Como falhas de mercado impactam nossa saúde: a malária e as doenças negligenciadas

Na história, há algumas descobertas que impactaram profundamente a maneira como vivemos. Sobre uma delas, o ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, certa vez disse: “O Gim & Tônica salvou mais vidas e mentes inglesas do que todos os médicos do Império”. A frase pode causar um certo estranhamento, mas a história que a precede é a de uma molécula que ajudou a moldar o mundo no qual vivemos. Sua descoberta alterou fronteiras, criou indústrias, destruiu dogmas médicos e ainda hoje reflete uma falha de mercado que ceifa a vida de milhões de pessoas por ano.

Há uma lenda muito conhecida no povo Quíchua, do Peru, em que um homem vagava perdido em uma selva montanhosa, enquanto sofria com febre e tremores. Sedento, avistou um lago cercado por árvores. Ao beber a água, um gosto amargo tomou a sua boca. Imaginou que poderia ser o prenúncio de um envenenamento. Pouco tempo depois, percebeu que estava curado da febre. Entusiasmado, conseguiu retornar à sua vila e compartilhou sua miraculosa descoberta. Deste momento em diante, o povo Quíchua passou a utilizar a casca da Quinquina, árvore que cercava o lago, como remédio para toda sorte de males.

Sendo a lenda verdade ou não, é fato que os Jesuítas Espanhóis, no século XVII, entraram em contato com esse povo e levaram para a Europa o medicamento milagroso. À época, em uma Europa renascentista, todo conhecimento médico era resumido na herança grega de Hipócrates e Galeno. A Teoria Humoral ainda era pouco contestada, portanto, doenças eram vistas como desequilíbrios nos quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra. Remédios seriam uma forma para rebalancear esses desequilíbrios. A utilização da casca de Quinquina não conversava com essa teoria, por isso, grande parte da classe médica se opôs ao uso da droga. Mas sua eficácia era incontestável. Reis seriam salvos por aquele medicamento mágico. Toda a teoria médica da época, que já sobrevivia há quase dois milênios, estava sendo desafiada por uma casca de árvore.

Hoje sabemos que o que está presente na casca de Quinquina era o Quinino. Um alcaloide, com propriedades anti-inflamatórias, antipiréticas e, principalmente, eficaz contra o parasita da malária. Com o tempo, o remédio, que ficou conhecido como pó dos jesuítas, se tornou popular entre as classes mais abastadas e era utilizado para tratar todo tipo de doença. A casca de Quinquina era coletada na América Espanhola, passava por um processo de secagem e moagem para embarcar para a Europa, onde, devido ao seu ao seu gosto amargo, era consumida com vinho. A alta demanda e o preço elevado eram indicativos da necessidade de um processo mais eficiente. Em 1820, dois cientistas franceses, Pierre Pelletier e Joseph Caventou, isolaram o Quinino da casca da Quinquina. A descoberta foi revolucionária, um arsenal terapêutico que contava basicamente com plantas e minerais de eficácia duvidosa agora possuía um dos primeiros medicamentos modernos e o primeiro efetivo contra uma doença infeciosa.

O nascimento da indústria farmacêutica foi largamente influenciado por essa descoberta. Afinal, a primeira droga a ser consumida em massa urgia pela consolidação de um processo industrial. Ironicamente, essa descoberta com potencial de salvar milhões de vidas foi a lacuna que faltava para promover uma das maiores tragédias dos últimos séculos.

A segunda metade do século XIX foi o período conhecido como “scramble for Africa”, onde as potências europeias se lançaram aos mares para colonizar a África. No entanto, havia uma barreira a essa ambição: o continente africano do início do século XIX era conhecido como “o túmulo do homem branco”. A malária, e outras enfermidades, eram devastadoras contra os colonizadores e formavam uma proteção natural do povo africano, que em sua maioria já haviam adquirido alguma imunidade contra a doença. Dados indicam uma mortalidade de 40% das forças militares europeis por ano somente para doenças. O impacto da malária nos europeus adiou por décadas a consolidação do processo colonizador no continente. No entanto, com o aproximar do século XX, a mortalidade despencou. No Senegal, colônia francesa, 88%. Em Serra Leoa, colônia inglesa, 99%. A utilização do Quinino em larga escala é atribuído como uma das principais causas dessa queda de mortalidade.

