A economia dos contratos

Introdução

Como uma firma funciona no mundo real? Essa pergunta parece tão ridiculamente fácil que mereceria a adjetivação nelson rodriguiana de “óbvio ululante”. Contudo, ela é uma questão incrivelmente complexa, pelo menos nas ciências econômicas.

A visão usual dos economistas, sobretudo dos microeconomistas, é de que as firmas se comportam de maneira incrivelmente racional e ordenada. Com isso eles não querem dizer que o empresário seja um superforecaster com habilidades únicas de análise e previsão de conjunturas econômicas, mas sim que eles se comportam como se guiados por formulações matemáticas racionais.

Para os economistas neoclássicos tradicionais, a firma nada mais é do que uma mera função de produção. Há inputs (trabalho e capital) e outputs (produção) bem definidos e homogêneos e os administradores conseguem gerenciar processos de maneira perfeita. Para que uma firma funcione adequadamente, basta que ela aloque seus recursos de maneira eficiente segundo cálculos de otimização e seja eficaz na execução de projetos. Nessa visão extremamente “taylor-fordista” das coisas, basta você garantir que a esteira de produção funcione que tudo ficará bem.

Contudo, obviamente, o mundo empresarial não é como essa visão panglosiana simples da economia neoclássica tradicional. Todo administrador com um mínimo de experiência sabe que a gerência de um processo em uma organização envolve aspectos bem mais complexos do que a mera questão de otimização dos recursos. Eles tem que lidar com funcionários que pensam e produzem de maneiras diferentes, máquinas que não podem ser perfeitamente alocadas entre setores de uma mesma planta de produção, fornecedores que podem atrasar o fornecimento de algum insumo ou quebrar acordos, etc.

Esse abismo entre a teoria e a prática sempre foi um problema para os economistas ao lidar com a análise do comportamento dos agentes no mundo real. Contudo, uma linha de pesquisa acabou se formando ao longo dos anos que objetivou preencher esse abismo e dar um melhor entendimento do fenômeno das relações inter e intra-firma pela visão da teoria econômica. Os teóricos do presente artigo fazem parte dessa tradição; contudo para entender sua obra é necessário olhar as raízes dessas novas ideias sobre a natureza das firmas.

I – Coase, firmas e contratos perfeitos

O primeiro a atacar a visão simplista da economia neoclássica tradicional foi o britânico Ronald H. Coase.

Em seu famoso artigo “The Nature of Firm” (1937), Coase pontuou que a análise econômica tradicional era reducionista demais ao tratar as firmas como meras funções de produção. Uma empresa é muito mais do que um mero construto onde capital e trabalho são transformados em uma dada forma de produção. Elas possuem relações complexas, tanto em nível intra como inter-firma, que afetam seu desempenho e, como consequência, sua eficiência; mesmo que os insumos sejam alocados perfeitamente segundo os cálculos de otimização.

Para Coase, todas as firmas possuíam processos complexos construídos em cima de negociações cuja efetividade nunca poderia ser tomada como certa. Trabalhadores poderiam operar abaixo da produtividade esperada em momento inicial de contratação, acordos com fornecedores poderiam necessitar de renegociação, máquinas poderiam necessitar de reparações e acionistas poderiam divergir com relação ao gerenciamento da empresa. Em todas essas situações, o administrador teria que negociar com uma dada parte para que a firma continuasse a operar com total produtividade. E tais negociações imporiam um custo a ele, o custo do tempo e recursos despendidos para realizá-las; custos esses que não ocorreriam se a firma funcionasse segundo o modelo neoclássico da função de produção. Os economistas chamaram esses custos de custos de transação.

Cada firma, naturalmente, possui custos de transação diferentes. Uma siderúrgica não opera e não é administrada da mesma forma que uma empresa desenvolvedora de software. Suas necessidades e processos são diferentes, de forma que as negociações envolvidas em sua operacionalização também são diferentes. Segundo Coase, esses custos de transação diferentes vão produzir mecanismos para lidar com eles também diferentes. Algumas empresas vão optar por possuir um número restrito e fiel de fornecedores ou operar com poucos funcionários, enquanto outras vão funcionar com amplos planos logísticos e um grande número de funcionários.

