Capitalismo, mercado e democracia são racistas ou antirracistas?

O debate sobre racismo e sobre como combatê-lo felizmente vem crescendo. Entre as discussões abordadas mais recentemente, uma é sobre a viabilidade do capitalismo ser congruente a uma luta contra o racismo. De um lado, pessoas defendem reformas legais e apostam na mudança dos vieses da sociedade. Do outro, afirmam que a luta antirracista perpassa por uma luta anticapitalista, ou seja, a existência da propriedade privada implica em instituições racistas, sendo necessário o seu fim. Neste texto, trago alguns pontos do porquê essa segunda hipótese parece ser falha.

Vou dividir o texto em seis pontos:

1) Análises que tratam o capitalismo como um único tipo de instituição de maneira genérica são rasas e ignoram a heterogeneidade das instituições.

2) Instituições são diversas e podem assumir várias formas com o tempo, ainda que mantenham as mesmas características fundamentais. É preciso olhar para os indivíduos que formam e reagem às leis e regras (instituições), ao invés de apenas tentar atrelar um caráter moral a um ente abstrato.

3) Análises baseadas no materialismo marxista e nas leis gerais da economia são limitadas.

4) Qualquer análise que aponte que X está associado a Y necessariamente deve apresentar algum tipo de evidência que comprove correlação e causalidade. Além disso, instituições racistas são anteriores ao capitalismo. As raízes das discriminações como um todo vão muito além de um único sistema institucional.

5) O mercado reflete as preferências dos consumidores, empresários e investidores. Não seria exagero algum afirmar, portanto, que varia com a cultura. Parece consistente dizer que a competição entre firmas pode afetar negativamente estratégias de discriminação racial, porém isso não quer dizer que o mercado sozinho é capaz de solucionar o problema de discriminação.

6) Conclusão: nem o capitalismo e nem a democracia são intrinsecamente racistas, ou não-racistas. No fundo, eles apenas refletem, em algum nível, as preferências dos consumidores e dos votantes. Os agentes a quem devemos direcionar maior atenção são os grupos com poder de facto. No entanto, como estes são heterogêneos, analisar de forma genérica sem considerar a diversidade da composição das leis faz pouco sentido.

1) Análises que tratam o capitalismo como um único tipo de instituição de maneira genérica são rasas e ignoram a heterogeneidade das instituições.

Análises afirmativas sobre o caráter do capitalismo não costumam ser exatamente caracterizadas pelas suas profundidade e inteligência. A democracia e o capitalismo são instituições diversas, existem democracias liberais e “iliberais”, capitalismos de compadrio, patrimonialistas, nacionalistas, etc. Nos estudos sobre instituições mais atuais, é muito comum observar a divisão entre instituições inclusivas (onde há maior distribuição de poder e limites a ações arbitrárias do Estado) e instituições extrativistas (onde existe uma concentração de poder em uma elite que pode exercê-lo de forma arbitrária). Mesmo essas são complexas, têm subdivisões e muitas apresentam características ambíguas, como liberdades econômicas, mas extremas restrições à liberdade de expressão, má distribuição de renda e nenhuma liberdade política.

No trecho do artigo “The Rise and Decline of General Laws of Capitalism“, Daron Acemoglu argumenta:

Devemos notar neste ponto que acreditamos que o termo capitalismo não é útil para os propósitos de análise econômica ou política comparada. Ao focar na propriedade e na acumulação de capital, esse termo se desvia das características das sociedades que são mais importantes para determinar seu desenvolvimento econômico e a extensão da desigualdade. Por exemplo, tanto o Uzbequistão quanto a Suíça moderna têm propriedade privada de capital, mas essas sociedades têm pouco em comum em termos de prosperidade e desigualdade porque a natureza de suas instituições econômicas e políticas são nitidamente diferentes. Na verdade, a economia capitalista do Uzbequistão tem mais em comum com a Coreia do Norte declaradamente não capitalista do que a Suíça, como argumentamos em Acemoglu e Robinson (2012).”

Esse é um ponto importante. Como é possível comparar os Estados Unidos com leis como a Jim Crow, que tornava o racismo institucionalizado, ou a África do Sul com o Aparthaid, com os mesmos países hoje? Como tratar de forma igual estados onde há boa regulamentação de venda de drogas, cotas raciais e políticas inclusivas com os estados que não realizam nenhuma dessas ações? O fato é que existe uma grande diferença entre essas formas de capitalismo e democracia. Talvez uma forma de superar esse problema seja analisar mais diretamente as leis e regras que acentuam, diminuem ou mantêm as desigualdades, ao invés do tratamento genérico.

