As duas faces do progresso: o privado e o público no desenvolvimento farmacêutico

O início dos anos 80 trouxe um evento que marcou uma geração. Médicos em São Francisco e Nova York começavam a identificar um estranho padrão, homens jovens e saudáveis buscando auxílio médico para tratar infecções oportunistas. A Pneumonia e o Sarcoma de Kaposi eram raros naquela população, o que indicava que uma misteriosa deficiência imunológica estava afetando esses pacientes. Em 1981, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) emitia um alerta, informando toda a comunidade médica do novo padrão. Dois anos depois batia-se o martelo, o vírus da Aids havia sido identificado pela primeira vez. Tudo indica que já circulava em solo americano há uma década e estudos recentes demonstram que foi originado do Congo, onde foi transmitida de um chipanzé para um caçador, no final do século XIX 1.

Dois anos após a identificação, em 1985, dentro dos laboratórios da farmacêutica Wellcome Research, atualmente GSK, formava-se um time voltado para o desenvolvimento do primeiro antirretroviral para tratar o recém-descoberto HIV. A empresa já tinha experiência na área, afinal no mesmo ano havia registrado o Aciclovir, que viria a ser uma revolução no tratamento antiviral. A molécula escolhida para seguir em frente foi a Zidovudina (AZT), que curiosamente não havia sido sintetizada pela empresa. No contexto em que a sociedade americana se mobilizava contra o câncer e bilhões de dólares eram investidos pelo governo para financiar pesquisas por novos antineoplásicos, o químico Jerome Horwitz, no Michigan Cancer Foundation, sintetizaria pela primeira vez o AZT. A molécula não apresentou atividade contra tumores e se tornaria somente uma memória em um artigo publicado. Duas décadas depois, a droga, descoberta eu um laboratório público e financiada por uma bolsa pública, seria patenteada por uma indústria farmacêutica e se tornaria um dos mais importantes medicamentos da história, trazendo esperança para uma doença que à época era um diagnóstico de morte.

Histórias como essa não são incomuns. O impacto positivo da pesquisa financiada pelo setor público no desenvolvimento farmacêutico é consenso entre diversos autores. Os National Institutes for Health (NIH) talvez sejam um dos exemplos mais notáveis. Com mais de 48 bilhões de dólares investidos em pesquisa médica por ano, esse braço do Department of Health and Humam Services, o Ministério da Saúde americano, financiou algumas das mais importantes descobertas do século, como a pesquisa de Jerome Horwitz que levou a Zidovudina.

Um estudo de 2018 identificou que 198 das 210 novas moléculas aprovadas pelo FDA entre 2010 e 2016, e todos os novos alvos terapêuticos utilizados por essas novas drogas, possuíam alguma pesquisa financiada pelo NIH como fundamentação. Grande parte eram pesquisas de base, onde não se mencionava diretamente essa nova droga ou alvo terapêutico, mas que foram parte importante da construção do conhecimento que levou à sua descoberta. O desenvolvimento de novas drogas hoje é direcionado, sabemos um alvo terapêutico e buscamos desenhar uma molécula que se encaixe nele. Décadas atrás a realidade era outra, novas descobertas eram baseadas na sorte ou na testagem quase industrial de milhares de moléculas para identificar uma que possuísse ação terapêutica. Com um alvo em mãos, sintetizar uma molécula que o ative é uma tarefa mais simples para a indústria.

No entanto, esse impacto positivo do financiamento público não se repete na descoberta direta de novas drogas. Menos de 10% dos novos medicamentos aprovados pelo FDA vieram de algum laboratório público. Fato é que o medicamento que você consome tem grande possiblidade de ter sido sintetizado em um laboratório dentro de uma indústria farmacêutica utilizando conhecimento proveniente de pesquisa de base financiada pelo setor público.

Dessa forma, o processo padrão de descoberta de novos medicamentos é muito mais parecido com a descoberta do Captopril do que com a da Zidovudina. O Captopril é um importante medicamento anti-hipertensivo, aprovado em 1981 pela Bristol Myers Squibb, como o primeiro de sua classe. Décadas de pesquisa de base foram necessárias para os cientistas dentro da Squibb tivessem os meios para desenvolver essa droga. A elucidação do mecanismo fisiológico que regula nossa pressão arterial, o conjunto de reações conhecidas como sistema renina-angiotensina-aldosterona, é um exemplo. Porém ainda mais importante é a descoberta do médico brasileiro Sérgio Ferreira, que isolou uma proteína presente no veneno da cobra Jararaca, que aparentava reduzir a pressão arterial de quem fosse picado. A Bradicinina, como ela foi chamada, não era apropriada para se tornar um medicamento por razões químicas. No entanto, viria a se tornar a base molecular para os cientistas da Squibb, após testes como mais de 2000 moléculas diferentes, sintetizarem o primeiro anti-hipertensivo.

