Se você se preocupa com a desigualdade, deveria se preocupar com o nosso funcionalismo

A animosidade que permeia o debate sobre políticas públicas no Brasil já é muito bem conhecida por quem acompanha o cenário político, principalmente quando levamos em consideração períodos em que governos de caráter reformista, como foram os de FHC e Temer, se situaram. Enquanto durante o governo do primeiro presenciamos discussões acaloradas em torno de reformas como privatizações e a implementação do tripé macroeconômico, no governo do segundo o centro destas discussões eram reformas como o Teto de Gastos e a reforma trabalhista.

Em todos estes casos, o que se verificava era que discussões de natureza mais ideológica facilmente assumiam o protagonismo do debate público, enquanto que, em muito menor escala, discussões de ordem pragmática ocorriam de forma tímida e sem chamar a atenção do grande público. De fato, discussões alicerçadas em evidências são bem menos atrativas do que discussões que nos permitem evitar o sentimento de mal-estar de quando nós, contra a nossa vontade, temos que alterar nossa particular visão de mundo frente aos novos fatos que eventualmente nos são apresentados.

Não muito diferentemente ocorre o debate em torno de uma das pautas reformistas mais relevantes: a reforma administrativa, que é crucial para a sustentabilidade fiscal, necessária para a maior eficiência do setor público e, ao mesmo tempo, extremamente complexa do ponto de vista político, dado o alto grau de coesão dos grupos de pressão potencialmente afetados.

Na internet, um dos principais argumentos de quem defende a preservação do regime administrativo atual geralmente vem acompanhado da informação contida no gráfico abaixo [1]. O que ele expressa é que, quando comparamos o percentual de funcionários públicos em relação à força de trabalho total, o Brasil se situa – significativamente – abaixo da média dos países integrantes da OCDE, com seus apenas 12% frente à média de 21% dos países pertencentes ao órgão.

A alegação é simples: como o Brasil possui relativamente poucos funcionários públicos, não há a necessidade de se reformar o sistema.

Diferentemente de outros casos enfadonhos no debate público, isto não se trata de uma informação falsa acerca do assunto em questão e apenas está exposta em forma de infográfico para sinalizar maior credibilidade. De fato, quando consultamos os dados originais fornecidos pela Organização Internacional do Trabalho, a informação procede. Até mesmo para anos mais recentes a comparação se mantém válida, dadas as pequenas variações do ano de 2015 para cá (entre aqui para conferir). O Brasil permanece com uma relação de 12%, enquanto outros países como Suécia (29,25%), Reino Unido (21,38%) e Chile (12,41%) também se desviam pouco do que foi constatado em 2015.

No entanto, o erro ocorre quando se utiliza unicamente esta informação para se admitir a necessidade ou não de uma reforma administrativa ampla. Ironicamente, quando o panorama completo do funcionalismo público brasileiro é levado em questão, esta informação se torna a principal motivação para justificar uma reforma do funcionalismo: ao mesmo tempo que o Brasil possui relativamente poucos funcionários públicos, somos um dos países do mundo que mais gasta com o funcionalismo, dado o nosso nível de renda per capita.

Este problema se torna nítido quando experimentamos confrontar dois dados: (i) o PIB per capita dos países [2] e (ii) a massa salarial do funcionalismo como percentual do PIB dos países.

Segundo este relatório do Banco Mundial, em relação ao dado (ii), enquanto países semelhantes a nós como México, Peru e Chile possuem percentuais de 6%, 6,25% e 6,85% (respectivamente), o Brasil exibe discrepantes 13,65%. Como se não bastasse estarmos desalinhados com nossos pares, também gastamos mais em termos relativos que alguns países desenvolvidos – como Reino Unido (8,87%) -, e, surpreendentemente, conseguimos gastar mais até mesmo do que alguns dos tão ambicionados países do chamado bem-estar social, como Finlândia (12,2%) e Suécia (12,8%) (veja os dados aqui).

Por si só, o indicador relacionado à massa salarial do funcionalismo brasileiro já é alarmante. Entretanto, o conjunto de informações que vimos até este instante revelam uma grave consequência indireta da estrutura atual do funcionalismo público.

Considerando que a remuneração do funcionalismo pode ser interpretada como um mecanismo de transferência de renda a partir do Estado, um volume tão alto da massa salarial ser direcionado apenas para uma pequena parcela da nossa força de trabalho sugere que não apenas o Estado está sendo ineficiente, mas também está sendo um perpetuador de desigualdade social.

Com efeito, isso não é apenas uma suposição lógica, como também é algo respaldado pelas evidências. Em “The Decline in Inequality in Brazil, 2003-2009: The Role of the State“, Souza e Medeiros foram responsáveis por uma minuciosa análise sobre as contribuições do Estado para a trajetória da queda que o índice de Gini [3] vinha exibindo no período no país.

A partir de dados da Pesquisa de Orçamento Familiar, o estudo consiste numa decomposição do índice de Gini entre seis principais fontes de renda: funcionalismo público, previdência social, assistência social, seguro-desemprego, tributação direta e setor privado. Como cada uma destas seis fontes podem distribuir renda de forma mais ou menos uniforme, cada uma possui uma contribuição relativa para definir o índice de Gini agregado da nossa economia. Com isso, é possível saber quais fatores afetam de forma mais negativa (concentrando renda) ou mais positiva (dispersando renda) entre as diferentes camadas da sociedade.

Os resultados estão sintetizados na tabela a seguir, onde constam, na primeira coluna, as fontes de renda e, na segunda, a contribuição relativa de cada fator para a queda do índice de Gini no período.

Nesta tabela, valores negativos significam uma contribuição negativa para a redução da desigualdade e valores positivos significam uma contribuição positiva para a redução da desigualdade.

