Numa primeira impressão, o título desta postagem parece não fazer sentido em nenhum contexto que nossa curiosa mente tente adequá-lo – e, de fato, não faz. No entanto, a provocação se torna interessante pois, ironicamente, neste primeiro momento, até mesmo os mais fervorosos defensores da ideia que virá a ser examinada neste texto reconhecem o absurdo presente neste título.
O conceito por detrás desta polêmica afirmação se baseia num escrito do ano de 1845 – porém, infelizmente ainda muito atual no debate econômico brasileiro – pelo economista francês Frédéric Bastiat, chamado “Petition of the Candlemakers” (traduzido livremente como “A Petição dos Fabricantes de Vela” [1]), onde Bastiat critica, através de uma sátira bem humorada, a incessante demanda que o mercado doméstico possui de se proteger da “desleal concorrência” do setor externo.
Neste escrito, Bastiat encena uma petição direcionada ao congresso francês, endossada não apenas pelos fabricantes de vela, mas também pelos fabricantes de luminárias, lustres, produtores de sebo e, basicamente, toda e qualquer atividade ligada direta ou indiretamente à luz artificial.
Sua exigência se origina na ameaça de um “rival estrangeiro” que está colocando em risco a viabilidade de toda esta “indústria vital”, já que, diferentemente do setor doméstico, este rival se dispõe de estrutura e habilidades desproporcionalmente superiores que o permite produzir luz a custos muito mais baixos e ofertar seu produto de forma predatória em território nacional. Sua simples existência no mercado está a ameaçar milhares de empregos e empresas que já existem há anos no setor. Quem seria este rival? Ninguém mais e ninguém menos que o próprio sol.
A forma de proteção solicitada pelo setor nacional é categórica: bastaria criar um decreto que proibisse que qualquer janela, claraboia, veneziana, persiana ou cortina permanecesse aberta permitindo a passagem da luz solar para dentro do local em questão. O argumento final utilizado como justificativa é elegante e emblemático: se bens como carvão, ferro e queijo já dispõem de limitações quanto à sua importação, já que existe um diferencial de custo estrangeiro na elaboração de cada um desses bens, por que não impedir a importação integral de luz solar, já que o “setor externo” possui custo zero em sua fabricação?
Com isso, segundo a lógica dos participantes alegóricos da petição, mais luz artificial seria consumida, o que elevaria a demanda de itens como o sebo animal (amplamente utilizado como insumo na época); com a maior procura pelo sebo, os pecuaristas identificariam isto como uma necessidade de se ampliar a criação de gado; o gado, tornando-se mais abundante por conta desta finalidade, consequentemente faria com que bens como carne, lã e couro se tornassem também mais abundantes, reduzindo seus preços e beneficiando a sociedade como um todo – pelo menos hipoteticamente.
O centro da crítica de Bastiat está na proposta de que é muito simples fazer com que uma concepção de consequências catastróficas como esta soe totalmente razoável e racional do ponto de vista econômico. Basta travestir argumentos de ordem não-econômica que apelam para sentimentos humanos básicos – como o nacionalismo, a preferência por ganhos de curto prazo e pertencimento coletivo – com uma roupagem que pareça abordar todas as implicações econômicas existentes, mas que, na verdade, apenas flertam superficialmente com as implicações econômicas reais.
Mesmo que se argumente que o conceito de se produzir internamente um determinado bem seja responsável por um efeito cascata que beneficiaria a economia doméstica ao preservar empregos e estimular um fluxo de renda maior dentro do país, este é um conceito que só aparenta ser verdadeiro até a segunda página. A mesma lógica utilizada pelos grupos de pressão como os fabricantes de vela para justificar o seu pedido de proteção pode ser utilizada para o contrário para evidenciar um custo sutil que a sociedade incorreria ao adotar tal proteção: o custo de oportunidade.