Assim, o desenvolvimento farmacêutico é fruto da união de dois sistemas de incentivos que coexistem, cooperam e interdependem. O setor público custeando a pesquisa de base e a iniciativa privada financiando a pesquisa aplicada. O desenho de cada sistema cria os incentivos para determinado tipo de atividade. Dentro de um laboratório universitário, financiado por uma bolsa de pública, pode-se se ter o luxo de utilizar investimento para explorar algo sem a necessidade de retorno financeiro. A compreensão da nossa fisiologia e patologia são um produto de mentes que se dedicaram décadas a uma pesquisa exploratória sem a intenção de criar um produto, movidas somente por uma ânsia pela descoberta.

Por outro lado, dentro de uma indústria farmacêutica a necessidade de retorno financeiro cria a necessidade da geração de um produto. Por mais que a pesquisa de base de qualidade também seja realizada dentro da indústria farmacêutica, a pesquisa aplicada é majoritária. Via de regra, as descobertas da pesquisa de base não possuem nenhum impacto direto na qualidade de vida das pessoas. Assim, a inciativa privada tem o importante papel de transformar uma descoberta científica em um produto que de fato pode mudar vidas.

Um estudo de 2010 identificou que para a descoberta de 35 drogas selecionadas, a iniciativa privada contribuiu com 34 avanços científicos significantes de pesquisa aplicada e com 7 de pesquisa básica. Enquanto isso, uma análise econométrica identificou que um aumento de investimento em pesquisa básica de 1% no NIH pode levar a um aumento de 1,8% na quantidade de novas moléculas aprovadas pela indústria farmacêutica. O sistema funciona quase que como uma mimetização da teoria das vantagens comparativas da David Ricardo, onde a cooperação leva à especialização em atividades nas quais se tem uma vantagem comparativa, trazendo benefícios mútuos.

A combinação dessa realidade com o apresentado no meu último texto neste site forma a coluna vertebral do desenvolvimento farmacêutico no último século. O massivo crescimento da expectativa de vida nas últimas décadas é fruto da união de um ambiente econômico propício para a tomada de risco, que proteja a propriedade privada e crie incentivos para inovação, com um setor público com poder para investir em pesquisa de base. A indústria farmacêutica depende do setor público assim como o setor público depende da indústria farmacêutica e ambos são fruto de um bom desenho institucional.

É difícil não perceber que o cenário aqui descrito é o oposto da realidade brasileira. Durante décadas gestamos um ambiente político e econômico pouquíssimo atrativo para tomada de risco e unimos isso a um estado incapaz de investir quantias significativas em pesquisa e desenvolvimento. A realidade descrita na última coluna, do caldeirão de pequenas empresas de biotecnologia altamente inovadoras, jamais poderia se repetir no Brasil. Possuímos um dos créditos mais caros do mundo, baixíssima proteção à propriedade privada, um sistema educacional que não evolui há décadas e um sistema político que gera um ambiente legal imprevisível. O mundo enxerga o Brasil como um local indigesto ao investimento. E não sem fundamentação, afinal estamos posicionados em número 124 no ranking de facilidade de fazer negócio do Banco Mundial. É mais fácil abrir um negócio no Djibouti do que no Brasil.

Junte a isso a notória incapacidade da nossa administração pública de investir em ciência e tecnologia. Entre 2013 e 2020, reduziu-se o orçamento federal em 37%, de 27 para 17 bilhões. Assim como o financiamento da CNPq, CAPES e FNDCT que despencou de 12 bilhões em 2015 para menos de 5 bilhões em 2020. Naturalmente, somos um país pouquíssimo inovador. Esse cenário se reflete na realidade geral do Brasil. É consenso que investimento em P&D e capacidade inovativa estão fortemente relacionados com ganhos de produtividade. O Brasil sofre com uma produtividade do trabalho estagnada há pelo menos três décadas e sem o bônus demográfico não há outra saída para alcançar crescimento econômico sustentável. Cria-se, portanto, um ciclo que se retroalimenta. Não inovamos já que não temos capacidade econômica para tal e não nos desenvolvemos porque não inovamos.

Ver a evolução tecnológica do mundo estando no Brasil é como ser um dos prisioneiros da Alegoria da Caverna de Platão. Vemos somente as sombras, uma projeção da realidade. Salvo raras exceções, estamos sentados na cadeira de expectadores, nunca somos os protagonistas. Essa realidade é fruto de decisões que estamos tomando desde a nossa formação. Nossa improdutividade é uma escolha reafirmada a séculos.

1. David Quammen – Contágio: Infecções de origem animal e a evolução das pandemias, p. 360.

.

Leia também:
Uma análise crítica da Teoria das Origens Legais
Como o direito afeta o desenvolvimento econômico?
Como um filósofo criou a economia contemporânea
A abordagem cultural de Albert Hirschman sobre a desigualdade entre os países

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público