Planejamento financeiro – Um guia definitivo para não cair no papo furado da internet

Esse é o primeiro texto da série sobre finanças e análise de investimentos. Leia aqui a parte 2 e aqui a parte 3.

Inspirado pela enorme quantidade de conteúdo disponibilizado gratuitamente na internet (geralmente pela metade, aquela que interessa para vender algum produto de investimento posteriormente), resolvi escrever aqui sobre a teoria por trás do planejamento financeiro. Há alguns anos o tema se tornou moda e ganhou forte espaço com produtores de conteúdo online, que rendem o assunto eternamente (afinal, vivem disso) dando alguns peixes sem nunca ensinar o consumidor a pescar. Aqui, tentarei ensinar o leitor a pescar para seguir adiante com outros tópicos.

Esse texto conterá um material um pouco mais denso para o leitor sem tanta vivência com a matemática financeira, leitura de gráficos e alguma álgebra. Mesmo assim, pretendo apresentá-la da forma mais amigável e didática possível. Afinal, a ideia é poder usar esse texto como alternativa para não precisar revisitar o tema novamente. Trata-se de um guia especialmente importante para quem está começando no mercado de trabalho ou já possui um patrimônio acumulado sem saber como gerenciá-lo.

Por uma finalidade didática, o texto será subdividido em algumas etapas: (i) Por que fazer planejamento financeiro?; (ii) Entendendo sobre tempo, poupanca e retorno; (iii) Acumulando patrimônio; e (iv) Aposentadoria. Esse texto tratará apenas dos fundamentos principais sobre os respectivos temas, sem se alongar em assuntos de muita importância mas de complexidade considerável, como risco, análise de alocação de ativos e tipos de produtos financeiros. Sigamos.

Por que fazer planejamento financeiro?

Em uma resposta curta: porque todo mundo vai precisar. Todos nós vivemos condicionados pela idade, energia (disposição para trabalhar), experiência, condições do mercado de trabalho e da nossa produtividade. Quando pensamos em um adulto representativo da população em geral, podemos descrever seu ciclo de vida financeiro da seguinte forma:

A hipótese do ciclo de vida de Modigliani.

A hipótese do ciclo de vida é um esforço entre os economistas para compreender o comportamento do consumo e da poupança dos indivíduos ao longo de suas vidas.

O modelo desenvolvido por Franco Modigliani divide, por hipótese, que a vida financeira dos indivíduos possui três principais fases: a de endividamento, onde o consumo excede a renda, a de acumulação de patrimônio, onde o indivíduo atinge seu pico de produtividade e renda do trabalho para pagar esta dívida e acumular riqueza, e a de aposentadoria, onde ele finalmente consome tudo aquilo que acumulou ao longo da vida. Aqui o conceito de dívida pode ser flexibilizado, pois para o caso de muitas famílias as despesas de um jovem adulto são frequentemente bancadas pelos pais até a independência financeira, e não raramente os filhos subsequentemente acabam integralizando este valor ajudando os pais na aposentadoria também. Porém, a nível “familiar” a regra segue valendo, pois o patrimônio acumulado segue essa tendência e respeita o ciclo da renda do trabalho de cada um.

O planejamento financeiro, portanto, é necessário porque a dinâmica do consumo e da renda exige que o indivíduo pense de forma mais cuidadosa sobre seu planejamento durante o período de acumulação de patrimônio. Dessa forma ele garante uma transição suave para a sua aposentadoria, onde sua renda será exclusivamente função daquilo que ele foi capaz de acumular enquanto trabalhava. Todo mundo vai precisar planejar seu futuro financeiro neste momento da vida, mesmo com todas as incertezas associadas a isto.

Entendendo sobre tempo, poupança e retorno

Agora que já entendemos que planejamento é um exercício inevitável, vamos falar um pouco sobre tempo, poupança e retorno. Aqui é onde a maioria do conteúdo gratuito de internet pode te induzir à confusão, muito pelo fato de que esses produtores de conteúdo dedicados são famosos e se sustentam através da publicidade de corretoras e fundos de investimento que “douram a pílula” para fazer a coisa parecer mais simples do que realmente é. Muitos produtores de conteúdo no YouTube, por exemplo, vão te influenciar a entrar no mercado de ações sem falar sobre o problema do retorno incerto, e que decisões de retorno ruins são extremamente danosas para a acumulação de patrimônio. Vamos entender porque isso é um problema para você.