2) Instituições são diversas e podem assumir várias formas com o tempo, ainda que mantenham as mesmas características fundamentais. É preciso olhar para os indivíduos que formam e reagem às leis e regras (as instituições), ao invés de apenas tentar atrelar um caráter moral a um ente abstrato.

Embora a tentativa de atrelar a uma instituição genérica o título de racista não seja, a priori, errada, claramente instituições não agem, mas sim indivíduos. Tratar conceitos abstratos como dotados de razão e vontade pode levar a conclusões pouco precisas, como a que nos leva a acreditar na hipótese de acordo com a qual o racismo é intrínseco à propriedade privada. Nesse ponto, é necessário perguntar-se como as instituições são criadas?

Recorro aqui a Douglass North, prêmio Nobel de economia por seus trabalhos nessa área. Em seu esquema teórico, é possível determinar que os modelos mentaiscrenças compartilhadas ou constructos subjetivos que regem a sociedade, as elites, os grupos de pressão, as minorias organizadas, são responsáveis por moldar leis e regras das instituições formais, como o Estado, ao mesmo tempo em que o próprio Estado pode moldar esses modelos mentais.

O diagrama foi apresentado pelo professor Herton Castiglioni no artigo “Instituições e crescimento econômico: os modelos teóricos de Thorstein Veblen e Douglass North“.

A partir dele é razoável afirmar que as instituições “são” mais ou menos racistas ao refletirem as preferências dos grupos que desenham as suas regras. Como na democracia liberal muitos grupos influenciam essa composição, é normal notar que podem existir concomitantemente regras que aumentam, junto a regras que minimizem o racismo. Isso, mais uma vez, reforça o argumento de que não faz sentido tratar de forma genérica e sim observar diretamente tanto o impacto de certas leis como os grupos que as criam.

O viés racial da sociedade pode se alterar no tempo, alterando as instituições e as instituições também alteram a sociedade. Isso explica a forte mudança de países onde a relação entre pessoas de etnias e religiões diferentes se dá de forma completamente diferente hoje, mesmo com a manutenção da propriedade privada (Alemanha e África do Sul, por exemplo).

3) Análises baseadas no materialismo marxista e nas leis gerais da economia são limitadas.

A abordagem institucionalista difere bastante das análises marxistas tradicionais. Por terem uma abordagem materialista em relação às instituições, os marxistas atrelam como variável determinante da superestrutura, das relações sociais como um todo, os aspectos materiais da sociedade, muitas vezes de forma genérica, como a existência ou não de propriedade privada. Dessa forma, eles subjugam o papel das crenças, dos modelos mentais, como variáveis explicativas da forma como a sociedade funciona como um todo (isso é bem explícito quando se observa a virada materialista que Marx faz da dialética em relação a sua proposição original idealista feita por Hegel, que destacava o papel das ideias como determinantes da explicação do rumo da história). Por mais que eles não neguem o papel das ideologias e da cultura, acusando quem faz isso de marxista vulgar, eles as consideram como determinadas pela maneira de produção.

Não por coincidência, as tentativas de associar ao capitalismo um perfil essencialmente discriminatório é comum entre os marxistas, dado que sua abordagem não diferencia de forma eficiente os tipos de instituições, nem entende como a heterogeneidade temporal e espacial das ideias afetam as instituições formais e informais, o modo de produção e a cultura. Um exemplo disso foi a sua dificuldade de explicar a ascensão do nazifascismo entre os trabalhadores, ao invés de uma união internacional da classe (em Frankfurt, autores originalmente marxistas, como Adorno e Horkerheimer, criam explicações cada vez mais afastadas do marxismo “ortodoxo” que influenciaram toda a esquerda no séc XX).

Sobre o materialismo, Marx parece deixar isso claro no livro “A Contribution to the Critique of Political Economy”, quando diz:

“A soma total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade — o verdadeiro fundamento, sobre o qual se erguem as superestruturas jurídicas e políticas e às quais correspondem formas definidas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o caráter geral dos processos sociais, políticos e espirituais da vida. Em certo estágio de seu desenvolvimento, as forças materiais de produção na sociedade entram em conflito com as relações de produção existentes ou — o que é apenas uma expressão legal da mesma coisa — com as relações de propriedade nas quais haviam trabalhado antes. De formas de desenvolvimento das forças de produção, essas relações tornam-se grilhões. Então chega a época da revolução social. Com a mudança da base econômica, toda a imensa superestrutura é mais ou menos transformada rapidamente.”

