Muita atenção foi direcionada pela mídia e pelo debate público às manifestações chilenas iniciadas em outubro de 2019 devido à inflamação dos ânimos políticos no país e no mundo. A revolta chilena acompanhou uma série de revoltas em outros países, tais como França, Hong Kong, Equador e Bolívia. Todas essas revoltas têm acalorado ainda mais o debate político a nível internacional, pois cada uma delas carrega, inevitavelmente, um peso simbólico muito forte para ambos os lados do espectro político. As revoltas de Hong Kong, por exemplo, são bastante simbólicas para a direita liberal/libertária, pois são uma ilustração da revolta dos indivíduos contra a opressão de um estado socialista totalitário (no caso, a China), mostrando a tendência natural do caminho da servidão das comunidades políticas socialistas.
As revoltas no Chile, por outro lado, foram de um simbolismo muito forte para a esquerda política. Os chilenos, enfim, se revoltaram contra a opressão do “neoliberalismo”, das política reformistas implantadas no Chile desde a ditadura de Augusto Pinochet. Era a revolta dos miserables contra a pobreza e a opressão que era escondida no Chile pelo véu liberal.
Não estranhamente, o establishment da direita internacional logo se mobilizou para a defesa de sua amada vitrine de reformas. Economistas — como o espanhol Juan Ramón Rallo — logo fizeram postagens em suas redes sociais mostrando que a realidade no Chile era diferente do que alardeado pela esquerda, mostrando, por exemplo, que a desigualdade não se traduz em pobreza. Alguns mais radicais, como o jornalista cubano Carlos Alberto Montaner, fizeram alegações de que as revoltas no Chile eram uma armação da esquerda socialista para fazer o Chile retroceder em seu esplêndido crescimento econômico. Outros, como a ativista política Gloria Álvarez, disseram que a culpa era de uma direita conservadora covarde que não colocou para frente uma agenda mais radical de liberalização.
No Brasil, a reação dos liberais não foi diferente. Comentarista, como o colunista Helio Beltrão, logo alertaram para os riscos do Chile cair na clássica espiral populista latino-americana caso as demandas dos protestantes fossem atendidas. Outros, como os comentaristas Luan Sperandio, Rodrigo da Silva, Pedro Menezes e o pessoal do Neoiluminismo (André Valeriano, Raffz Vieira e Israel Russo), foram mais técnicos ao elencar dados que mostravam que, ao contrário do que é dito pela esquerda, o Chile era um país próspero por causa das reformas liberais dos anos 80–90.
Olhando-se os dados, de fato, é possível visualizar que os liberais têm razão em seu ponto. O Chile tem sido um grande sucesso em termos de desenvolvimento econômico nas últimas décadas, sendo o único país latino-americano considerado como desenvolvido. Em geral, o país apresenta alguns dos melhores indicadores macroeconômicos da região (como crescimento sustentado e inflação baixa) e tem apresentado, como já enfatizado, o melhor e mais sustentado crescimento do PIB per capita na América Latina.
Todavia, essas respostas dadas pelos comentadores liberais não respondem a pergunta implícita criada pelas revoltas: elas não explicam a causa dos chilenos estarem se revoltando. São respostas meramente evasivas para os ataques da esquerda que dizem que o modelo reformista chileno é um grande fracasso. A mera existência de um protesto não diz nada sobre o conteúdo de suas causas, pois afinal elas podem ser múltiplas, porém mostra que existem causas para o fenômeno e que muitas vezes elas são de natureza econômica, como no caso do Chile.
Um toque mais cético e menos otimista é necessário para avaliar a situação. Uma boa avaliação da situação foi feita por André Valeriano quando esse afirmou que talvez seja cedo demais para se falar das causas dos protestos no Chile. Concordo que talvez seja cedo para considerar causas de difícil avaliação, como causas culturais e comportamentais, porém devo dizer que é completamente possível traçar um quadro geral pré-protesto para avaliar o quadro de certas determinantes mais objetivas, como as causas econômicas. Mantendo o padrão cético do qual falei, creio que seja bom avaliar mais profundamente alguns pontos econômicos das revoltas no Chile e dos argumentos dos liberais para justificar o fenômeno.