O custo de oportunidade pode ser basicamente traduzido como o custo de não se ter optado pelo melhor uso alternativo dos recursos disponíveis. Ao se abrir mão da muito mais eficiente luz solar do “setor externo”, a sociedade opta por ter que deslocar significativo montante de capital – que poderia estar sendo empregado em investimentos que aumentam o produto agregado da economia, como em bens físicos, em especialização de mão de obra e em pesquisa e tecnologia – para a compra de estoques massivos de luminárias, velas e lustres. Consequentemente, estes novos custos teriam que ser repassados pelas firmas ao preço de seus produtos finais, neutralizando qualquer tipo de benefício em cascata que surgiria da proteção aos produtores de vela.
Basicamente, a proteção a um setor específico da economia “desprotege” os demais setores por conta da introdução de novos custos.
No entanto, este tipo de política protecionista é problemático pois também distorce a estrutura de incentivos dos agentes econômicos. A partir do momento em que é introduzida a proteção setorial, os agentes identificam significativas margens de lucro para a atividade de produção de objetos como velas e lamparinas, abrindo mão de empreendimentos alternativos – que o país possuiria maior vantagem comparativa na produção, de fato – para começar a fabricar de modo ineficiente luz artificial.
Percebam que o deslocamento do esforço produtivo não ocorreu por conta de uma mudança “real” na dinâmica da economia (como um movimento espontâneo de maior demanda da sociedade por velas e lamparinas), mas porque simplesmente burocratas acharam razoável proteger determinado setor e o tornaram mais rentável ao tornar menos acessível um produto barato ofertado externamente.
Essa distorção faz com que a economia deixe de operar num ótimo de Pareto – um ponto no qual os recursos produtivos (como capital e mão de obra) são alocados da forma mais eficiente possível e melhoram o bem-estar da sociedade como um todo -, reduzindo o produto agregado que a economia poderia gerar na ausência de proteção.
Por mais que a petição se trate apenas de uma sátira e obviamente existam exageros, é a essência da ideia defendida pelos fabricantes de vela que fomenta o discurso de que a proteção industrial é a solução para o subdesenvolvimento de países de renda média – um discurso ainda bastante presente no Brasil.
Frequentemente se ouve calorosas defesas a um maior amparo à indústria brasileira por parte do Estado, alegando que este pouco faz pela preservação daquela. Para salientar a necessidade da defesa, muitos recorrem ao argumento de que relevante parte de nossa indústria se encaixa no conceito de indústria nascente – o que chega a ser irônico, visto que, diante de tantos ciclos desenvolvimentistas em nossa história econômica, há setores com elevados graus de proteção há mais de 50 anos. Nossa indústria nascente é um jovem de 50 anos que ainda não se estruturou na vida.
No lugar da luz solar, quem são repelidos do Brasil são bens como os eletrônicos, eletrodomésticos e automóveis, cujo acesso ao mercado interno se torna obstruído por conta de tarifas efetivas de importação de ordem de 30%, 40% e – pasmem – 120%, respectivamente. São barreiras como esta que fazem com que nosso país acabe se tornando um outlier em termos de comércio internacional: para países de renda semelhante à nossa, espera-se que o volume agregado de importações e exportações seja de 55% a 75% do PIB; a nossa é de apenas 25% [2].
Quando analisamos em específico nosso montante de importações em relação ao PIB, é possível ver nitidamente como os nossos “fabricantes de vela” estão sendo bem sucedidos como grupo de pressão. Para dados de 2019, o Brasil possui um coeficiente de importação de apenas 14,4%. Em uma amostra de 160 países do Banco Mundial para aquele ano, o Brasil só perde para dois países: Cuba e Turcomenistão [3].
O Brasil é definitivamente um país peculiar: não apenas ele é responsável por fazer a realidade de grande parte dos países – uma maior integração comercial – soar surreal, como também é capaz de trazer o surrealismo e o absurdo da fábula de Bastiat cada vez mais próximo da realidade. Embora futuramente talvez nossa economia se situe em frangalhos, pelo menos seremos a maior referência mundial em fabricação de vela em pleno século XXI.
Referências
[1] Frédéric Bastiat. Petition of the Candlemakers (reprinted). Economic Sophisms, 1892.
[2] Brasil, Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos. Abertura Comercial para o Desenvolvimento Econômico. Relatório de Conjuntura Nº 3, 2018.
[3] Banco Mundial. https://data.worldbank.org/indicator/NE.IMP.GNFS.ZS
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