O impacto que o funcionalismo público teve no movimento de nossa distribuição de renda chega a ser notório, visto que, dentre todas as formas de transferência de renda que o Estado se dispõe e que estão presentes no estudo, a única que agiu como uma força contrária à redução da nossa desigualdade social foi a renda do funcionalismo, demonstrando um valor de -10%.

O que isso basicamente significa é que, se não fosse a regressividade dos salários do setor público, a redução da concentração de renda brasileira no período teria sido 10% maior. Ou, posto de outra forma, é como se todo o nosso esforço colocado na forma de transferência de renda a partir do Bolsa Família (12%) tivesse sido praticamente neutralizado por conta da regressividade da renda do funcionalismo público.

No estudo, o principal responsável por esta regressividade é o diferencial de salários entre o funcionalismo e a iniciativa privada para cargos e funções equivalentes – muitas vezes chamado de “prêmio salarial”. Na realidade, até mesmo na comparação internacional é comum encontrar salários maiores no sistema público, porém, ao contrário do que é visto na maioria dos países da OCDE, o Brasil se destaca por ser um dos únicos países em que um aumento generalizado no emprego público não leva a um menor nível de desigualdade, mas sim a um maior.

Contudo, o tamanho do famigerado prêmio salarial não é homogêneo entre os diversos cargos do setor público. Segundo o mesmo relatório do Banco Mundial mencionado anteriormente, os prêmios salariais são muito mais generosos em cargos da esfera federal e estadual, enquanto se estima que o prêmio à nível municipal nem exista. Além disso, a distinção por Poder Público também parece ser pertinente, já que nos últimos anos o Poder Judiciário tem sido um dos maiores responsáveis pela elevação da rubrica de gastos com pessoal na esfera federal.

Estes achados estão em linha com a literatura recente sobre o funcionalismo brasileiro [como Braite e Teles (2018) e Daré e Hoffmann (2012)] e compartilham também da perspectiva que, dentro do próprio setor público, existe significativo nível de desigualdade.

Embora fuja do escopo do estudo Souza e Medeiros (2013) abordar os fatores de longo prazo da desigualdade social brasileira, ainda assim é um valioso trabalho para se evidenciar um custo econômico latente à grande parte da sociedade: o quanto que um desenho disfuncional do funcionalismo público pode impactar negativamente na nossa distribuição de renda.

Aliás, não apenas pode, como também não há motivos para crer que a nossa situação neste aspecto tenha melhorado desde 2009. Pouco se avançou estruturalmente no sentido de se corrigir os problemas do nosso setor público desde então e, como consequência disso, presenciamos fenômenos muito curiosos, como o funcionalismo público ter sido a única categoria entre empregados do setor privado, empregadores e autônomos a possuir um aumento de renda real de 2014 a 2019 (intervalo que compreende uma das maiores recessões brasileiras da história).

Conclusão

É natural que o regime de trabalho do setor público possua pontuais distinções em relação ao da iniciativa privada, porém, como bem enfatiza Ana Carla Abrão – economista cujo trabalho tem colaborado para uma maior elucidação sobre a questão administrativa -, o contraste existente no caso brasileiro é tamanho que faz com que a economia funcione como um verdadeiro “mercado dual”, onde nosso funcionalismo público e nossa iniciativa privada fazem parte de realidades completamente diferentes.

Enquanto o primeiro se permite sacrificar tanto a produtividade como a frugalidade nas despesas com pessoal para poder manter benefícios (como progressões automáticas, férias de 60 dias e generosos salários de acesso), o segundo tem que produzir de forma a compensar os desequilíbrios gerados por este desenho institucional. Não obstante, como vimos até agora, soma-se isto ao fato de que se trata de um desenho claramente pró-desigualdade.

A desigualdade é, definitivamente, uma das questões que mais deveriam estar em pauta no Brasil. Somos um dos dez países mais desiguais do mundo, a desigualdade produz severas implicações de natureza democrática e, além de tudo, já há um consenso de que a desigualdade é um fator que retarda crescimento econômico, por conta do decorrente subinvestimento que existe em capital humano.

São por estes motivos que devemos fazer uma defesa por inteiro de uma economia mais igualitária. Com “por inteiro”, quero dizer que não basta condenar a desigualdade apenas quando ela se origina de vultosos subsídios ao setor privado ou da nossa baixa alíquota marginal de imposto de renda – duas bandeiras típicas daqueles que se dizem lutar contra a desigualdade, mas que a negligenciam quando ela surge de fontes que não lhes são convenientes. 

Quem se preocupa com desigualdade deve defender uma reforma no funcionalismo público.

Notas

[1] A título de exemplo, checar aqui. É necessário dizer que embora este seja um gráfico elaborado pelo prestigiado Terraço Econômico, a conclusão a que eles chegam é completamente contrária ao que o Sindsep propôs, com a sua conclusão sendo bastante semelhante à exposta nesta postagem que escrevo. A postagem original deles pode ser encontrada aqui.

[2] No caso, trata-se do log do PIB per capita. Uma das maiores utilidades de se trabalhar com a transformação em log ao invés do próprio PIB per capita é que, desta forma, corrige-se a grande assimetria existente entre os diversos PIB per capita do mundo, permitindo que consigamos acomodá-los em uma mesma escala sem nos preocuparmos com graves distorções nos eixos do gráfico.

[3] O índice de Gini é uma das métricas econômicas mais relevantes para se estimar a concentração de renda em determinada economia. Sua escala varia de 0 a 1 e, quanto mais próxima de 1, mais desigual a economia em questão é, enquanto que, quanto mais próxima de 0, mais igualitária a distribuição de renda nesta economia é.

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