Por essa razão, por causa das variações nas formas das firmas que ocorrem devido a diferentes custos de transação, que discípulos do pensamento coaseano como Williamson (1981) e Cheung (1983) vão argumentar que a natureza das firmas é essencialmente contratual, pois os contratos são os mecanismos mais eficientes para lidar com o problema dos custos de transação.

A forma das organizações é dada como um processo adaptativo a circunstâncias próprias de cada mercado, onde cada firma tentará chegar o mais próximo possível daquele desempenho ideal da teoria neoclássica desenvolvendo mecanismos próprios para lidar com seus custos de transação. Apesar de essa visão das “firmas como nexus de contratos” ser própria do pensamento coaseano, podemos achar pensamento semelhante em teóricos da administração como Chester Barnard (1948).

Essa ênfase na importância dos contratos para o desempenho econômico posteriormente atraiu os olhares de pesquisadores da área de Direito & Economia, como Richard Posner (1973). Para esses pesquisadores, a conclusão óbvia da linha de pensamento estabelecida por Coase é a de que as transações em uma economia serão facilitadas onde existir uma série de tradições, convenções ou leis, conhecidas pelas partes, para serem aplicadas como ordenadoras de tais transações. As partes não necessitam gastar tempo e recursos para decidir e negociar a maneira de lidar com contingências que podem surgir durante o processo estabelecido pela transação se já existir uma série de regras adequadas. Dessa forma, regras como aquelas do direito contratual ajudam a melhorar o desempenho econômico.

Para autores como Posner, o direito contratual é necessariamente eficiente. Isso significa que esses autores viam os contratos como mecanismos ideais para solucionar o problema dos custos de transação. O direito contratual está sujeito a um processo competitivo que o torna eficiente do ponto de vista econômico devido à doutrina de liberdade contratual. Se uma determinada doutrina contratual não for adequada ao tipo de troca das partes, elas podem a substituir por termos que se aproximem de seu ideal para dada negociação. Logo, somente aquelas doutrinas contratuais capazes de maximizar o bem-estar social das partes serão selecionadas durante o processo de negociação e o direito contratual, por consequência, será necessariamente eficiente.

Do ponto de vista analítico, podemos dizer que o valor de uma promessa contratual para um promitente pode ser dado por:

\rho B - (1 - \rho)R

onde \rho B é a probabilidade do benefício de ganho com tal transação contratual e (1 - \rho)R é o risco do custo da quebra da mesma.

O valor social das expectativas de uma transação para x e y pode ser expresso como:

\rho Bx - (1 - \rho)Rx + rho By - (1 - \rho)Ry

Uma vez que o direito contratual ideal será aquele que maximize o bem-estar social das partes, isso significa que a transação deverá atender à condição Cmg = Rmg. Uma vez que a transação em questão se trata de uma relação jurídica, podemos dizer que a condição de maximização será satisfeita no momento em que qualquer expectativa de benefício adicional por parte do promitente implicar uma perda por parte do promissário e vice-versa. Ou seja, quando os termos do contrato tiverem atingido uma condição de eficiência paretiana. Isso significa que o valor social marginal será ótimo quando a equação do valor social for igual a zero, onde:

\rho Bx - (1 - \rho)Rx = rho By - (1 - \rho)Ry

Posner e Stephen pontuam que nessa situação devemos assumir que os termos e o processo contratual são plenamente conhecidos por ambas as partes. Logo, em um contrato perfeito, o promitente tem a possibilidade de montar sua estratégia com base no efeito do contrato sobre o promissário. Como ele agirá na possibilidade de quebra por parte do promitente? Uma forma de analisar essa situação é notando que, em caso de quebra do contrato pelo promitente, a equação do prejuízo ou custo social da quebra será necessariamente igual ao valor da expectativa de perda do promissário. Logo:

(1 - \rho)D = (1 - \rho)Ry - \rho By

onde D é o prejuízo da quebra contratual entre as partes.

