Como nós não estamos interessados no estoque de capital e sim no emprego, definiremos U como a produtividade total do fator mão-de-obra, na forma:
U_t = \dfrac{Y_t}{N_{t}^{\alpha}} = A_t K_{t}^{1-\alpha}
Um crescimento de 1% em U, seja por aumento no estoque de capital ou na tecnologia, torna a mesma mão-de-obra empregada capaz de produzir 1% mais. Nossa nova função de produção então assume a forma:
Y_t = U_t N_{t}^{\alpha}
Equação 1
Modelando as firmas do setor privado como maximizadoras de lucro, podemos, a partir do teorema da agregação, dizer que o lucro agregado real, ρ, corresponde à renda total do país, Y, menos o número de trabalhadores, N, vezes o nível de salário real, W/P, onde W corresponde ao salário nominal médio e P ao nível de preço.
\rho_t = Y_t - N_t\dfrac{W_t}{P_t}
Equação 2
Substituindo a equação 1 em 2, obtemos:
\rho_t = U_t N_{t}^{\alpha} - N_t \dfrac{W_t}{P_t}
Maximizando lucro:
\dfrac{d\rho_t}{dN_t} = \alpha U_t N_{t}^{\alpha - 1} - \dfrac {W_t}{P_t} = 0
Podemos então determinar o nível de salário real compatível com a produtividade do trabalho, U, e com a mão-de-empregada, N, vigentes:
\dfrac{W_t}{P_t} = \alpha U_t N_{t}^{\alpha - 1}
Aplicando o logaritmo natural em ambos os lados:
ln(W_t) - ln(P_t) = ln (\alpha) + ln (U_t) + (\alpha - 1)ln(N_t)
Derivando ambos os lados implicitamente em relação ao tempo:
\dfrac{\dot{W_t}}{W_t} - \dfrac{\dot{P_t}}{P_t} = \dfrac{\dot{U_t}}{U_t} + (\alpha - 1)\dfrac{\dot{N_t}}{N_t}
A variação temporal do nível de preços sobre ele próprio corresponde à definição de taxa de inflação, π. Chamaremos a variação temporal de U sobre U de u (minúsculo), que corresponde ao crescimento relativo da produtividade do fator mão-de-obra, um choque de oferta que permite à economia produzir mais ou menos com os fatores disponíveis.
\dfrac{\dot{P_t}}{P_t} = \pi_t, \: \dfrac{\dot{U_t}}{U_t} = u_t
\dfrac{\dot{W_t}}{W_t} - \pi_t = u_t + (\alpha -1)\dfrac{\dot{N_t}}{N_t}
Equação 3
O hiato de produto, que chamaremos de h, corresponde ao quanto o produto está distante do seu potencial. Se h é positivo, indica que a economia opera além de sua capacidade e vice-versa. Aqui temos a definição de h tradicionalmente usada na literatura de macroeconomia, onde Y₀ corresponde ao PIB potencial de curto prazo:
h_t = ln \left( \dfrac{Y_t}{Y_0} \right)
Equação 4
Substituindo a equação 1 em 4:
h_t = ln \left( \dfrac{U_t N_{t}^{\alpha}}{U_t N_{0}^{\alpha}} \right)
Onde N₀ corresponde ao nível de mão-de-obra compatível com o pleno emprego, assumido como constante no curto prazo. Logo:
h_t = \alpha [ln(N_t)-ln(N_0)]
\dot{h_t} = \alpha \dfrac{\dot{N_t}}{N_t} \Rightarrow \dfrac{\dot{N_t}}{N_t} = \dfrac{\dot{h_t}}{\alpha}
Equação 5
Substituindo a equação 5 em 3:
\dfrac{\dot{N_t}}{N_t} - \pi_t = u_t + \dfrac{(\alpha - 1)}{\alpha}\dot{h_t}
Como \alpha < 1 , então:
\dfrac{(\alpha - 1)}{\alpha} < 0, \: \dfrac{(\alpha - 1)}{\alpha} = -\phi, \: \phi > 0
Logo:
\dfrac{\dot{W_t}}{W_t} = u_t + \pi_t - \phi \dot{h_t}
Equação 6
A relação de Phillips para os salários nos diz que os salários nominais variam de acordo com a expressão:
\dfrac{\dot{W_t}}{W_t} = \pi_{t}^{e} + \lambda h_t, \: \lambda > 0
Equação 7
Onde \pi^e corresponde à inflação esperada e λ é uma constante de sensibilidade dos salários nominais ao desemprego.
Quando as expectativas de inflação aumentam, tudo mais constante, os sindicatos pressionam por reajustes maiores. Analogamente, quanto menor o hiato de produto, h, e maior o desemprego, menos os sindicatos têm força para conseguir reajustes nominais, a depender de λ.
Igualando-se a variação dos salários nominais nas equações 6 e 7, obtemos:
\phi \dot{h_t} + \lambda h_t = (\pi_t - \pi_{t}^{e}) + u_t
Equação 8
Quando supomos que a inflação esteja ancorada, isto é, que as expectativas de inflação correspondam à inflação de fato em qualquer instante do tempo, e que a economia não sofra choques de oferta, matematicamente tem-se:
\pi_t - \pi_{t}^{e} = 0, \: u_t = 0
A equação diferencial 8 assume o formato:
\phi \dot{h_t} + \lambda h_t = 0
Que tem solução em h(t) dada por:
h_t = Ce^{-\dfrac{\lambda}{\phi}t}, \: h_{t=0} = h_0, \: h_t = h_0e^{-\frac{\lambda}{\phi}t}
Fazendo-se t tender ao infinito em h(t):
\displaystyle\lim_{x \to \infty} h_0e^{-\frac{\lambda}{\phi}t} = 0
Ou seja, para qualquer hiato de produto inicial, seja ele subemprego (h₀<0) ou sobremprego (h₀>0), uma vez que as expectativas de inflação correspondam à inflação, a economia tenderá ao pleno emprego. É o que os economistas chamam de taxa de desemprego natural, isto é, aquela taxa de desemprego que permite à economia operar com preços estáveis no longo prazo.