Primeiramente, o argumento de que o Chile possui alto crescimento do PIB em comparação com o Brasil, como feito pela maioria dos comentadores, é um argumento extremamente fraco. O indicador do crescimento econômico per si diz respeito apenas à variação do crescimento de renda de um ano para outro, não abrangendo pontos mais críticos como a distribuição desse aumento de renda entre a população e nem quanto cada indivíduo em média ganha com esse crescimento. Um indicador melhor e que apresenta um resultado igualmente positivo é o crescimento do PIB per capita, que foi bem apontado por Luan Sperandio, Rodrigo da Silva e Pedro Menezes.
Todavia, apontar os indicadores de crescimento do ponto de vista histórico para o Chile tem alguns problemas. Analisando a partir desse ponto de vista, o Chile já possuía uma renda média acima de 20.000 dólares antes do governo de Salvador Allende. Porém, assim como seus irmãos Uruguai e Argentina, sofreu uma forte decadência e estagnação a partir do anos 30 e 40 do século XX. Nesse sentido, as melhoras observadas a partir das reformas do governo de Pinochet apenas reverteram a tendência de decadência observada anteriormente, mas não fizeram o país convergir a seu patamar anterior mais próximo dos países considerados ricos.
Como colocado por Pseudoeramus, o chamado “milagre econômico chileno” nunca existiu, é só uma sobrevalorização de uma reversão de declínio.
“Não existe nenhum Milagre Chileno. O Chile cresceu em termos absolutos, é claro, e, caso um regime como o de Allende tivesse perdurado, o Chile provavelmente seria muito mais pobre hoje. Mas o Chile de hoje não está nem um pouco próximo de convergir com os países ricos da forma como estava nos anos 30. O melhor que você pode dizer para o Chile é que ele reverteu seu declínio relativo um pouco mais do que a Argentina e o Uruguai.”
Um ponto bizarro que também deve ser analisado, como bem colocado por Pseudoerasmus, é que o Chile até 2015 apresentava indicadores de produtividade piores do que os da Argentina, como o PIB per capita por hora trabalhada e produtividade total dos fatores, mesmo com aquele tendo realizado reformas econômicas de incremento de produtividade que essa não fez.
Outro ponto que tem sido levantado contra os argumentos da esquerda política por comentadores como Raffz Vieira é que, ao contrário do que é dito até mesmo pela mídia, a desigualdade no Chile vem caindo nos últimos anos. Isso é um fato, como se comprova olhando os dados sobre o Índice de Gini do país.
Segundo o mesmo argumento, isso é uma prova do sucesso econômico do modelo chileno frente a outros modelos aplicados na América Latina, como o desenvolvimentismo brasileiro, e mostra o sucesso das reformas liberais em trazer igualdade no longo prazo. Todavia, esse argumento é falho.
Primeiramente, ele não avalia o progresso histórico do Gini no Chile e nem os fatores que levaram a essa queda na desigualdade. Segundo, o Chile, por ser agora considerado um país de renda alta, não pode ser comparado com países como o Brasil e vice-versa (por essa razão, nos relatórios de recomendação de políticas públicas do Banco Mundial jamais vemos comparações de indicadores do Brasil com o Chile). E terceiro, a análise pura do Gini ignora alguns pontos importantes dentro do problema da desigualdade chilena.
Grande parte da queda no Gini chileno nos últimos anos, como colocado por Parro e Reyes (2017), foram consequência das reformas educacionais das décadas de 80 e 90. Essas reformas foram, respectivamente, a abertura feita pela Junta Militar de Pinochet do mercado de educação e a criação do Conselho de Educação durante a redemocratização. A liberalização do mercado de educação teve o principal efeito de melhorar a qualidade do ensino no Chile no período entre 1990 e 2000 e reduzir as barreiras de entrada para novos competidores no mercado (reduzindo preços). Como colocado pelos autores:
“A liberalização da educação terciária em 1980 é razoavelmente o maior choque de oferta na educação observado nas últimas três décadas no Chile. Como resultado da reforma de 1980, tanto a estrutura institucional como a de financiamento da educação universitária chilena sofreram sérias mudanças. Novos estabelecimentos começaram a aparecer. Mais de 300 instituições, praticamente todas privadas, foram criadas entre 1980 e 1990, mudando drasticamente o setor de educação chileno.”
