Síntese matemática da Teoria do Consumidor e da Teoria da Firma

Quem estudou um pouco de Microeconomia já percebeu que existem muitas equivalências e analogias entre as teorias do consumidor e da firma. Por exemplo, as retas de isolucro da Teoria da Firma são análogas às retas de restrição orçamentária da Teoria do Consumidor, ao passo que as curvas de isoquanta da Teoria da Firma são análogas às curvas de indiferença da Teoria do Consumidor. A Taxa Marginal de Substituição Técnica (TMST) na Teoria da Firma é análoga à Taxa Marginal de Substituição (TMS) na Teoria do Consumidor. And so on and so forth.

Porém, as equivalências e analogias entre as duas teorias irão levar o estudante only so far. Cada uma das teorias possui suas peculiaridades. Por exemplo, pode-se fazer uma analogia entre a função utilidade da Teoria do Consumidor e a função lucro da Teoria da Firma no sentido de que ambas são a função-objetivo dos seus respectivos problemas de maximização. Por um lado tal analogia é válida, mas por outro não, dado que as retas de isolucro da Teoria da Firma são análogas às retas de restrição orçamentária da Teoria do Consumidor, e não à curva de utilidade constante (uma curva de indiferença específica), que seria o esperado caso a analogia entre as funções utilidade e lucro fossem perfeitas. A curva de utilidade constante, por sua vez, esta presente na restrição do Problema de Minimização da Teoria do Consumidor — o que equivale a uma isoquanta específica da Teoria da Firma. Mas se esse é o caso, então a função utilidade é equivalente à função de produção no contexto do Problema de Minimização, e não mais à função lucro.

Ademais, as equivalências e analogias só servem até certo ponto devido ao fato, também, de que a Teoria da Firma é mais restritiva do que a Teoria do Consumidor. Por exemplo, só existe função lucro no caso em que as firmas são tomadoras de preço, ou seja, num contexto de competição perfeita. Além disso, a função lucro está mal definida no caso de retornos de escala não-decrescentes (ela assume os valores 0 ou \infty).

Tendo tudo isso em vista, resolvi sintetizar no presente texto os principais resultados derivados dos problemas de maximização e minimização tanto do consumidor quanto da firma. Tal síntese irá realçar quando as analogias e equivalências entre as duas teorias são válidas e quando não. A principal referência usada para o procedimento abaixo foi o livro “Microeconomic Theory“, de Mas-Collel et al.

Problema de Maximização

Teoria do Consumidor

Seja U(\mathbf{x}) a função utilidade do consumidor, onde \mathbf{x} = (x_1,...,x_n) \in \mathbb{R}^n é o vetor que representa todos os bens x_i que geram utilidade ao consumidor. Cada bem possui um preço exógeno a ele associado, p_i, de modo que \mathbf{p} = (p_1,...,p_n) \in \mathbb{R}^n é o vetor de preços dos bens. Além disso, o consumidor possui uma renda exógena y.

Dessa forma, o problema do consumidor é maximizar sua função utilidade sujeita à sua renda (restrição orçamentária). Para tanto, ele é livre para escolher \mathbf{x}. Em notação matemática, o problema do consumidor é:

\max\limits_{\mathbf{x}} U(\mathbf{x}) \quad s.a \quad \mathbf{px} \leq y

A solução desse problema gera a função de demanda marshalliana/walrasiana pelo bem x_i:1

x_i(\mathbf{p},y)

Teoria da Firma

Suponha que uma firma produza certos outputs utilizando certos fatores de produção e insumos, que iremos chamar de inputs. Assim, a firma possui um vetor/plano de produção \mathbf{y} = (y_1,...,y_L) \in \mathbb{R}^L, onde y_l é uma commodity que pertence a esse vetor de produção. Se y_l > 0, então y_l é um output; ou seja, a firma, de forma líquida2, produz y_l. Já se y_l < 0, então y_l é um input; ou seja, a firma, de forma líquida, consome y_l.

Cada commodity y_l possui um preço exógeno a ela associada, p_l, de modo que \mathbf{p} = (p_1,...,p_L) \in \mathbb{R}^L é o vetor de preços das commodities. Ademais, seja Y o conjunto de produção, isso é, o conjunto de todos os vetores de produção possíveis, de tal sorte que \mathbf{y} \in Y.

Dessa forma, o problema da firma é maximizar seu lucro, que é a diferença entre sua receita total e seu custo total. Para tanto, ela é livre para escolher \mathbf{y}. Em notação matemática, o problema da firma é:

\max\limits_{\mathbf{y}} \mathbf{py} \quad s.a \quad \mathbf{y} \in Y

Perceba que \mathbf{py} é o lucro da firma, que vamos chamar de \pi. Ou seja, \pi = \mathbf{py}.