A droga era vista como tão necessária como a água e comida para sobrevivência na região. Dado seu amargor, os britânicos a misturavam com soda e limão, originando a água tônica, consumida até hoje. Com frequência o gim também era usado, sendo essa a origem do drink e da frase de Churchill. De fato, o Quinino pode ter salvado a vida de milhares de britânicos, como aponta o primeiro-ministro, mas o mesmo não pode ser dito com relação à população local. Pode-se argumentar que os males causados pela malária eram inferiores às consequências do processo colonizador. O primeiro medicamento produzido em massa na história da humanidade, o primeiro a tratar uma doença infecciosa, foi o impulsionador de um desastre humanitário que ressoa até hoje. Sem o Quinino é improvável que o impacto europeu no continente africano seria tão devastador.

Séculos se passaram e a malária ainda é um problema. Com uma média de 240 milhões de casos e 600 mil mortes por ano, onde mais da metade são de crianças entre 0 e 5 anos de idade, a doença ainda é uma das principais causas de mortes na África Subsaariana. Após a descoberta do Quinino, da Cloroquina em 1934 e do Arteméter em 1987, pouco foi feito em termos de inovações terapêuticas. Não é coincidência de datas o fato de que a doença foi erradicada dos países desenvolvidos no meio da década de 70 e que a descolonização se iniciou após a segunda guerra mundial. A malária deixou de ser um problema para mundo desenvolvido quando a África deixou de estar na mão dos colonizadores.

Esta conclusão reflete uma importante falha de mercado do meio farmacêutico. Os incentivos econômicos que direcionam a pesquisa e desenvolvimento (P&D) de inovações terapêuticas são moldados pelas necessidades dos países desenvolvidos. Um dos trabalhos basilares sobre o tema aponta que há uma forte correlação entre tamanho de mercado e potencial lucratividade com desenvolvimento de inovações farmacêuticas. No entanto, o século XX criou uma barreira que separa os países desenvolvidos, que possuem um perfil epidemiológico formado por doenças crônicas, como câncer e diabetes, dos países em desenvolvimento, que enfrentam majoritariamente doenças infeciosas, como a malária. Essa distinção reflete no tamanho de mercado dessas doenças. O baixo poder econômico, os sistemas de saúde pouco organizados e o histórico de pouca proteção a patentes, são características de países em desenvolvimento que apequenam o mercado de doenças que ainda são muito prevalentes. Como consequência, o impacto de algumas doenças não é proporcional ao seu tamanho de mercado.

O resultado dessa equação é perturbador: há pouco ou nenhum incentivo para se desenvolver medicamentos para doenças que ainda matam milhões de pessoas por ano. Essas doenças, prevalentes em países em desenvolvimento, são denominadas doenças negligenciadas. Nas últimas décadas, diversos autores têm reconhecido essa falha de mercado e buscado formas de se redesenhar o conjunto de incentivos que levou a atual situação.

Muitos, quando se deparam com essa realidade, tendem a encontrar uma alternativa no financiamento público de P&D. No entanto, o investimento público, em sua maioria, resulta em pesquisa básica e raramente em algum medicamento. Além do fato de que, como a pesquisa é majoritariamente realizada dentro de países desenvolvidos, também tende a ser direcionada para as necessidades da população que o financia. Certamente, investimentos em pesquisa básica na área seriam úteis, afinal, quase 4 séculos depois, ainda não sabemos como o Quinino ataca a parasita da malária. No entanto, este investimento dependeria da benevolência de países desenvolvidos em investir em algo que não os afeta, sendo esta uma realidade raramente capaz de resolver problemas complexos.

Outros argumentam que a indústria farmacêutica sozinha é capaz de solucionar o problema. É fato que nas últimas décadas as BigPharmas têm cada vez mais se engajado em ações que visam a distribuição de medicamentos e o financiamento programas de P&D focados em doenças negligenciadas. Mas é preciso levar em consideração que a indústria farmacêutica não goza de elevada reputação com o público geral e que atitudes como essas têm grade poder de aumentar o seu capital social. Apesar de avanços terem sido feitos, como a vacina de malária da GSK, é improvável que a solução virá de ações de caridade.