Lukács aprofunda essa discussão no livro “A ontologia do ser social”, ao explicitar o conceito de prioridade ontológica:

“Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. É o que ocorre com a tese central de todo materialismo, segundo a qual o ser tem prioridade ontológica com relação à consciência. Do ponto de vista ontológico, isso significa simplesmente que pode haver ser sem consciência, enquanto toda consciência deve ter como pressuposto, como fundamento, algum ente.”

“O mesmo vale, no plano ontológico, para a prioridade da produção e da reprodução do ser humano em relação a outras funções. Quando Engels, em seu discurso fúnebre a Marx, fala do “fato elementar […] de que os homens precisam em primeiro lugar comer, beber, ter um teto e vestir-se, antes de ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religião, etc.”

“O próprio Marx o afirma com clareza no prefácio a “Sobre a crítica da economia política”. É sobretudo importante o fato de ele considerar “o conjunto das relações de produção” a “base real” a partir da qual se explicita o conjunto das formas de consciência; e que estas, por seu turno, são condicionadas pelo processo social, político e espiritual da vida. Ele sintetiza isso assim: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. Desse modo, o mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social. A determinação da consciência pelo ser social, portanto, é entendida em seu sentido mais geral.”

A prioridade ontológica criada pelo materialismo histórico dialético é um dos muitos conceitos marxistas que julgam errado as tendências históricas, desvalorizando o papel das ideias e outros fatores, sobrevalorizando o papel ontológico materialista do valor, do trabalho e do modo de produção como um todo. Dessa forma, generalizam diversos aspectos heterogêneos que alteram a compreensão da essência dos fenômenos sociais.

Com isso, retorno ao primeiro ponto onde Acemoglu faz uma crítica às generalizações e às tentativas de alguns teóricos, como os marxistas, de tentarem encontrar leis gerais intrínsecas ao capitalismo.

Marx desenvolveu uma teoria da história rica e matizada. Mas a peça central desta teoria do “materialismo histórico” repousava em como os aspectos materiais da vida econômica, juntamente com o que Marx chamou de “forças de produção” — particularmente a tecnologia — moldaram todos os outros aspectos da vida social, econômica e política, incluindo as “relações de produção”. Por exemplo, Marx afirmou em seu livro “The Poverty of Philosophy”, de 1847, que “o moinho manual dá a você sociedade com o senhor feudal; a sociedade do moinho à vapor com o capitalista industrial”(…) Aqui, o moinho manual representa as forças de produção, enquanto o feudalismo representa as relações de produção, bem como um conjunto específico de arranjos sociais e políticos.

“Em suma, as leis gerais de Marx, como aquelas antes dele, falharam porque se baseavam em uma concepção da economia que não reconhecia a evolução endógena da tecnologia e o papel das instituições econômicas e políticas mutantes, moldando a tecnologia e os preços dos fatores. Na verdade, mesmo a ênfase de Marx no papel definidor das forças de produção, tão emblemática de sua abordagem, era frequentemente inadequada não apenas como o motor da história, mas também como uma descrição da história, incluindo seu exemplo paradigmático de moinhos manuais e à vapor. Por exemplo, Bloch (1967) argumentou persuasivamente que o moinho manual não determinava a natureza da sociedade feudal, nem o moinho à vapor determinava o caráter do mundo pós-feudal.”

4) Qualquer análise que aponte que X está associado a Y necessariamente deve apresentar algum tipo de evidência que comprove correlação e causalidade.

Alguém pode argumentar que a instituição X gera o impacto Y. Por exemplo, democracias geram a exclusão dos negros. Porém, como provar esse ponto? A simples existência do racismo nos países onde isso acontece implica correlação? A resposta é não. A correlação só pode ser determinada ao se verificar uma amostra de países e demonstrar que o feito Y é mais ou menos presente em X. Ainda assim, precisamos verificar se além de correlação há causalidade, se realmente X causa Y. O mesmo vale para a análise que considero mais adequada, que seria observar diretamente o impacto de leis específicas em determinadas culturas. Sem esse cuidado, estamos sujeitos a falácia de falsas correlações ou correlações espúrias.