A solução desse problema gera a correspondência de demanda pelo input y_l (se y_l < 0) ou a correspondência de oferta do output y_l (se y_l > 0). Ou, mais sinteticamente, tem-se a correspondência de oferta líquida de y_l:

y_l(\mathbf{p})

Notação modificada da Teoria da Firma

Vamos fazer a seguinte modificação na notação: se y_l for um output, então y_l = q_l; já se y_l for um input, então y_l = z_l. Assim, tem-se o vetor de outputs \mathbf{q} = (q_1,...,q_M) \in \mathbb{R}^M e o vetor de inputs \mathbf{z} = (z_1,...,z_N) \in \mathbb{R}^N (perceba que M + N = L). Tem-se que \mathbf{p} = (p_1,...,p_M) \in \mathbb{R}^M é o vetor de preços dos outputs e \mathbf{w} = (w_1,...,w_N) \in \mathbb{R}^N é o vetor de preços dos inputs. Adicionalmente, cada q_m possui uma função de produção associada, dada por f_m(\mathbf{z}).

Assim, o problema da firma pode ser reescrito da seguinte forma:

\max\limits_{\mathbf{z},\mathbf{q}} (\mathbf{pq} - \mathbf{wz}) \quad s.a \quad f_m(\mathbf{z}) \geq q_m

Se supormos que a firma utilize seus recursos de forma eficiente, de modo que q_m = f_m(\mathbf{z}), então podemos substituir q_m por f_m(\mathbf{z}) na função-objetivo. Dessa forma, pode-se substituir o problema de maximização restrita acima por um de maximização irrestrita. Isso é:

\max\limits_{\mathbf{z}} (p_1f_1 + ... + p_Mf_M - \mathbf{wz})

Perceba que, como antes, tem-se que \pi = p_1f_1 + ... + p_Mf_M - \mathbf{wz}.

A solução desse problema gera a função de demanda pelo input z_n:3

z_n(\mathbf{p,w})

Derivações do Problema de Maximização

Teoria do Consumidor

Se subtituirmos cada x_i usado como argumento na função U(\mathbf{x}) pela função de demanda marshalliana/walrasiana x_i(\mathbf{p},y) encontrada anteriormente, obteremos a função de utilidade indireta do consumidor, V(\mathbf{p},y). Ou seja:

V(\mathbf{p},y) = U(\mathbf{x}(\mathbf{p},y))

Teoria da Firma

Se subtituirmos cada y_l(\mathbf{p}) encontrado como solução no problema da firma em \pi = \mathbf{py}, encontraremos a função lucro da firma:

\pi(\mathbf{p}) = \pi(\mathbf{y(p)})

Teoria da Firma com notação modificada

Substituindo cada z_n(\mathbf{p,w}) em cada função de produção f_m(\mathbf{z}), chega-se na função de oferta do output q_m:

q_m(\mathbf{p,w}) = f_m(\mathbf{z}(\mathbf{p,w}))

Usando a notação modificada para encontrar a função lucro, pode-se substituir y_l(\mathbf{p}) por q_m(\mathbf{p,w}) e z_n(\mathbf{p,w}). Assim, função lucro possui a seguinte notação:

\pi(\mathbf{p,w}) = \pi(\mathbf{q(p,w),z(p,w)})

Recuperando a solução do problema original a partir das derivações anteriores

Teoria do Consumidor: Identidade de Roy

x_i(\mathbf{p},y) = - \dfrac{ \left( \frac{\partial V(\mathbf{p},y)}{\partial p_i} \right) }{ \left( \frac{\partial V(\mathbf{p},y)}{\partial y} \right) }

Teoria da Firma: Lema de Hotelling

y_l(\mathbf{p}) = \dfrac {\partial \pi(\mathbf{p})}{\partial p_l}

Usando a notação modificada:

q_m(\mathbf{p,w}) = \dfrac {\partial \pi(\mathbf{p,w})}{\partial p_m}

z_n(\mathbf{p,w}) = \dfrac {\partial \pi(\mathbf{p,w})}{\partial w_n}

Problema de Minimização

Teoria do Consumidor

O problema do consumidor é minimizar seus gastos sujeitos a certo nível de utilidade U. Para tanto, ele é livre para escolher \mathbf{x}. Em notação matemática, o problema do consumidor é:

\min\limits_{\mathbf{x}} (\mathbf{px}) \quad s.a \quad U(\mathbf{x}) \geq U

A solução desse problema gera a função de demanda hickisiana/compensada pelo bem x_i:

x_i^c(\mathbf{p},U)

Teoria da Firma

O Problema de Minimização da Teoria da Firma só pode ser escrito a partir da notação modificada, então é ela que utilizaremos. O problema da firma é minimizar seus custos sujeitos a certos níveis de produção q_1,...,q_M. Para tanto, ela é livre para escolher \mathbf{z}. Em notação matemática, o problema da firma é:

\min\limits_{\mathbf{z}} (\mathbf{wz}) \quad s.a \quad f_m(\mathbf{z}) \geq q_m

A solução desse problema gera a função de demanda condicional por inputs z_n:

z_n(\mathbf{w,q})

Derivações do Problema de Minimização

Teoria do Consumidor

Se multiplicarmos cada x_i^c(\mathbf{p},U) encontrado como solução do problema de minimização pelo seu respectivo preço p_i, obteremos a função dispêndio/despesa/gasto do consumidor:

e(\mathbf{p},U) = \mathbf{px^c}(\mathbf{p},U)

Teoria da Firma

Se multiplicarmos cada z_n(\mathbf{w,q}) encontrado como solução do problema de minimização pelo seu respectivo preço w_n, obteremos a função custo da firma:

c(\mathbf{w,q}) = \mathbf{wz}(\mathbf{w,q})

Lema de Shephard

O Lema de Shephard faz no Problema de Minimização o equivalente a o que a Identidade de Roy e o Lema de Hotteling fazem no Problema de Maximização: ele recupera a solução do problema original a partir das derivações anteriores. A diferença aqui é que o mesmo lema é aplicado tanto para a Teoria do Consumidor quanto para a Teoria da Firma (diferentemente do caso do Problema de Maximização, que é subdividido entre Identidade de Roy para a Teoria do Consumidor e Lema de Hotteling para a Teoria da Firma).

Teoria do Consumidor

x_i^c(\mathbf{p},U) = \dfrac {\partial e(\mathbf{p},U)}{\partial p_i}

Teoria da Firma

z_n(\mathbf{w,q}) = \dfrac {\partial c(\mathbf{w,q})}{\partial w_n}

Conexão entre os problemas de maximização e minimização

Teoria do Consumidor

Renda e gasto são a mesma coisa, ou seja, y = e. Dessa forma, no contexto da Teoria do Consumidor, tem-se as seguintes conexões entre os problemas de maximização e minimização:

x_i(\mathbf{p},y) = x_i^c(\mathbf{p},\overbrace{V(\mathbf{p},y)}^{= U})

x_i^c(\mathbf{p},U) = x_i(\mathbf{p},\overbrace{e(\mathbf{p},U)}^{= y})

V(\mathbf{p},y) = e^{-1}(\mathbf{p},\overbrace{V}^{= U})

e(\mathbf{p},U) = V^{-1}(\mathbf{p},\overbrace{e}^{= y})

Teoria da Firma

O Problema de Maximização pode ser reescrito da seguinte forma, caso se tenha em mãos a função custo, c(\mathbf{w,q}):

\max\limits_{\mathbf{q}} \left[ \mathbf{pq} - c(\mathbf{w,q}) \right]

A solução desse problema gera a função de oferta do output q_m:

q_m(\mathbf{p,w})

Portanto, é possível sair do Problema de Minimização da firma e chegar ao Problema de Maximização pela seguinte rota:

  1. Resolve-se o problema de minimização, encontrando a função de demanda condicional, z_n(\mathbf{w,q});
  2. Encontra-se a função custo, c(\mathbf{w,q}) = \mathbf{wz}(\mathbf{w,q});
  3. Encontra-se a função de oferta, q_m(\mathbf{p,w}) — a partir de onde pode se encontrar também a função lucro, \pi(\mathbf{p,w}).

Ou seja, é possível sair Problema de Minimização da firma e chegar à solução do Problema de Maximização, porém o caminho oposto não é possível de se fazer. Como se vê, equivalências e analogias entre as teorias do consumidor e da firma só ocorrem até certo ponto.

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1. Para fins de simplificação, vamos supor que a função utilidade seja estritamente quase-côncava, de modo que a solução do problema seja uma função, e não uma correspondência/função multivalorada.

2. O uso da expressão “de forma líquida” é importante porque a commodity y_l pode ser usada como input de outra commodity y_k em certo processo produtivo ao mesmo tempo em que é output de outros inputs em outro processo produtivo. Assim, liquidamente, no agregado, a firma poderá produzir y_l mesmo que ela consuma y_l em alguns processos produtivos contidos no plano de produção — ou, da mesma forma, a firma poderá consumir y_l no agregado mesmo que ela produza y_l em alguns processos produtivos.

3. Para fins de simplificação, vamos supor que as funções de produção sejam estritamente quase-côncavas, de modo que a solução do problema seja uma função, e não uma correspondência/função multivalorada.

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Leia também:
Teoria da escolha e curva de demanda
O problema da firma e a curva de oferta
A dedução do modelo básico de crescimento de Solow
Sobre as “hipóteses irrealistas” na economia

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