Inflação de oferta: será que aumentar a meta ajuda?

O post desta ocasião revisita a conjuntura da inflação brasileira. Afinal, a inflação atual é fruto de um problema de demanda ou de oferta? Aumentar a meta para compatibilizar choques de oferta permitiria um aperto menor nos juros?

Apesar do que se têm vinculado no debate público a respeito, passarei boa parte do post explicando porque essas perguntas não fazem tanto sentido quanto parece, sendo este debate em muitas maneiras fruto de um mau entendimento sobre a determinação da inflação e, portanto, do funcionamento da política monetária.

Para dar motivação às duas perguntas, é preciso dar alguns passos para trás e nivelarmos a importância da questão colocada.

Nos últimos dois anos o Brasil passou pelo seu maior nível de inflação desde 2015, com um pico somente superado pelo da maxidesvalorização cambial da crise de credibilidade financeira em 2002, mais de vinte anos atrás. Tal aceleração da inflação nos últimos dois anos tornou-se ainda mais preocupante por ter acompanhado um descolamento nas expectativas de inflação, hoje estando entre 1.5-2 p.p acima da meta estabelecida para o Banco Central no horizonte de política monetária.

Dados: BCB / IBGE / Haver Analytics.

Diante desse contexto, o Banco Central se viu forçado a subir e manter a taxa Selic no patamar de 13.75% ao ano, maior nível desde 2015 (percebam a coincidência), na intenção de corrigir a trajetória de descolamento das expectativas e devolver uma inflação mais próxima da meta.

Tal política monetária acompanhou críticas do novo governo, sob o fundamento de que uma inflação de oferta não poderia ser combatida com juros mais altos. Os críticos, no entanto, não deixam exatamente claro como tal tipo de inflação deve ser endereçada (fazer nada parece ser a recomendação). Com base nisso, defensores de uma política monetária menos contracionista também argumentam que um aumento na meta de inflação tornaria o Banco Central e os agentes de mercado mais tolerantes a tais choques de oferta.

Entende-se portanto que o que está em jogo é a condução da política monetária. Estaria o Banco Central contratando uma recessão desnecessária para combater uma inflação que ele tem pouco controle sobre? Vamos olhar o que a economia de livro-texto tem a nos dizer sobre.

O modelo

Pela teoria econômica, a inflação é determinada por uma equação conhecida como Curva de Phillips. A Curva de Phillips moderna é derivada de um processo de otimização de lucro das firmas, que competem em preço e determinam suas margens de lucro a partir de seus custos de produção.

Uma formulação simplificada e útil da Curva de Phillips moderna é:

em que a variável “\pi” é a inflação, “E[\pi]” é a expectativa da inflação, “x” é o descasamento entre demanda e oferta (também conhecido como “hiato do produto”), “\varepsilon” é um erro de medida e/ou choque idiossincrático não-antecipável nos preços. O parâmetro “\beta” denota a proporção de firmas em uma economia que determinam seu preço olhando para inflação passada, “1 - \beta”, portanto, é a proporção daquelas que adotam uma projeção da inflação e ajustam seus preços hoje com base nessa expectativa. Finalmente, o parâmetro “\kappa” denota o efeito médio que um descasamento de 1% entre demanda sobre a oferta geraria de inflação nesta economia.

Para prosseguirmos, é preciso certa clareza sobre como as expectativas de inflação são formadas. Uma maneira interessante de entender as expectativas é a de que elas sao endógenas à inflação observada e dependentes de um objetivo crível da inflação. Em uma equação, temos:

em que “\bar{\pi}” é uma meta crível de inflação, ou seja, não necessariamente aquela sob a qual o Banco Central estaria submetido. “\alpha”, assim como “\beta”, é limitado ao intervalo fechado [0,1] e denota a confiança dos agentes na capacidade do Banco Central de fazer a inflação convergir para a meta.