A redução da desigualdade através da educação será observada à medida que a demanda por trabalho qualificado aumentar conforme o país segue seu crescimento econômico. Inicialmente, as reformas educacionais não têm um efeito observável na desigualdade, uma vez que a entrada da nova mão-de-obra qualificada não será prontamente absorvida pela demanda por trabalho qualificado. Mas, como concluem Parro e Reyes (2017):
“A gradual entrada de novos estudantes graduados no mercado de trabalho, ao mesmo tempo da aposentadoria da mão-de-obra velha e pouco educada, irá aumentar a oferta de mão-de-obra qualificada. Quando a oferta cresce mais rápido do que a demanda, a desigualdade começa a cair. No caso do Chile, o processo de acumulação de capital humano foi em grande parte impulsionado pelas reformas educacionais dos anos 80 e pela melhora na qualidade da educação universitária nos anos 90.”
Todavia, como observado pelos autores, os retornos dos investimentos educacionais caíram bastante após o ano 2000, conforme medido pelo Índice de Mincer. Ocorreu um grande descolamento da demanda por trabalho qualificado nos últimos anos com a oferta de mão-de-obra qualificada, reduzindo os retornos sobre os investimentos em capital humano por competição entre trabalhadores de níveis educacionais semelhantes (como pode ser visto abaixo, o retorno do investimento em educação passou a ser negativo). Fora que a falta de universalidade do sistema de ensino superior aumentou o prêmio daqueles que têm o privilégios de ter acesso a ele, aumentando a pressão da desigualdade sobre os salários dos graduados.
É por causa dessa diferença de retornos que podemos ver que o Gini chileno tem uma forte queda de 1994 até 2006, porém depois apresenta uma redução da taxa de queda a partir de 2006. Também, por causa disso, podemos ver que o peso da renda do trabalho aumentou na desigualdade, e isso está refletido também na comparação do peso dos salários versus horas trabalhadas na desigualdade.
É por essas razões que os autores recomendam que a única forma de fazer com que a queda na desigualdade no Chile tenha taxas constantes de queda é por meio de uma reforma educacional que direcione a oferta de mão-de-obra para campos com maior demanda por trabalho qualificado. Essa também foi uma recomendação de política pública feita pela OCDE em seu relatório “Going to Growth” de 2017. Segundo o relatório, o acesso limitado à educação está diminuindo o produto, limitando a produtividade e aumentando a desigualdade de renda. A nota do PISA do Chile ainda está bem abaixo da média dos outros países da OCDE e da média americana e a complexidade regulatória para o setor educacional ainda é maior do que a da OCDE, quase igualmente ruim a de outros países latino-americanos.
As recomendações da OCDE são justamente no sentido de uma reforma educacional: introduzir incentivos para promover uma formação voltada para setores de alta tecnologia, como engenharia e ciências básicas; fortalecer a educação vocacional para a construção de um currículo mais consistente com o novo mercado de trabalho e focar na educação técnica. Talvez esses problemas educacionais sejam uma boa explicação do porquê grande parte dos manifestantes terem sido estudantes universitários.
Outro ponto que deve ser levantado é que, por mais que o Gini do Chile tenha caído nos últimos anos, a desigualdade de renda chilena ainda é a maior dentre os países ricos da OCDE. Além disso, a desigualdade no Chile apresenta alguns fatores absurdos que não podem ser vistos pela análise pura do Gini. Por exemplo, o Chile apresenta uma alta concentração do PIB nas mãos de seus bilionários; ou seja, da riqueza produzida anualmente no país, boa parte termina concentradas nas mãos de algumas poucas pessoas.
Além disso, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres no Chile é completamente absurda. Como coloca o especialista em desigualdade Branko Milanovic:
“Enquanto o Chile lidera a América Latina em termos de PIB per capita, ele também lidera em termos de desigualdade. Em 2015, seu nível de desigualdade de renda era maior do que de qualquer outro país latino-americano com exceção de Honduras e Colômbia. Ela superou até a proverbial alta desigualdade brasileira. Os 5% mais pobres do Chile têm um nível de renda semelhante aos 5% mais pobre da Mongólia. Os 2% mais ricos do Chile tem um nível de renda semelhante aos 2% mais ricos da Alemanha. Dortmund e as favelas de Ulan Bataar coexistem em um mesmo país”.
