A incrível máquina de prosperidade

As pessoas têm dificuldade em entender de que maneira os agentes econômicos beneficiam-se de um aumento no comércio voluntário entre si, isto é, dos ganhos do comércio. Me parece que ainda permeia no imaginário popular a ideia segundo a qual a sociedade e a economia são um grande jogo de soma zero, ou seja, a economia é um grande bolo em que, para um ganhar mais, outro tem que ganhar menos. Eu não venho aqui especular o porquê disso, mas se impelido a apostar, a explicação que mais me parece convincente é a que privilegia aspectos evolutivos. Afinal, a invenção da agricultura é muito recente na história da humanidade quando comparada à própria existência humana. O nicho ecológico dos primeiros hominídeos era tal que realmente a soma era zero. Se a psicologia evolutiva estiver certa, isso potencialmente explica essa mentalidade de soma zero. Essa seria uma limitação cognitiva inata parecida com a nossa dificuldade de lidar com avanços em grandes ordens de magnitude em uma função exponencial, por exemplo.

Obviamente, o fato de existirem essas limitações não significa que não possamos estudar o assunto. Nós podemos sim. Afinal, assim como o matemático performa seu trabalho ainda que enfrente dificuldades que atrapalham o entendimento das exponenciais, nós também podemos estudar os ganhos do comércio. E assim tem sido feito desde Adam Smith.

Se entender os ganhos do comércio é complicado quando visualizamos não mais que agentes individuais num cenário “micro”, parece que tudo se complica ainda mais quando envolvemos um agregado desses agentes difusos e heterogêneos. Por essa razão, o formalismo matemático é imprescindível, uma vez que deixa claro as nossas hipóteses e também as nossas conclusões, com o ganho de nos impedir de cometer erros durante o processo argumentativo. Entretanto não persistirei neste ponto.

O que viso efetivamente com este texto é ilustrar os ganhos do comércio internacional por meio de uma fábula que ouvi do economista Bryan Caplan. Assim, tornar palpável o que realmente importa e, se possível, eliminar crenças erradas que as pessoas carregam por um estado de confusão ao falharem em entender os benefícios líquidos da atividade econômica.

A fábula

Imagine que em alguma região da costa oeste americana uma fábrica tenha sido instalada. Uma fábrica simples e singela. Essa fábrica que possuía um poder extraordinária. Uma fábrica tão extraordinária e fantástica que logo iria espantar o mundo com tamanha extraordinariedade. Dessas coisas extraordinárias que alguns dizem mesmo ser impossíveis – até serem efetivadas.

As atividades dessa fábrica simples e singela eram tão simples e singelas quanto ela própria. Logo de manhã, um caminhão aparecia carregado com estoques de cevada. A cevada era entregue ao dono da nossa fábrica, que em um ar de mistério reagia depressa, de forma discreta e silenciosa, para não chamar atenção. Assim se seguia o dia e, ao anoitecer, engolidos pelo véu da noite, a paisagem era consumada pelo que aparentava ser o vazio.

Todavia, após um certo período de tempo, a fábrica, com toda sua introversão, abria seu portão. Deste, saíam carros. Tais automóveis eram então colocados num transportador, que os levava para a cidade. E assim a rotina se repetia: pela manhã entrava cevada e após um tempo saíam carros. Essa imagem se repetia todo dia. E essa magia parecia passar despercebida aos olhos da humanidade. Ressalte-se que os motoristas que entravam com os caminhões não eram os mesmos que saíam com os carros. Uma lástima, pois eles não chegavam a ver o tamanho do milagre.

Mas nossa história não acaba aí. A região era afastada, porém não era deserta. E com o passar dos meses, alguns trabalhadores dos arredores, de tanto trabalhar dia e noite, ouvindo relatos incompletos jogados em conversas fúteis entre si, perceberam algo de estranho naquela simples e singela fábrica. Eram sussurros, que viraram conversas jogadas, depois sérias e longas discussões – tudo sobre a fábrica, que supostamente transformava cevada em carros.

Foi capturado o imaginário dos trabalhadores da região, que ficaram ainda mais atentos. Todos queriam ver para crer aquele suposto milagre que acontecia frente aos seus olhos. Um a um, os descrentes viraram devotos. E as conversas, que eram ditas de superstição, agora eram apenas mera curiosidade científica, crítica. A palavra se espalhou para outras fábricas, com o passar do tempo para fábricas ainda mais distantes e distantes, de pessoas que não conseguiam nem verificar com seus próprios olhos senão fazendo uma longa e custosa viagem. Então a incerteza predominava nos relatos, mas a convicção dos seus contadores e a própria curiosidade humana fez com que cativasse todos aqueles que ouviam o relato mágico.

