Para que serve a Teoria Quantitativa da Moeda hoje em dia?

Gostaria de tratar de um assunto talvez ainda controverso no Brasil, sobre o papel dos agregados monetários e da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM) na macroeconomia moderna. Vamos explorar o seu significado e tentar levá-la a alguma aplicabilidade prática.

A TQM é uma hipótese que associa o nível de preços (e consequentemente a inflação) ao aumento da quantidade de moeda em uma economia. Essa associação é feita através da seguinte identidade cunhada pelos monetaristas clássicos:

M_{t}V_{t} = P_{t}Y_{t}

em que ‘M’ é a oferta de moeda, ‘V’ é a ‘velocidade da moeda’ (trataremos dela a seguir), ‘P’ é o nível de preços e ‘Y’ é o produto da economia (ou PIB).

A partir dessa identidade fundamental, um aumento em ‘M’ requer um aumento equivalente em ‘P’, assumindo ‘V’ e ‘Y’ constantes. A intuição simples da teoria é a de que estando parada a oferta de bens (Y) em uma economia, dar dinheiro (M) para que consumidores comprem mais só poderá acarretar em um aumento dos preços (P), uma vez que há mais dinheiro perseguindo a mesma quantidade de produtos.

Ainda que sujeita a críticas, tal teoria permitiu que economistas pudessem pensar, gerenciar e entender os limites da política monetária como veículo por meio do qual direcionar uma economia. Muitos modelos sobre o funcionamento da macroeconomia utilizam a dinâmica oferecida pela TQM como condição fundamental de equilíbrio: iguala-se a demanda por moeda (função do crescimento econômico) à sua oferta determinada pelas autoridades monetárias, resultando em uma situação de maior crescimento econômico com mais inflação, e vice-versa.

A TQM, apesar de ainda fazer parte da grade curricular dos cursos de Economia tradicionais em todo o mundo, caiu fortemente em desuso na pesquisa acadêmica há muitos anos. Para além das razões teóricas a esse respeito, pretendo mostrar aqui como essas dificuldades não poderiam jamais ser ignoradas do ponto de vista prático.

Problema 1: como medir o nível de preços?

A TQM tradicionalmente apresenta suas medidas de oferta de moeda a partir de dados de agregados monetários produzidos pelos bancos centrais de cada país (M1, M2, M3, etc.) contrastados com dados das contas nacionais, geralmente o PIB nominal representando o lado direito da equação (PY). A inflação medida aqui, portanto, é aquela oriunda da variação do deflator do PIB (P), que multiplica o produto real da economia (Y). O primeiro problema surge daí, porque o deflator do PIB e o nível de preços ao consumidor (medida oficial da inflação internacionalmente convencionada) são conceitos distintos de medição de preços. O IPCA, que visa medir o preço ao consumidor, desconsidera as etapas intermediárias do processo produtivo. Já o deflator do PIB, não. Essas diferenças conceituais nos levam a resultados diferentes, apesar de terem uma boa correlação:

Dados: Haver Analytics/IBGE.

Para além do problema da medida, há também o problema de histórico. As contas nacionais trimestrais são notoriamente conhecidas por passarem por revisões históricas em seus dados mais recentes. Frequentemente o IBGE revisita os números publicados para os dados de dois a três anos atrás. A inflação retratada pelo deflator do PIB muda, enquanto pelo IPCA não.

Além disso, existe um problema de frequência, uma vez que a inflação medida pelo IPCA é divulgada mensalmente, enquanto as contas nacionais são de divulgação trimestral e com aproximadamente três meses de defasagem. A habilidade de se diagnosticar um choque inflacionário mais recente a partir dos dados das contas nacionais limitaria demais a atuação da política monetária.

Problema 2: o fraco poder preditivo dos agregados monetários

Usar a variação dos agregados monetários para prever a inflação é sofrível. Algumas interpretações da TQM sugerem que o relacionamento entre a oferta de moeda e a inflação só deve valer no longo prazo, mas esse prazo não é facilmente identificável nos dados.