Um fato óbvio, mas às vezes esquecido, é que muitas das instituições e teorias racistas nasceram antes mesmo da existência do capitalismo. Irapuã Santana em seu texto para a Folha sobre o assunto escreve que:

“O capitalismo, sistema econômico cujo objetivo principal é a geração e circulação de riquezas, surge com a queda do feudalismo, o início dos Estados e a ascensão da burguesia, emergindo no período marcado notadamente pela primeira Revolução Industrial, no século 18. Por sua vez, a vinda das primeiras pessoas escravizadas para o Brasil começa em meados do século 16. Esse quadro demonstra que as teorias racistas que justificavam a escravização de pessoas negras surgiram em um período muito anterior ao advento do capitalismo. Assim, o sistema escravista e o capitalista são, em origem e conteúdo, completamente diferentes.”

É claro que os impactos da escravidão se perpetuam até hoje, inclusive sendo medidos em diversos trabalhos como o de Nathan Nunn, onde ele mensura e demonstra que os países africanos mais afetados pela escravidão até hoje sofrem com impactos sociais e econômicos derivados disso. Nesse sentido, mesmo instituições colonialistas tiveram seu impacto reduzido com o tempo, o que demonstra que afirmar uma relação positiva entre capitalismo e racismo é frágil também nesses termos. As raízes das discriminações como um todo vão muito além de um único sistema institucional.

No próximo ponto em que analiso a relação entre mercados, instituições formais e a discriminação, os artigos citados não caem na falácia de correlação espúria.

5) Algumas análises empíricas.

Apesar do tratamento genérico do capitalismo e suas leis intrínsecas me parecer bastante inadequado, ainda assim, podemos fazer o exercício mental de imaginar um mercado ideal com certos pressupostos genéricos como a busca por lucro, desconsiderando o papel da regulação do governo. Pensando dessa forma, podemos afirmar que o mercado é intrinsecamente racista ou antirracista? Analisando algumas pesquisas dessa área, parece-me mais preciso afirmar novamente que o mercado reflete a preferência dos consumidores, sendo impossível associar um recorte étnico intrínseco a esse tipo de organização.

No artigo, “Are Emily and Greg More Employable than Lakisha and Jamal? A Field Experiment on Labor Market Discrimination” os autores Marianne Bertrand e Sendhil Mullainathan realizam um experimento em que são enviados currículos fictícios com conteúdos parecidos onde há apenas uma mudança nos nomes. Alguns apresentam nomes associados a pessoas negras e outros a brancas. Os autores concluem que os currículos com nomes de brancos precisam enviar 10 currículos para receber um retorno, ao passo que o com nome de negros precisam enviar 15 currículos para ter um retorno. No total, os autores responderam a mais de 1.300 anúncios de emprego nas categorias de vendas, suporte administrativo, escritório e serviços ao cliente, enviando quase 5.000 currículos.

Outro ponto é que nos currículos em que o candidato morava em um bairro mais rico, mais educado ou mais branco a taxa de retorno de chamadas era maior, independente da raça. Além disso, quando os empregadores estão localizados em um bairro negro a discriminação é menor.

Essa pesquisa mostra claramente a existência de racismo em parte do mercado americano. Ao mesmo tempo, ela também já aponta para o argumento que o mercado reflete de alguma forma a preferência dos consumidores e/ou dos contratantes. Aprofundando a questão, seria lucrativo para o mercado discriminar?

Os estudos sobre os impactos da discriminação são antigos. Em 1957, o prêmio Nobel de economia Gary Becker propôs um modelo teórico sobre isso no artigo “The Economics of Discrimination”. Nas suas formulações iniciais, a hipótese era a de que a discriminação impõe custos ao empregador, pois estes não estariam focando nas características relevantes que impactam a produtividade. Dentro de um mercado competitivo, as firmas não racistas estariam com uma estratégia mais racional aos negócios, logo a tendência natural é a de que firmas que discriminam tenham impactos negativos. O contínuo registro de discriminação pelos empregadores levou a uma reformulação da teoria ainda em 1973 com Keneth Arrow no artigo “The Theory of Discrimination”. Mercados nem sempre são competitivos, gerando problemas como assimetrias de informação e concentração de poder de mercado, que fazem com que estratégias irracionais, como da discrimiação étnica, de gênero e religiosa, permaneçam presentes.

Alguns estudos recentes corroboram esse esquema teórico. No artigo, “Are Firms That Discriminate More Likely to Go Out of Business?“, Devah Pager testa a hipótese de que haveria maior probabilidade de firmas que discriminam falirem. Primeiramente, foram selecionados grupos de 30 homens brancos, negros e latinos para procurarem emprego em 2004, em Nova York. A taxa de retorno de chamadas ou ofertas de emprego foi de 30% para brancos, 27% para latinos e 15% para negros. Com isso, o estudo não só registra a discriminação como cria um dado sobre quais firmas tendem a discriminar mais.