Caso as expectativas possam ser modeladas como adaptativas à Cagan, tem-se:
\dot{\pi_{t}^{e}} = \beta (\pi_t - \pi_{t}^{e}), \: \beta > 0
Equação 9
O hiato de produto estável significa:
\dot{h_t} = 0
A equação 8 adquire então o seguinte formato:
\lambda h_t = \dfrac{\dot{\pi_{t}^{e}}}{\beta} + u_t
Equação 10
A equação 10 nos diz que a única forma de manter a economia operando acima do seu produto potencial (h>0), onde a taxa de desemprego está abaixo da taxa natural, é acelerando constantemente as expectativas e a taxa de inflação, ou recebendo choques de oferta positivos. É intuitivo que as expectativas de inflação não podem subestimar a inflação para sempre, porque os agentes não são bobos e não se deixam enganar sucessivas vezes. No longo prazo, as expectativas devem corresponder à inflação de fato, e a economia irá retornar ao seu nível de emprego natural.
Por que uma meta de inflação?
Quando adotamos um sistema de meta de inflação, em que o BC tem liberdade para perseguir a meta sem interferência discricionário do governo central, tendemos a aumentar a credibilidade da autoridade monetária, de modo a ancorar mais facilmente as expectativas de inflação na inflação anunciada. Os resultados de uma inflação permanentemente ancorada são previstos pelas relações apresentadas acima: desemprego convergindo para sua taxa natural com preços estáveis.
Caso os agentes desconfiem da palavra do BC e elevem suas expectativas de inflação, a única forma de evitar que haja inflação de fato é criando uma recessão. Neste sentido, um Banco Central fraco, que não costuma cumprir sua palavra, tende a desancorar as expectativas, e isto gera inflação e/ou desemprego desnecessários ao longo do ciclo econômico.
Por que não uma meta de pleno emprego?
A maior parte dos choque de oferta são positivos: aumento na tecnologia, no estoque de capital, no nível de educação da mão-de-obra, etc. Este tipo de choque não envolve muita decisão sobre o que fazer. Basicamente eles permitem à autoridade monetária praticar uma política mais frouxa sem acelerar a inflação, o que é ótimo. Mas o que acontece na presença de um choque de oferta negativo, que faz a economia produzir menos com a mesma quantidade de fatores disponível? E quais seriam estes choques?
Bem, segundo a equação 8, um choque de oferta negativo precisa necessariamente criar uma inflação superior à expectativa, acelerando a expectativa de inflação segundo a equação 9, ou diminuir h; consequentemente, aumentando o desemprego. Exemplos de choque de oferta negativo são: 1) Desvalorização real da taxa de câmbio; 2) Aumento no preço internacional de um produto importado em grande quantidade; 3) Desmantelamento de investimentos equivocados.
Basicamente, um choque de oferta negativo força o Banco Central a escolher no curto prazo entre mais inflação ou mais desemprego. O maior exemplo deste tipo de evento foi o choque do petróleo, que elevou simultaneamente a inflação e a taxa de desemprego na grande maioria dos países importadores de petróleo na década de 70.
A gente pode entender o que seria reagir a um choque de oferta sem aumentar o desemprego tornando h=h’=0 na equação 8:
0 = (\pi_t - \pi_{t}^{e}) + u_t
u_t = \pi_{t}^{e} - \pi_t
Se o governo conseguir criar uma inflação suficientemente maior do que as expectativas, ele tecnicamente poderia achatar os salários reais num choque de oferta negativo para não aumentar o desemprego, mas é aí que está o paradoxo: os agentes são racionais. Se eles sabem que o governo está sempre disposto a aumentar a inflação para evitar o desemprego, as próprias expectativas de inflação se elevam durante o choque de oferta — períodos onde o BC tem que decidir entre inflação e desemprego — frustrando os planos do governo.
Paradoxalmente, no longo prazo, uma política monetária anunciada de pleno emprego tende a ser pouco efetiva em elevar o nível de emprego, e muito “efetiva” em apenas aumentar a taxa de inflação, dado seu efeito adverso sobre as expectativas de inflação. Por outro lado, um Banco Central cuja credibilidade em relação ao cumprimento da inflação não seja questionada, isto é, um BC que torne a inflação esperada o mais estável possível, tem muito mais margem para acomodar um choque negativo em situações excepcionais, caso queira.
A política de acomodação foi tentada nos anos 70, e o resultado foi um fenômeno conhecido como estagflação: ao evitar aumentar o desemprego combatendo a inflação advinda do choque negativo, a maioria dos países desenvolvidos terminou a década de 70 com inflação e desemprego altos, o pior dos cenários. Este foi o grande estalo que conduziu à mudança de paradigma na macroeconomia nos anos 80, à consolidação da literatura sobre expectativas racionais, e ao surgimento da literatura atual sobre meta de inflação na década de 90. Hoje nós sabemos, com algum conjunto razoável de evidências, que a melhor maneira conhecida de manter a inflação e o desemprego baixos no longo prazo é tendo uma meta de inflação, um Banco Central independente, etc.
Bônus: Matéria do NY Times sobre como o regime de metas tem se tornado dominando no mundo.
Referências
SIMONSEN, Mario Henrique & CYSNE, Rubens Penha, Macroeconomia, 2009.
KYDLAND, Finn E. & PRESCOTT, Edward C., Rules Rather than Discretion: The Inconsistency of Optimal Plans, 1977.
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