Na prática, a economia está em constante reação a novos choques, de forma que se o lado direito da minha equação de variáveis de determinação da inflação não for bastante completo e capturar essas relações de curto prazo, fica impossível afirmar, sem qualquer risco de incorrer em uma correlação espúria, que a inflação foi, efetivamente, produzida pelo aumento na oferta de moeda.

Vamos analisar esse argumento de maneira prática e olhando para o Brasil. Voltando à identidade inicial da TQM:

Tomamos o logaritmo natural da identidade (onde usamos a notação ln(X) = x), resolvendo para ‘P’:

Subtraindo ‘P(t-1)’ de ambos lados da equação, podemos reescrevê-la da seguinte forma:

Aqui, ‘∆p’ é a inflação, ‘∆m’ a variação da oferta de moeda e ‘∆y’ o crescimento real do PIB.

Neste primeiro momento, vamos assumir que a velocidade da moeda (∆v) se mantém constante ao longo do tempo, e analisar se a dinâmica ‘∆m-∆y’ ajuda a prever a inflação contemporânea de alguma maneira:

Uma vez esperada uma relação praticamente de 1 para 1 entre a inflação (medida pelo deflator do PIB) e a diferença entre a variação da oferta de moeda e o crescimento do PIB, nota-se que dificilmente poderíamos prever qualquer coisa a partir desta teoria.

Problema 3: a tal “velocidade da moeda”

A terceira grande dificuldade de se lidar com esta teoria está no fato de que ela nos exige algum tratamento à “velocidade da moeda” (V). Essa variável não-observável, que permite aos monetaristas clássicos dar o caráter de identidade ao ‘MV=PY’ foi muito frequentemente desmerecida no passado, quando o monetarismo ainda fazia parte do mainstream econômico acadêmico, e, para a maioria dos economistas adeptos desta escola, a velocidade da moeda era dada como uma constante por hipótese. Assim, a análise da inflação era, portanto, derivada da maneira como fiz no Problema 2.

No entanto, veja o que acontece se levarmos a identidade a sério e resolvermos ‘V’ da seguinte forma:

Em seguida, aplicamos a identidade para encontrar ‘V’ para diversos países do mundo desde 1960:

Aqui, emprego a metodologia do FRED para os EUA.

Percebemos aqui algumas coisas:

  1. A velocidade da moeda foi razoavelmente constante de 1960 até 1990 nos EUA, o que certamente contribuiu para a maior aplicabilidade da TQM neste período, favorecendo os monetaristas.
  2. A maior volatilidade da velocidade da moeda a partir da década de 90 para todos os países, muitos apresentando tendência decrescente para os mais diversos sistemas monetários, nos leva a crer que é muito difícil projetá-la. No mínimo, ela adiciona graus de incerteza para a análise.
  3. Os choques de estímulos fiscais e monetários parecem ter forte relação endógena negativa com a velocidade da moeda. Muitos países observaram considerável queda em seu ‘V’ durante a pandemia e a crise de 2008, por exemplo.

Diante desses fatos, fica muito difícil defender análises sobre o efeito da oferta de moeda na inflação. Seria necessária uma hipótese muito forte a respeito da trajetória prospectiva de ‘V’, que só poderia ser observada após a divulgação das contas nacionais trimestrais, sobre o que de fato causou a inflação que já aconteceu.

Considerações finais

Pelas razões listadas acima, é bastante difícil utilizar os agregados monetários ou valer-se de análises a partir da identidade da TQM para analisar a conjuntura econômica e, mais desafiador ainda, inferir sobre o efeito do aumento da oferta de moeda na inflação. Importante notar que a conclusão contida nesta análise nem de longe diverge das melhores práticas utilizadas para projeção e análise de cenários da inflação por acadêmicos e praticantes de casas relevantes, inclusive bancos centrais no mundo todo. Se estudar sobre inflação conjuntural e teoria monetária é do seu interesse, recomendo este post dedicado ao assunto no meu blog. Por hoje é isto.

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Publicado originalmente aqui.

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