Eu não gosto muito de fazer analogias, mas vou apelar para uma aqui: vamos pensar no patrimônio como um bolo, onde a poupança é a massa/farinha desse bolo, enquanto o retorno é o fermento. A poupança é a base de tudo, pois sem ela o bolo não existe. Mas o retorno também é importante, pois sem o fermento você vai precisar de mais farinha para chegar em um tamanho de bolo adequado. Nesse caso, você também pode pensar que a qualidade do fermento também influencia no quanto de volume adicional que sua massa de bolo terá. O tempo também é chave, afinal é preciso deixar o fermento agir na massa, e se o fermento for muito bom, menor precisará ser o tempo para que a massa chegue naquele tamanho desejado. Alguns gráficos ajudam a tornar isso ainda mais claro.

Quanto maior o retorno, menor precisa ser o sacrifício do poupador.

Ainda na analogia do bolo, podemos pensar que quanto maior for a necessidade de se adicionar farinha para dar volume ao bolo, mais caro o bolo fica. Ninguém quer pagar caro para ter o mesmo bolo no fim da vida.

O mesmo vale para o tempo. É longe do ideal precisar esperar 2–3 dias para se ter o bolo do tamanho desejado. E um bom fermento é a principal maneira de se evitar um bolo lotado de farinha e/ou que passou 3 dias fermentando para ficar pronto.

Sintetizando a mensagem, o que temos é que nenhum dos ingredientes pode ser negligenciado. Todo patrimônio acumulado exige poupança, retorno e tempo para crescer – não por acaso temos uma enorme indústria de gestores de investimento profissionais no mercado financeiro tentando otimizar estes diversos fatores. Dessa forma, o gestor garante o crescimento do patrimônio do investidor que terceiriza a tarefa para quem dedica a vida a isto. O investidor cuida do tempo e da poupança do seu trabalho, enquanto o gestor de investimentos cuida dos retornos.

Tome cuidado se seu influenciador de internet favorito eventualmente te levar a crer o contrário do que foi dito neste segmento (como por exemplo que preço/retorno não importa, que o investidor pessoa física tem grandes grandes chances de sucesso, ou que basta poupar para escolher as tais ações das empresas vencedoras). Muitas vezes é mais fácil entender bem o básico do que consumir horas e horas e conteúdo online sem possuir a base crítica para filtrar a informação ruim.

Acumulando patrimônio

Entendendo bem as ideias por trás da combinação tempo-poupança-retorno como imprescindível na acumulação de patrimônio, fazê-lo se torna uma questão de disciplina. Esse texto não vai se alongar com aconselhamentos ou receitas para fechar as contas no verde no fim de cada mês. Se você entende de aritmética básica e sabe somar salários subtraídos das contas do mês, você chega lá com um pouco de controle e organização.

Para além disso, vou mostrar aqui alguns insights interessantes que dialogam com o que foi dito no segmento anterior do texto. Sabemos que o patrimônio no fim do período de acúmulo será a soma dos valores poupados depositados que cresceram em um investimento de dado retorno médio ao longo do tempo.

Diagrama da acumulação patrimonial.
Pra facilitar, assumi que os retornos são constantes, mas isso não é necessário.

Nesta equação, (T-t) é a diferença em meses/trimestres/anos entre o período da aposentadoria e a data do depósito efetuado naquele determinado rendimento. Quanto maior essa diferença, ou seja, quanto mais cedo alguém começa a poupar para chegar em um determinado patrimônio, mais tempo esse depósito vai passar rendendo aquele retorno, e portanto maior será o seu valor futuro. Por que isso é importante? Por causa disso:

Os primeiros depósitos, pelo fato de renderem por mais tempo, tendem a ser aqueles que se tornarão os mais representativos no tamanho do patrimônio final acumulado. Trata-se apenas de um fato da matemática financeira que levanta dois pontos importantes:

  1. Começar cedo reduz consideravelmente a necessidade de maior poupança futura, porque permite que os investimentos rendam maiores frutos por mais tempo. Isso é especialmente verdadeiro para investimentos em renda fixa (poupança, Tesouro Direto, debêntures, etc), por uma série de fatores, inclusive risco.
  2. Escolher mal estes primeiros investimentos afeta bastante o resultado final, de forma que se os primeiros depósitos forem alocados em investimentos de retorno ruim, o acumulador de patrimônio precisará correr atrás de maior retorno futuro para recuperar o tempo perdido ou se contentar com uma renda menor na aposentadoria. É claro que o investidor pode sempre realocar seu portfólio, mas pagando taxas, custos e perdendo oportunidades melhores. Por isso a renda fixa se aplica bem para este exemplo.

Para além da aritmética da acumulação de patrimônio, outro fator chave nesta fase do ciclo da vida financeira é o gerenciamento de risco. Claro, ele é importante em todos os momentos na hora de pensar em dinheiro e em investimentos, mas sua importância se torna maior quanto maior for o patrimônio acumulado. Isso acontece por duas razões, uma aritmética e outra conjuntural:

  1. Na medida em que patrimônios crescem exponencialmente, esperamos que com algum tempo de acumulação ele se torne bastante grande, afinal, foi construído com o propósito de acomodar todos os anos de consumo sem renda no futuro do indivíduo que poupou. Isso significa que os mesmos movimentos que podem gerar perdas em todo o mercado são especialmente danosos aos portfólios de maior volume. Uma perda de 1% em um portfólio de um jovem de 35 anos que acabou de começar a poupar é, em termos absolutos, uma perda muito menor do que a perda desse mesmo 1% para alguém que está prestes a se aposentar aos 65 anos de idade e com um portfólio 25–50x maior.
  2. Além disso, seguindo o exemplo do primeiro ponto, o jovem de 35 anos teria muito mais anos de trabalho na sua vida para esperar o seu portfólio se recuperar ou, também, para equalizar sua poupança com a renda do trabalho para recuperar o montante perdido, caso necessário.

Em virtude disso, a maior parte dos gestores de investimento profissionais, assim como os órgãos reguladores responsáveis, respeitam as modalidades de investimento das diferentes idades e recomendam uma alocação de patrimônio de pessoas mais velhas em investimento menos arriscados, naturalmente. Dentre essas modalidades, as estratégias mais comuns são aquelas que reduzem a proporção de investimentos em ações e aumentam a proporção em investimentos em renda fixa ao longo do idade do poupador.

Essas questões mais técnicas sobre alocação de ativos podem ser tratadas num texto à parte. Para este o que importa é a ideia de que o risco precisa ser gerenciado tomando diversos critérios em conta – a idade do poupador e o tamanho do portfólio são somente dois deles.

Aposentadoria

Falamos bastante sobre a acumulação de patrimônio, mas em nenhum momento da exposição acima tratamos de valores. Já sabemos como fazer para juntar o dinheiro, mas ninguém te disse ainda quanto é o suficiente. Existem duas perguntas básicas e alternativas cujas respostas definem um plano de aposentadoria que justifica o planejamento financeiro:

(i) Qual será a renda que terei no futuro se eu poupar determinado valor por determinado período de tempo?
(ii) Quanto preciso poupar para acumular o suficiente para viver com determinada renda?

Note que a primeira pergunta assume um valor de poupança no tempo para calcular o resultado da renda na aposentadoria. Já a segunda pergunta faz o caminho inverso, determina a renda e resolve para o valor necessário de poupança que vai garanti-la no futuro. Esse detalhe é importante, porque para resolver para uma das duas variáveis (poupança e renda na aposentaria) precisamos assumir a outra, caso contrário teríamos duas variáveis indeterminadas e apenas uma equação, o que é matematicamente insolúvel.

O plano financeiro requer do poupador decidir se vai definir quanto quer poupar ou quanto quer receber ao se aposentar.