Podemos simplificar nossa Curva de Phillips incluindo a segunda equação dentro da primeira, ficando com a seguinte expressão:

Adiante, vamos definir “\beta + \alpha - \alpha\beta = \omega” para facilitar a notação. De maneira analítica, podemos iterar esse processo estocástico recursivo e obter o seguinte resultado:

A equação final mostra que a expectativa de inflação pela Curva de Phillips “n” períodos a frente depende de somatórios de valores esperados descontados por “\omega”. Para um “n” tendendo ao infinito, podemos aplicar a propriedade da soma infinita de uma progressão geométrica de razão “\omega”.

Como “\alpha” e “\beta” se encontram entre zero e um, logo “\omega < 1”. Também espera-se que o erro de medida idiossincrático “\varepsilon” seja zero no infinito e a meta de inflação constante por definição. Logo, temos:

A expectativa de inflação é ancorada na sua meta provendo-se que a política econômica seja capaz de manter a economia dentro do pleno emprego, sem nenhum descasamento entre oferta e demanda. Em outras palavras, forçando “\sum{x} = 0”, o que faz “E[\pi] = \bar{\pi}”.

Resultados

O que se quer dizer com isso? Que o trabalho da política econômica, tanto da política monetária quanto da política fiscal (mas principalmente da primeira), é garantir que os agentes acreditem que a economia voltará ao pleno emprego, igualando a demanda aos fundamentos de oferta. Se por razões quaisquer os fundamentos de oferta forem prejudicados e se reduzirem, seguirá sendo papel do Banco Central convencer os agentes econômicos de que perseguirá o fechamento do hiato do produto de maneira que a demanda acompanhe essas piores condições de oferta. Caso isso não ocorra, o Banco Central não cumprirá com o seu objetivo, independentemente de qual for a sua meta de inflação.

Logo, não faz sentido culpar a oferta pela inflação e argumentar que o Banco Central deveria ignorar choques que não são de demanda. Sustentados, tais choques negativos de oferta poluem as expectativas de inflação dos agentes, impedindo-os de crer que o governo tem interesse em perseguir o pleno emprego. De acordo o Relatório Focus mais recente, as expectativas de inflação já estão em 4% para o fim deste mandato (1 p.p acima do centro da meta de longo prazo acordada hoje).

Focus de 06/04/2023.

O modelo também mostra que mudanças na meta de inflação do Banco Central não serviriam para permitir maior espaço para cortes nos juros, uma vez que esse aumento na meta seria acompanhado de um aumento de igual magnitude na expectativa de inflação de longo prazo, o que impediria (se já não impede) uma normalização mais rápida da política monetária para um patamar menos contracionista.

Considerações finais — há controvérsia entre teoria e dados

Pedir por meta de inflação mais alta para que se ignore choques de oferta na determinação das taxas de juros é, de um todo geral, um equívoco teórico dado o modelo canônico. Entretanto, eu não acho justo culpar ou acusar aqueles que defendem menos juros de descaso técnico.

Quando olhamos estimativas públicas ou facilmente construídas a partir de filtros de hiatos do produto para o Brasil, vemos que a questão é complexa:

Dados: BCB / IFI / Eu.

Na média das estimativas, e especialmente na estimativa do Banco Central, o hiato do produto brasileiro esteve negativo na maior parte dos últimos dois anos, falhando em explicar a aceleração da inflação observada nesse período (principalmente em termos de magnitude). Como é possível uma inflação tão elevada se as principais medidas de hiato do produto, aquele que deveria ser o principal driver de desvio da inflação da sua meta, apontam para a direção diametralmente oposta?

Seria impossível prever o choque inflacionário de 2021 e 2022 com tais dados, afinal, eles mostram uma demanda mais baixa do que a oferta na maior parte do tempo, não o contrário.

Minha explicação para este problema de macro aplicada é de que as medidas de produto potencial e hiato do produto brasileiro poderiam se beneficiar de nova metodologia, uma que pretendo apresentar no próximo post do meu blog. Por hoje fico por aqui, bons estudos a todos.

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Publicado originalmente aqui.

Leia também:
Arcabouço fiscal e inflação, grandes aliados
O Modelo CP-IS-MP (Curva de Phillips, IS, Optimal Monetary Policy) – Parte 1
O modelo Novo Keynesiano básico
A Nova Economia Institucional e a Cliometria

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