Com dados de 2010, o estudo passou a verificar quais dessas firmas permaneceram no mercado. Crises econômicas geram uma limpeza de estratégias ineficientes do mercado. Nesse sentido, a crise de 2008 favoreceu o estudo. O resultado encontrado foi de que 16% dos estabelecimentos que não discriminavam saíram do mercado, enquanto dos estabelecimentos que discriminavam, 36% saíram do mercado. Para verificar se efetivamente há causalidade (se a correlação não é espúria) foram adicionadas variáveis sobre o tamanho das firmas e os ativos de vendas estimados. A variável sobre discriminação permaneceu significativa (p-valor < 5%).

Isso indica que firmas que discriminam os empregados tendiam a ter um desempenho pior. A única limitação do estudo é a de que as amostras não são muito grandes.

Um caso icônico envolvendo racismo nos EUA que também ilustra a teoria de Becker é a relação de Michael Jackson e a MTV. Até os anos 80 a MTV praticamente não transmitia clips de pessoas negras. Com o sucesso de Michael Jackson com Thriller e a pressão de sua gravadora, seu clip com mais de 10 minutos passou a ser veiculado no canal. Tentar ignorar o sucesso de cantores negros por puro racismo era uma estratégia irracional que causava prejuizo à própria empresa. O crescimento desses artistas era tão expressivo que as gravadoras e a própria MTV não puderam mais o ignorar ou amargariam a falência. Michael Jackson, até hoje, é considerado o artista que salvou a companhia.

Ainda podemos usar o mesmo modelo para analisar outras formas de discriminação como a de gênero.

No artigo intitulado, “Market Forces and Sex Discrimination“, os autores Judith K. HellersteinDavid Neumark e Kenneth R. Troske encontram evidências de que, entre as firmas com alto poder de mercado (menos competição), as que contratavam mais mulheres tinham um nível maior de lucro, porém, numa janela de 5 anos, não foi possível registrar a falência das empresas que discriminavam mulheres.

Já no caso das firmas com menor poder de mercado (quando há maior pressão competitiva) não foi resgistrado discriminação de gênero. O resultado é que a competição entre firmas dimui a discriminação e que a estratégia de discriminação gera menos lucro. O governo deve agir aumentando a competição ou intervindo diretamente quando há pouca competição.

É interesante também comparar o papel da discriminação religiosa em dois tipos de instituições, a de uma democracia liberal com a de um país nacionalista, nesse caso a França e a Alemanha.

No final do séc XIX, Alfred Dreifus, um capitão judeu do exército, foi injustamente condenado por traição. Esse evento gerou um aumento do antissemitismo na França. No artigo “J’Accuse! Antisemitism and Financial Markets in the time of the Dreyfus Affair”, os autores revelam que inicialmente esse evento gerou prejuízos às empresas que tinham um conselho com integrantes judeus. Posteriormente, foram publicados panfletos que defendiam a inocência de Alfred Deirfrus, que mais tarde foi declarado inocente. O estudo observa o papel da mídia e dos vieses cognitivos dos investidores nos investimentos. Inicialmente, os dados mostram que o aumento do antissemitismo gerou prejuízo às empresas com judeus no conselho, porém com a divulgação de sua possível inocência as mesmas empresas começaram a ter retornos acima do normal.

O estudo revela dois pontos. Efetivamente, o viés cognitivo (o modelo mental) dos investidores afeta a forma como eles observam os investimentos e isso pode ter reflexo no mercado. Além disso, a hipótese relacionada a Gary Becker, de que os investidores com os modelos mentais corretos podem perceber os erros dos outros investidores e ter ganhos investindo nessas empresas, também se mostraram verdadeiras.

Já no caso alemão há uma forte diferença. A discriminação, além de estar presente na sociedade, foi acentuada por leis antissemitas introduzidas entre 1933 (leis de serviço civil e cidadania) e 1935 (leis raciais de Nuremberg). Essas leis regulavam a perda de direitos civis, direito à cidadania alemã, casamento entre raças, etc. Além disso, o governo beneficiava firmas com relações próximas ao partido nazista. No artigo “Discrimination, Managers, and Firm Performance: Evidence from “Aryanizations” in Nazi Germany”, fica evidenciado que após a lei de Nuremberg, firmas vistas como “judias” tiveram uma queda no seu valor de mercado. Parte dessa queda foi devido a perda de gerentes judeus. Os valores caíram até 1939, e voltaram ao antigo patamar em 1943, provavelmente porque essas firmas deixaram de ser vistas como “judias”.