Substituindo (1 - \rho)Ry - \rho By por (1 - \rho)D na equação do valor social contratual, obteremos o valor da promessa contratual sob a condição de conhecimento pleno dos prejuízos potenciais de quebra:

\rho Bx - (1 - \rho)(Rx + D) = 0

Portanto, em um contrato ideal, quando a promessa inicial é mantida, o promitente consegue atingir sua expectativa de benefício Bx e o promissário reconhece suas obrigações iniciais; ou, caso o contrato seja quebrado, o promissário arca com os custos legais mais o prejuízo da quebra. Uma vez que os efeitos do contrato sobre as partes são plenamente conhecidos de maneira mútua entre as mesmas, a estratégia racional de ambas as partes será tentar maximizar seus resultados individualmente, gerando assim um equilíbrio competitivo eficiente. O promitente colocará no contrato termos que o protejam do risco de um ato oportunista por parte do promissário e o promissário irá fazer de tudo para que o contrato firmado lhe cause menos custos ao longo do tempo e em sua execução.

O banqueiro, por exemplo, deseja que seu empréstimo seja honrado nos prazos de pagamentos dos juros e o tomador de empréstimo, por sua vez, deseja que o contrato de empréstimo lhe gere o menor custo em termos de juros ao longo do período de vigência do acordo.

Segundo essa visão, as firmas conseguem, graças à natureza competitiva dos contratos privados, sempre estabelecer acordo eficientes e reduzir os seus custos de transação. Mas essa visão é realmente válida? Segundo nossos teóricos (e a experiência prática de qualquer administrador) a resposta é um enfático não.

II – Contratos imperfeitos e o dilema do Blockchain

O problema do modelo apresentado anteriormente é que ele só se aplica no caso dos termos contratuais serem perfeitamente cumpridos e das partes saberem se irão ou não incorrer em prejuízo. Contudo, esse raramente é caso no mundo real.

Mesmo que as partes saibam todos os termos de um contrato, é impossível que elas consigam prever como o outro irá agir ao longo do processo de execução do acordo. As partes contratantes estão sujeitas a problemas de assimetria de informação no momento de formulação contratual. Uma dessas principais assimetrias de informação surge do fenômeno que Berle e Means (1932) chamaram de “problema da sociedade acionária corporativa” ou problema agente-principal. Nesse tipo de organização, a propriedade e o controle dos ativos de uma firma estão inevitavelmente separados. Os acionistas, por mais que possuam propriedade sobre a empresa, não a dirigem; quem faz isso são os administradores e os diretores.

Dessa forma, os diretores e administradores possuem mais conhecimento sobre a empresa e poder sobre sua produtividade do que o acionista anônimo que recebe seus dividendos. Contudo, por mais que controlem diretamente os ativos da empresa, os administradores não são seus proprietários, de forma que não possuem o direito de se apropriar dos ganhos de produtividade que venham a ocorrer na estrutura produtiva. Dessa forma, qual o incentivo para que um administrador gerencie o processo de uma empresa a buscar sua máxima produtividade se ele não tem nada a ganhar com isso e como pode o acionista se defender desse comportamento complacente por parte de seus administradores se ele possui menos conhecimento sobre sua empresa do que eles? A desconfiança que emerge desse tipo de situação pode destruir qualquer relação contratual.

Seguindo nosso modelo anterior, em uma situação de informação assimétrica e conhecimento imperfeito das partes sobre o efeito do contrato, o comportamento de maximização individual de ambas as partes acabará gerando um cenário de Dilema dos Prisioneiros.

O promissário, sabendo que o promitente não pode saber tudo sobre sua situação, perceberá que a melhor estratégia possível para ele é quebrar o contrato, pois nesse cenário ele evita os custos de cumprimento contratual e ainda consegue maximizar o benefício do valor do contrato. Já para o promitente, a estratégia racional será evitar estabelecer o contrato, pois somente assim ele poderá minimizar de maneira perfeita o custo legal e o risco de perda de seu patrimônio no caso de uma quebra contratual. Logo, em uma cenário de contratos incompletos, onde exista uma permanente desconfiança entre as partes, é impossível que qualquer transação desse tipo seja feita.

O que os trabalhos de Hart e Holmstrom (1987), Hart (1988) e Hart e Holmstrom (2010) tentam fazer é mostrar que mesmo em cenários desse tipo os contratos podem existir e as firmas ser entendidas como nexos contratuais.

Para solucionar o problema dos contratos incompletos, Hart e Holmstrom notam que, no estabelecimento das estratégias de maximização na condição de assimetria entre as parte, haverá o incentivo para que a parte mais interessada no contrato (usualmente o contratante) adote o Princípio da Informação na elaboração do contrato.

