Não há responsabilidade social sem responsabilidade fiscal

Durante a eclosão da maior crise sanitária em 100 anos, gerou-se um consenso espontâneo que seria tolerável os países se endividarem para conter o avanço da pandemia do coronavírus, se isto fosse necessário para financiar um sistema de proteção social que resguardasse a população em um momento em que o distanciamento social era crucial.

Passados quase 3 anos, o advento de uma vacinação específica ao Covid-19 e a adaptação do comportamento humano a essa doença tem nos permitido vislumbrar um retorno às condições de normalidade de antes. Com isso, estas concessões naturais quanto ao limite de gastos públicos têm se dissipado cada vez mais, mostrando que também é chegada a hora que os governos sinalizem como retornarão a uma trajetória sustentável da dívida pública.

Pelo mundo, a notoriedade deste assunto é facilmente percebida após a dramática renúncia de Liz Truss do cargo de primeira-ministra do Reino Unido, cuja causa foi uma frustrada política fiscal percebida como não crível pelo mercado. Com cerca de apenas 6 semanas no posto, seu mandato se tornou o menor da história daquele país. 

O Brasil mostra que esta não é uma preocupação exclusiva apenas de países desenvolvidos: os últimos discursos do recém-eleito presidente Lula têm provocado inquietação no mercado ao sugerir que a disciplina fiscal não é relevante para a administração de políticas sociais.

Afinal, o quão necessária é a responsabilidade fiscal? Ela é, de fato, inconciliável com o desenvolvimento social dos países, principalmente dos chamados emergentes?

O caso dos desenvolvidos

Quando se trata da defesa da implementação de um estado de bem-estar social no Brasil, frequentemente o exemplo da Suécia é invocado no debate como um argumento favorável. Contudo, uma característica deste país pouco comentada é sua rigorosa postura com a responsabilidade fiscal – que eu diria que é até mesmo indissociável do próprio êxito de seu estado de bem-estar.

No pós-guerra, em consenso com o paradigma neokeynesiano que caracterizava economicamente o período, a política fiscal da Suécia consistia em políticas recorrentes de estímulo à demanda agregada como uma forma de se manter altos níveis de atividade, mesmo que isso significasse suportar expressivos déficits fiscais e uma consequente elevação da dívida pública. 

Em boa parte do mundo (e na Suécia não foi diferente), este modelo econômico prevaleceu até a década de 80, quando ficou claro que era impossível preservar o crescimento econômico indefinidamente a partir apenas de estímulos fiscais por parte dos governos, principalmente quando o quadro fiscal chega a níveis insustentáveis. 

Antes da guinada da Suécia à austeridade, há estimativas que seu déficit orçamentário tenha chegado a alarmantes 14,4% do PIB em 1993, o maior de todo Ocidente no ano [1]. Era inevitável uma mudança drástica na forma de se conduzir a economia, com esta mudança se iniciando com uma abrangente reforma fiscal.

Uma série de medidas foi tomada pelo governo da Suécia, em que se destaca: (i) uma reforma do sistema previdenciário, (ii) a aplicação de um teto de gastos, (iii) uma meta de dívida pública como percentual do PIB e (iv) a adesão de uma política de superávits primários [2].

A mudança para um arcabouço fiscal mais rigoroso não aparenta ter tido influência restritiva quanto ao crescimento da economia do país. Ao mesmo tempo que o montante da dívida pública declinava do nível de 75% do PIB em 1995 (o seu pico) para cerca de 40% do PIB em 2007, o crescimento da Suécia no período se situou sistematicamente acima do crescimento de países como a Alemanha, sendo até mesmo um crescimento comparável ao dos EUA.

A Suécia obteve o feito de crescer a taxas semelhantes a potências mundiais enquanto, ainda por cima, exibia uma trajetória fiscal oposta à observada nestes países, que exibiam um aumento do estoque da dívida pública como % do PIB.

Embora o fenômeno da chamada “austeridade expansionária” já tenha sido empiricamente observado [3], vale ressaltar que o argumento aqui utilizado é muito mais simples do que isso – e é até preferível manter a simplicidade para não conceder margem a tergiversações: ao contrário do prognóstico da heterodoxia brasileira, não há como assumir que uma maior austeridade fadará os países à estagnação econômica, muito menos que ela levará a uma precarização dos direitos da população, como muitos declaram [4].

Os emergentes precisam de austeridade?