As empresas que sofreram com a saída de gerentes/diretores judeus continuaram com os seus valores persistentemente baixos por pelo menos 10 anos. O lucro, a eficiência e o valor de mercado das empresas foram negativamente afetados. As empresas que perderam gerentes judeus sofreram mais que as não judias. Pelo nível de educação e experiência, as empresas não conseguem realocar outros trabalhadores com facilidade. Um ponto importante é que, nesse caso, as perdas também são maiores em mercados mais competitivos.

Esse caso difere dos outros pois, virtualmente, não existia a opção das empresas não discriminarem, tanto pelo nível de perseguição do Estado quanto pela visão dos consumidores. A perseguição foi institucionalizada, as empresas com ligações com o partido nazista tinham performaces diferentes. O artigo prova que ainda nesse estado catastrófico os pressupostos de Becker sobre as perdas de eficiência continuam válidos. No entanto não havia como, nem teria retorno, as firmas seguirem uma estratégia de não discriminação. Além disso, o viés cognitivo da sociedade afeta as escolhas do mercado e o desenho das instituições.

Novamente, fica explícito que mesmo assumindo uma definição de mercado bem específica, como a busca por lucro, é difícil associar ao mercado um caráter moral de ser racista ou antirracista. O que fica claro é que este reflete, direta ou indiretamente, as preferências dos consumidores, empresários e investidores. Sendo assim, isso vai variar com a cultura, assim como as instituições como um todo, sendo ela moldável através da cultura vigente. Em certos aspectos, parece consistente dizer que a competição entre firmas pode afetar negativamente estratégias de descriminação racial, porém isso não quer dizer que o mercado sozinho é capaz de solucionar o problema de discriminação, apenas que tem um papel relevante nisso.

Conclusão

Nem o mercado nem o capitalismo ou a democracia liberal são intrinsecamente racistas ou antirracistas. No fundo, estes apenas refletem as preferências dos consumidores, dos votantes ou dos grupos com poder de facto. Como os grupos que influenciam são heterogêneos, analisar de forma genérica, sem considerar a diversidade da composição das leis, faz pouco sentido na maioria dos casos. A ideia de abandonar instituições que geram riqueza, progresso e liberdade, em vez de reformá-las, parece não fazer sentido.

Referências

Becker, Gary. 1957. The Economics of Discrimination. Chicago: University of Chicago Press7

Acemoglu, Daron, & James A. Robinson. 2015. “The Rise and Decline of General Laws of Capitalism.” Journal of Economic Perspectives, 29 (1): 3–28.

Acemoglu, Daron & Johnson, Simon & Robinson, James. (2004). Institutions as the Fundamental Cause of Long-Run Growth. C.E.P.R. Discussion Papers, CEPR Discussion Papers

Judith K. Hellerstein & David Neumark & Kenneth R. Troske, 2002. “Market Forces and Sex Discrimination,” Journal of Human Resources, University of Wisconsin Press, vol. 37(2), pages 353–380.

Kilian Huber & Volker Lindenthal & Fabian Waldinger, 2019. “Discrimination, Managers, and Firm Performance: Evidence from “Aryanizations” in Nazi Germany,” CEP Discussion Papers dp1599, Centre for Economic Performance, LSE

MASELAND, R. (2018). Is colonialism history? The declining impact of colonial legacies on African institutional and economic development. Journal of Institutional Economics, 14(2), 259–287. doi:10.1017/S1744137417000315

Mullainathan, Sendhil & Bertrand, Marianne. (2004). Are Emily and Greg More Employable Than Lakisha and Jamal? A Field Experiment on Labor Market Discrimination. American Economic Review. 94. 991–1013. 10.2139/ssrn.422902.

Nunn N. The Long Term Effects of Africa’s Slave Trades. Quarterly Journal of Economics. 2008; 123 (1) : 139–176.

North Douglass C. (2018) Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico — São Paulo Três Estrelas.

Pager, Devah. 2016. “Are Firms That Discriminate

More Likely to Go Out of Business?” Sociological Science 3: 849–859

Quoc-Anh Do & Roberto Galbiati & Benjamin Marx & Miguel Ortiz Serrano, 2020. “J’Accuse! Antisemitism and Financial Markets in the Time of the Dreyfus Affair,” Sciences Po publications 2020–08, Sciences Po.

O capitalismo pode ser antirracista

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Publicado originalmente aqui.

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