Segundo esse princípio, as partes colocarão nos termos contratuais condições que lhes deem o maior número possível de informações umas sobre as outras. Um fornecedor, por exemplo, pode querer informações sobre as condições de pagamento de uma empresa que lhe contrate e a empresa contratante pode ter interesse em saber o histórico de atendimento do fornecedor. Uma vez que essas informações sejam fornecidas, é mais provável que as partes, em suas maximizações individuais, cheguem a um contrato mais eficiente do que em um cenário que esse princípio esteja ausente. Por essa razão, é perfeitamente normal que um banco exija um volume enorme de informações para um contrato de empréstimo.

De maneira semelhante, as partes também podem concordar por colocar em contrato Mecanismos de Incentivo que corrijam os efeitos de um contrato incompleto. Um exemplo disso são os contratos de remuneração por resultado, onde os administradores são pagos em proporcional à sua produtividade; apesar de que esse tipo de mecanismo é bastante frágil devido ao problema de monitoramento (Alchian e Demsetz, 1972).

Segundo Hart e Holmstrom, as firmas irão evoluir dentro desse jogo estratégico e competitivo resultante dos contratos incompletos. Alguns podem ver isso de um ponto de vista negativo, pois parece, inicialmente, que os acionistas e administradores terão que lidar com um caos sem fim de litígios contratuais. Todavia, no fim, os contratos incompletos são essenciais para a própria sobrevivência das firmas.

A incompletude contratual permite que as firmas possuam uma brecha, um espaço, para negociar termos cujas condições iniciais mudaram durante o processo de sua execução. O mercado consumidor de uma empresa pode mudar seus gostos e, como consequência, a empresa poderá demandar uma quantidade diferente dos insumos que comprava de seus fornecedores. Uma vez que o contrato sempre será incompleto, ela terá um espaço para renegociar seus termos e, com isso, permitir que sua organização possa se adaptar a uma nova situação não prevista inicialmente.

É por essa razão que os Contratos Inteligentes (Smart Contracts) de Blockchain tem uma aplicação bastante limitada. Uma vez que eles são rígidos e autoexecutáveis, não permitindo que as partes o modifiquem durante o processo, eles não permitem que suas partes modifiquem seus termos de forma a se adaptar a uma nova condição econômica. Dessa forma, os Contratos Inteligentes se tornam muito pouco resilientes do ponto de vista evolutivo e acabam tornando as organizações baseadas em seu mecanismo rígidas e vulneráveis a mudanças nas condições iniciais do contrato. Não estranhamente, os Contratos Inteligentes acabam se limitando a contratos de transações simples e não a transações complexas e de longo prazo, como financiamentos industriais e contratos de construção de plantas imobiliárias, por exemplo.

Bibliografia

— COASE, Ronald H. The Nature of the Firm. Economica, v. 4, n. 16, p. 386–405, 1937;

— WILLIAMSON, Oliver E. The Economics of Organization: The transaction cost approach. American journal of sociology, v. 87, n. 3, p. 548–577, 1981;

— CHEUNG, Steven NS. The Contractual Nature of the Firm. The Journal of Law and Economics, v. 26, n. 1, p. 1–21, 1983;

— BARNARD, Chester I. Organization and Management. Harvard University Press, 1943;

— POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. Wolters Kluwer, 1973;

— STEPHEN, Frank H. Teoria Econômica do Direito. Makron Books, 1993;

— BERLE, Adolf; MEANS, Gardiner. The Modern Corporation and Private Property. Transaction Publishers, 1932;

— HART, Oliver; HOLMSTRÖM, Bengt. The Theory of Contracts. Em: Advances in economic theory: Fifth world congress. Cambridge: Cambridge University Press, 1987;

— HART, Oliver D. Incomplete Contracts and the Theory of the Firm. JL Econ. & Org., v. 4, p. 119, 1988;

— HART, Oliver; HOLMSTROM, Bengt. A Theory of Firm Scope. The Quarterly Journal of Economics, v. 125, n. 2, p. 483–513, 2010;

— ALCHIAN, Armen A.; DEMSETZ, Harold. Production, Information Costs, and Economic Organization. The American Economic Review, v. 62, n. 5, p. 777–795, 1972.

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Publicado originalmente aqui.

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