Mesmo diante do modo como países desenvolvidos como a Suécia lidam com a questão fiscal, é recorrente no debate o surgimento de um outro tipo de indagação (menos rígida quanto a abordada anteriormente): se a austeridade é ou não um problema que países devem se preocupar apenas depois de se desenvolverem. 

Então, a problematização não passa a ser se a disciplina fiscal é importante, mas quando ela se torna importante a depender do status de desenvolvimento do país – no sentido que países de renda média, supostamente, necessitariam de políticas fiscais ativas e que a adesão à disciplina fiscal ocorreria em detrimento das políticas sociais necessárias.

Primeiramente, analisemos em que magnitude regras fiscais têm sido adotadas nos últimos anos por países que não são desenvolvidos.

Segundo o Fiscal Rules Dataset [5], realmente a responsabilidade fiscal era uma preocupação majoritariamente de países desenvolvidos nos primeiros anos registrados. No entanto, a partir do ano 2000, essa tendência começou a se reverter até o ponto em que uma parcela significativa não apenas dos países emergentes, mas também dos países de renda baixa, passou a incorporar regras fiscais a seus arcabouços institucionais.

Observa-se o abandono da ideia de que, de alguma forma, houvesse uma particularidade na estrutura político-econômica destes países não desenvolvidos que os tornassem incompatíveis com a sustentabilidade fiscal.

Porém, isso ainda não nos esclarece que tipos de relação a austeridade (ou, pelo menos, uma regra menos ativa de política fiscal) possui com o bem-estar das pessoas no contexto dos emergentes. Uma pista relevante para esta questão foi fornecida em um trabalho recente.

Em “Fiscal Rules and Public Investment: The Case of Peru, 2000-2019” de Mendoza et al. [6], os pesquisadores elaboraram um modelo do tipo DSGE [7] para a economia peruana durante o intervalo de tempo acima citado. Seu objetivo era analisar, sob diferentes regras fiscais, como se comportariam determinadas variáveis macroeconômicas a partir de alguns tipos de choques exógenos – como uma queda no preço das commodities ou uma elevação das taxas de juros internacionais. Contudo, os pesquisadores não se limitaram apenas a isso. A partir da especificação de uma função de bem-estar para os indivíduos da economia, também foi analisado como o nível de bem-estar se alterava diante da presença destes diferentes regimes fiscais.

Ao todo, são 3 regras fiscais que são colocadas a teste e todas já foram experimentadas no Peru em diferentes momentos entre o ano de 2000 a 2019. São elas: (i) Regra de Déficit Fiscal, (ii) Regra de Déficit Fiscal Estrutural e (iii) Regra de Déficit Corrente. Todas as 3 possuem métodos diferentes para determinar os limites do déficit do governo [8].

O resultado do estudo exibe que, em um cenário onde a Regra de Déficit Fiscal Estrutural estivesse em vigência durante todo o intervalo 2000-2019, os indivíduos gozariam de um maior bem-estar se comparados às outras regras. A principal diferença dela para as demais está no fato de que ela se baseia nos resultados estruturais do governo para definir as metas a serem alcançadas – ou seja, é uma regra acíclica que desconsidera fluxos de receitas e gastos que se originam em virtude dos ciclos econômicos, sejam períodos de boom ou períodos de recessão na economia.

O achado do bem-estar se torna relevante porque este é um tipo de regra fiscal naturalmente mais restritiva para os países emergentes, dada a alta correlação entre os gastos públicos e o PIB que se observa nesta categoria de países [9]. Isto implicaria em reduzir gastos precisamente em períodos do ciclo econômico em que os emergentes habitualmente realizam de forma mais ativa sua política fiscal.

Logo, diferentemente do senso comum, não necessariamente a imposição de regras fiscais mais rígidas levaria a uma deterioração das condições sociais da população. Pelo contrário, ao disciplinar e impedir que o país gaste mais em períodos de bonança (quando já existe um cenário externo favorável ao crescimento), permite-se a acumulação ideal de recursos para que o governo os utilize exatamente quando mais precisa em contextos mais recessivos.

Segundo o mesmo estudo citado, isto é observado justamente através de um maior nível de investimento público durante choques externos negativos – inclusive garantindo uma maior estabilidade da taxa de câmbio real e, diante de determinados choques externos, até mesmo uma maior estabilidade de gastos correntes do governo.