O primeiro passo para decidir quanto devemos poupar então é esse: decidir se queremos um plano de poupança fixada ou receber um valor fixado quando pendurarmos a chuteira. Assumindo que estamos definindo o montante que pouparemos e que queremos resolver para o quanto de renda teremos no futuro, podemos pensar no capital acumulado como um simples empréstimo a ser amortizado, cuja fórmula é a seguinte:

Fórmula para a renda da aposentadoria em função do capital acumulado, do retorno e das N parcelas.

Se já temos definido o patrimônio, se escolhermos um investimento de rendimento fixo e escolhendo o número de parcelas na periodicidade de nossa escolha, a renda é então definida pela fórmula acima. Lembrando que a taxa de retorno e o número de parcelas (N) precisam estar na mesma frequência e que o resultado na renda será exatamente nesta frequência (ou seja, se taxa de retorno e o número de parcelas forem mensais, então a renda será mensal). Importante esclarecer que as N parcelas devem ser exatamente o número de parcelas pelos quais o planejador pretende receber por sua aposentadoria. Logo, se forem 25 anos aposentado vivendo de renda mensal, então N = 25*12 = 300.

Com isso, cobrimos a parte de planejamento financeiro até a aposentadoria. Com alguma álgebra é possível determinar a renda ou a poupança desejadas para a situação financeira de cada um. Se você tiver alguma ideia do retorno esperado no longo prazo dos seus investimentos, poderá calcular quanto precisará poupar até o fim da vida laboral para desfrutar daquela renda desejada durante os anos aposentado.

Considerações finais

Nesse texto, espero ter deixado algumas mensagens importantes, as principais sendo:

  1. O planejamento financeiro é inevitável. Todos nós precisamos ajustar nosso consumo hoje para o momento em que não tivermos mais a renda do trabalho no futuro;
  2. Poupança, tempo e retorno são insumos inseparáveis da acumulação de capital. A poupança é a única condição necessária, enquanto tempo e retorno são agentes que facilitam o processo, reduzindo o tanto que seria requerido poupar para um mesmo patrimônio desejado;
  3. Risco importa mais pra quem tem mais patrimônio acumulado investido, e precisa ser tratado como tal. Migrar o patrimônio do risco para a seguranca ao longo da vida é um procedimento padrão para gestores de portfólio e reguladores do mercado financeiro;
  4. Decidir a aposentadoria requer definir o valor dos depósitos a serem investidos ou da renda a ser auferida na aposentadoria.

Para concluir a leitura e presentear os que chegaram até aqui, montei uma matriz de sensibilidade que analisa o efeito do percentual da renda poupado e da rentabilidade para um horizonte de uma pessoa que contribui 35 anos para sua aposentaria e em seguida vive mais 20 anos aposentado consumindo totalmente seu patrimônio adquirido. Os resultados do centro da matriz são as rendas da aposentadoria para cada cenário de poupança e retorno.

O fluxo de contribuições para a aposentadoria é tratado como um depósito no início de cada mês durante 35 anos a uma determinada rentabilidade média descontada da inflação, enquanto a renda do trabalho é assumida como uma média constante em termos reais para o período de contribuição. Um fluxo ótimo de poupança tende a ser aquele que permite uma transição suave entre a renda durante o período de contribuição e a renda durante o período aposentado.

Matriz de sensibilidade. A área em azul sugere os cenários mais próvaveis da minha escolha.

Essas simulações feitas em Excel podem ser parametrizadas para qualquer idade de início da poupança, anos de contribuição (poupando) e expectativa de vida (recebendo a renda da aposentadoria). Essa planilha de minha autoria é de acesso público neste link.

Espero que este texto ajude o leitor a se proteger das diversas furadas que estão espalhadas pelos produtores de conteúdo financeiro na internet hoje. Nem todos são ruins, mas a grande maioria se beneficia de informações atravessadas e conceitos incorretos em finanças para influenciar pessoas a tomarem decisões com informação incompleta.

.

Publicado originalmente aqui.

Leia também:
Investindo em ativos arriscados – Como enxergar, medir e analisar risco?
Estruturando decisões em investimentos arriscados – Sob quais condições faz sentido correr risco?
A matemática da precificação de ativos – exemplo com VALE3
Explicando o caso GameStop de forma resumida e simples

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público