É razoável pensar que um peso cada vez maior dos salários sobre a desigualdade e um abismo social tão grande criem pressões sociais que desaguem no caos das revoltas.
Prosseguindo nossa análise, é também um argumento bastante comum o de que o Chile é um país livre, e que essas pressões sociais são meramente momentâneas e que podem ser resolvidas por maiores doses de liberdade. A liberdade econômica, continuam, é indicador último e causa do desenvolvimento econômico. Mas a realidade é mais complexa. De fato, o Chile é a estrela nos índices de liberdade da América Latina.
Também podemos perceber que o Chile tem mantido sua posição relativamente constante nos últimos anos, como o gráfico abaixo demonstra.
Contudo, apresentar um alto índice de liberdade humana realmente significa que os cidadãos desse país estão bem ou se sentem livres? A realidade é mais complexa. Uma forma de medir isso é usando o Índice de Felicidade Global, calculado pelo Instituto Gallup. E, se fizermos isso, vemos um abismo entre os índices de liberdade e a sensação de liberdade entre os países. Como colocou Jeffrey Sachs:
“Conquanto esses países (Hong Kong, Chile e França) sejam ricos e relativamente competitivos segundo padrões convencionais, suas populações estão desapontadas com diversos elementos de suas vidas. De acordo com o Relatório de Felicidade Mundial de 2019, os cidadãos da França, Chile e Hong Kong sentem que suas vidas estão ruins em diversos pontos. Todo ano, o Gallup Poll pergunta às pessoas em todo mundo se elas estão satisfeitas ou desapontadas com a liberdade de escolha delas sobre o que fazer de suas vidas. Enquanto Hong Kong está em nono lugar em termos de PIB per capita, ele está bem abaixo no índice de felicidade e percepção de liberdade de escolha, na posição 66. A mesma discrepância é observada na França (25 em PIB per capita e 69 em liberdade de escolha) e no Chile (48 em PIB per capita e 98 em liberdade de escolha)”.
Uma baixa liberdade de escolha significa, em geral, uma baixa mobilidade social. As pessoas têm menos possibilidades de mudar de vida e ascender socialmente. Se olharmos o Índice Global de Felicidade veremos que o Chile, por exemplo, apresenta, no último relatório, uma grande parcela de seu índice sendo composto pelo item “distopia” e muito pouco pelo item liberdade de escolha. O item distopia é medido com relação a um país hipotético ideal; ou seja, é um contrafactual para os outros itens. Quanto mais distopia apresenta um país, mais sua felicidade é baseada apenas no fato de que sua situação é melhor do que outra opção hipotética. Ou seja, sua situação real não está muito agradável.
Um dos maiores erros da avaliação dos liberais é desconsiderar esse fator de percepção. A percepção da população com relação a sua liberdade, mobilidade social e desigualdade, é o que fundamenta boa parte das ações políticas — e não indicadores absolutos. Esse foi um ponto muito bom feito por André Valeriano e pela página Liberais Antilibertários. Os eleitores têm racionalidade limitada, e caso sua percepção relativa de desigualdade ou baixa mobilidade seja alta eles se engajarão em ações políticas que alimentem comportamentos de rent-seeking por parte dos políticos. Como consequência, serão adotadas medidas populistas para atender as demandas irracionais dos manifestantes, pois os políticos querem se preservar contra a impopularidade (o Chile em grande parte prova isso).
Deixar a desigualdade de lado e ignorar o poder das percepções e sentimentos é um erro muito comum aos liberais e que, provavelmente, colocará sua vitrine de reformas em péssimos lençóis.
Fontes
— Human Freedom Index, Cato Institute, 2018;
— RODRÍGUEZ WEBER, Javier. Desarrollo y desigualdad en Chile (1850–2009): historia de su economía política. LOM Ediciones, 2017;
— PARRO, Francisco; REYES, Loreto. The Rise and Fall of Income Inequality in Chile. Latin American Economic Review, v. 26, n. 1, p. 3, 2017.
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Publicado originalmente aqui.
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