Conclusão

Quando observamos o mundo de forma não dogmática, não é possível identificar razões que justifiquem uma postura tão combativa contra a responsabilidade fiscal. Muito se fala na suposta inconsistência entre um país ser fiscalmente responsável e ao mesmo tempo um provedor social, porém, na realidade, o que mais encontramos é países que se apoiaram justamente na austeridade para fundamentar os pilares dos robustos programas sociais que viriam a ostentar no futuro.

A já citada Suécia é uma ótima representação disso, mas ainda poderíamos citar outros países como a própria Austrália, que, ao mesmo tempo que mantém 4 tipos de regras fiscais simultâneas (um teto para gastos, uma política de resultados primários, um teto para a razão dívida/PIB e até uma regra para arrecadação) [10], é um país cujo debate público sempre encontra espaço para fornecer a atenção necessária ao seu modelo de bem-estar social [11].

O mesmo vale para os países emergentes. A mesma regra de resultado primário estrutural citada anteriormente no caso do Peru tem sido utilizada há duas décadas com êxito pelo Chile, o país latino-americano que é um dos maiores líderes da região em termos de IDH [12], qualidade da educação [13], PIB per capita [14] e saneamento básico [15].

É natural o receio de parte da sociedade brasileira quanto a incorporar regras fiscais em suas instituições, principalmente quando consideramos a descrença que a sociedade possui nestas mesmas instituições ao presenciar por tanto tempo um problema crônico de corrupção e má utilização dos recursos públicos. Além disso, trata-se de uma sociedade que, desde a redemocratização, exibe uma forte demanda por um contrato social que englobe um generoso modelo de bem-estar.

O caminho para se extinguir este receio é apenas um: uma discussão política que abandone amarras ideológicas, que se concentre no que as evidências têm a nos fornecer, que seja possível de ser perpetuada pela sociedade e que transcenda a clássica dicotomia entre populismos de esquerda e de direita – afinal, o nosso passado recente nos mostrou que o desprezo pela responsabilidade fiscal pode partir de ambos os lados.

Diante disso, será possível mostrar que, ao contrário de vilã, a responsabilidade fiscal é o próprio meio para resguardar o estado de bem-estar social tão desejado pelas pessoas.

Referências

[1] Persson, M. Swedish Government Debts and Deficits, 1996.

[2] Para mais detalhes sobre o caso da consolidação fiscal da Suécia, recomendo o artigo de Sávio Coelho para o Terraço Econômico, disponível aqui.

[3] Alesina, A., Favero, C., Giavazzi, F., What Do We Know About the Effects of Austerity?, 2018.

[4] À título de exemplo, uma narrativa frequente durante a tramitação da PEC do Teto dos Gastos no Brasil, apelidado pejorativamente de “PEC da Morte” pela oposição, veja este texto.

[5] Base de dados do Fundo Monetário Internacional que mapeia, em nível mundial, todas as regras fiscais desde 1985.

[6] Disponível aqui.

[7] Acrônimo para Dynamic Stochastic General Equilibrium. É um dos tipos de modelos macroeconômicos do estado-da-arte atual, caracterizado por incorporar a dinâmica do tempo, os choques exógenos à economia e os conceitos de Equilíbrio Geral (resolvendo o sistema econômico como um todo e não apenas parcialmente). Além disso, representa um grande avanço em relação aos modelos macroeconômicos clássicos, já que, diferentemente destes, os DSGE utilizam fundamentos microeconômicos para fornecerem maior rigor teórico.

[8] Regra de Déficit Fiscal: delimita-se um limite máximo que o déficit primário possa atingir. Regra de Déficit Fiscal Estrutural: semelhante à regra anterior, mas sua principal diferença está no fato que ela leva em conta apenas o resultado estrutural da economia. Portanto, trata-se do resultado livre de efeitos meramente cíclicos que possam afetar o superávit ou déficit primário do governo (esta regra está mais detalhada nos próximos parágrafos do texto). Regra de Déficit Corrente: no jargão econômico, ela é conhecida como a Regra de Ouro. Ela não considera a parte do déficit primário que tenha sido tomada com o objetivo de investir, ou seja, ela funciona nos mesmos moldes da Regra de Déficit Fiscal, mas líquida de gastos com investimento.

[9] Fiscal Policy in Emerging Markets: Procyclicality and Graduation. Disponível aqui.

[10] Carling, R. From Reform to Retreat: 30 Years of Australian Fiscal Policy, 2017.

[11] French, S. Being Fiscally Responsible in Policy Development, 1997.

[12] Fonte disponível aqui.

[13] Fonte disponível aqui.

[14] Fonte disponível aqui.

[15] Fonte disponível aqui.

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