A saída para essa questão está menos na dicotomia entre o público e o privado e mais no desenho de um sistema que forneça os incentivos corretos. Só haverá P&D para doenças negligenciadas quando houver incentivos para que haja, ou seja, quando os potenciais ganhos econômicos forem semelhantes aos de doenças prevalentes em países desenvolvidos. Um problema semelhante foi enfrentado nos anos 80 pelos Estados Unidos, no contexto das doenças raras. O fato de os potenciais mercados serem pequenos, por serem doenças que afetam menos de 200 mil americanos, e do preço da P&D ser mais elevado quando comparado com doenças tradicionais, resultava em poucos investimentos nessa área. Com a aprovação do Orphan Drug Act (ODA), em 1983, todo o sistema foi redesenhado para mudar esse cenário. Nessa legislação, descontos tributários equivalentes a metade dos custos de desenvolvimento, tempo estendido de exclusividade de mercado e caminhos regulatórios mais rápidos foram implementados para elevar a potencial lucratividade da indústria farmacêutica e consequentemente tornar esses mercados mais atrativos. O resultado, como pode ser observado no gráfico abaixo, é incontestável. A média de novos medicamentos lançados para doenças raras cresceu 1.530% após 1983, quando comparado com o período anterior.

No entanto, o problema das doenças raras é mais complexo do que o problema das doenças negligenciadas. Afinal, por mais que sejam doenças que afetam uma pequena parte da população, o mercado principal ainda é de países desenvolvidos e, portanto, o preço do produto final pode ser elevado, compensando o pequeno número pacientes. Mudanças muito mais bruscas serão necessárias para ajustar o sistema de incentivos do mercado de medicamentos de doenças negligenciadas.

Os chamados AMCs (Advance Market Commitments) surgem como uma possível solução. Nada mais são do que um compromisso de compra realizado por um governo ou organização internacional de uma tecnologia que ainda não existe. Os critérios técnicos, o preço e as quantidades de compra são estabelecidos para que os agentes privados busquem o desenvolvimento da tecnologia desejada. Dessa forma, cria-se uma garantia de que haverá mercado e que o investimento em P&D será retornado. Exemplos passados como o promovido pelo GAVI (Global Alliance for Vaccines and Immunization), visando desenvolver vacinas pneumocócicas, atestam a efetividade dessa iniciativa. Outros desenhos, como o estabelecimento de prêmios financeiros para o desenvolvimento de uma tecnologia, são uma alternativa já largamente testada. Como exemplo, há o X Prize Challenge, focado no desenvolvimento de um método de diagnóstico para tuberculose.

Vouchers de aumento de tempo de patente são uma solução ainda não testada. Poucos aspectos são mais valiosos para indústria farmacêutica do que as patentes e o tempo de exclusividade de mercado. Caso uma indústria desenvolva uma tecnologia que atenda as necessidades estabelecidas, um voucher de aumento de tempo de patente poderia ser fornecido. A indústria poderia escolher utilizar em um dos seus outros produtos ou até mesmo comercializá-lo. Essa é uma solução que, diferente das anteriores, não depende do financiamento direto de países desenvolvido ou de organismos internacionais, mas que ainda assim é um potente incentivo. Utilizado no medicamento certo, a extensão do tempo de patente pode levar a retornos bilionários, compensando pela P&D de um medicamento não lucrativo para uma doença negligenciada.

Os resultados de um mercado são consequência dos incentivos que moldam as ações dos agentes econômicos nele presentes, mude os incentivos e mudará os resultados. Todas essas estratégias são somente uma tentativa de criar um meio fértil para inovação. Há falhas de mercado em diversos setores, mas na área da saúde as consequências podem ser milhões de mortes evitáveis. Na próxima coluna desta série, conversaremos sobre mais uma importante falha do mercado farmacêutico: por que temos cada vez mais doenças e mortes causadas por resistência microbiana e ainda assim não há desenvolvimento de novos antibióticos?

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