O rumor da fábrica que transformava cevada em carros logo se espalhou para o grande público. Um operário falava para mulher e filhos. A mulher contava para as amigas, que por sua vez falavam com suas amigas, isso sem dizer do filho que contava para os amigos, que contavam para os pais e os pais quando ouviam de outros adultos o mesmo relato espalhavam ainda mais. Muitas hipóteses surgiram. Talvez fossem aliens, alguns diziam. Talvez fosse Deus.

E todas as alternativas eram examinadas nas fofocas e mesas de bar. Uma das versões passou a dominar as demais, e se tornou um consenso. Era a versão da hipótese da máquina extraordinária. Uma máquina extraordinária e fantástica. Uma máquina mágica.

As tentativas de explicação eram veladas pelo dono da fábrica, que se mantinha nas sombras, evitando olhares e nunca produzindo um depoimento sequer, nem para o mais ávido jornalista investigativo. E digo que houve muitos desses. O antes boato agora era mais que uma lenda urbana. Era um dos maiores problemas que a sociedade americana tinha produzido. Tinha capturado o coletivo popular como nada antes.

Os jornalistas investigavam. Os cientistas sociais coletavam dados, monitoravam a atividade. Os físicos e químicos estudavam as propriedades da cevada e dos carros. Os engenheiros projetavam todos os tipos de máquinas na esperança de conseguir copiar a suposta máquina mágica. Aquilo era possível? Seria todo conhecimento humano produzido até então falso? Tudo descartável? Se não, algo tinha que ser. Mas o que? E assim se produziram incontáveis e intermináveis debates, principalmente entre os filósofos.

Enquanto isso, as portas da fábrica permaneciam fechadas aos olhos estrangeiros. Se o sigilo era grande antes, agora era ainda pior. A cada dia, o dono tinha que se esconder da multidão cada vez maior que se agrupava para fora das propriedades da fábrica. Era tanta gente que virou com o tempo um passeio turístico. A notícia virou internacional e tinha gente de todo o globo querendo observar com seus próprios olhos aquele milagre.

O dono era resistente, mas os curiosos não iam deixar barato. A pressão era grande e crescente, e explodiu numa exponencial, de tal modo que o dono da fábrica prometeu que um dia abriria suas portas para o público interessado. Naturalmente, eram todos interessados. A data de divulgação foi estabelecida, e o mundo todo era bombardeado com notícias avisando que o dia fatídico estava cada vez mais perto. Milhares e milhares de pessoas acampavam na região. A economia local crescia como nunca antes e todos de lá agradeciam por aquele milagre ter acontecido.

Eis que o dia finalmente chegou. Era madrugada e havia apenas uma multidão de corpos atentos observando e esperando o caminhão de cevada chegar, como era de costume. Foi rápido, mas para alguns, uma eternidade. Estavam lá há dias, meses. O caminhão apareceu no horizonte. Bateram palmas, alguns rezaram e outros choraram. O caminhão parou como de costume. A tensão crescia no ar, as pessoas suavam. Especularam sobre se teriam a capacidade de absorver aquele espetáculo sobrenatural. Se aquilo era possível de ser percebido por olhos tão somente humanos.

Finalmente, a verdade. Os portões abriram e foi tudo revelado. A máquina extraordinária se tratava simplesmente de alguns barcos. A população não entendia. Não queria entender. Não podia ser! Interrogaram o dono da fábrica, que deu a seguinte explicação: eram somente barcos que pegavam a cevada, levavam para o Japão e em troca, recebiam carros. O desencanto era perceptível em todos os olhos daqueles pobres sonhadores. As pessoas foram para casa, os rumores cessaram e o dia continuou o mesmo como se nada tivesse acontecido – com a falsa crença de que aquilo que experimentaram era nada menos que extraordinário.

Fim.

Qual é a moral da história?

O que quero tirar dessa fábula é que essencialmente o que acontece no comércio internacional é isso que foi descrito. Transformamos um produto que produzimos em um produto que queremos. No final desse processo, todo mundo sai ganhando. Consumindo mais, sendo mais produtivos, sendo mais ricos.

Muitos falam popularmente que devemos parar de trocar com país X ou Y. Que em verdade eles estão nos trapaceando e estão ganhando de nós de alguma forma. Que estamos piores por causa disso. Novamente aquela mentalidade simplista da soma zero.

Todavia, a verdade é essa que a fábula nos conta. Pouco importa o país X ou o país Y. Pouco importa o que está dentro da fábrica. A verdade é que nunca importou e que, mesmo assim, algo mágico acontece. Nós consumimos coisas que não produzimos.

No fim, as pessoas se desencantaram com a máquina. Não por ela ser banal nem por ela ser simples, mas simplesmente porque falham em ver o seu verdadeiro milagre.

.

Leia também:
O que são as vantagens comparativas?
A difícil ideia de Ricardo – Por Paul Krugman
Por que livre comércio?
Querer “adicionar valor” em todas as cadeias produtivas não faz sentido econômico

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público