A solvência da dívida pública no Brasil – Por que o ajuste fiscal é necessário?

Neste texto pretendo falar brevemente sobre política fiscal e a solvência da dívida pública. É um exercício que gosto muito de fazer, pois recruta boa parte do meu lado financista, além do de economista. Inclusive acho esse exercício educativo para aqueles preocupados com a capacidade do governo de honrar seus compromissos, uma vez que os títulos públicos do governo são a última garantia de solvência de todo o sistema financeiro de um país. Só estaria protegido quem tivesse seu patrimônio 100% indexado a uma moeda estrangeira. Nao à toa investidores profissionais estão sempre de olho nos indicadores fiscais.

Pois bem, vamos ao exercício.

Lei de movimento da dívida e condição de sustentabilidade

A dívida pública de qualquer país é expressada por uma regra simples de movimento, que leva em consideração o seu estoque passado de dívida tanto doméstica quanto externa.

Aqui, D é o estoque da dívida em moeda corrente local, os sobrescritos “d” e “e” denotam estoques domésticos e externos. A variável “e” é a taxa de câmbio em relação ao dólar, “i” representa o custo da dívida (uma média ponderada de todos os títulos públicos emitidos em seus múltiplos prazos) e SP é o superávit primário (receitas menos despesas não-financeiras) do setor público.

Trabalhar com dois estoques de dívida distintos torna a equação muitas vezes mais complicada do que o necessário. É bastante comum então apresentar o estoque da dívida como função das ponderações entre os estoques em moeda estrangeira e moeda corrente local:

Na equação acima, \alpha é a participação da dívida estrangeira no estoque total da dívida em moeda corrente local.

Assim, podemos reescrever a primeira equação da seguinte forma:

Como o mais comum entre economistas é analisar e discutir variáveis fiscais como percentual do PIB, vamos dividir os dois lados pelo PIB nominal (PxY):

Definindo X/PY = x, temos:

Aqui, para obter d(t-1) descontamos um período de crescimento e inflação do PIB nominal (PxY) para obter a dívida/PIB no ano anterior. Logo, “g” e “π” são taxas de crescimento do PIB e do nível de preços (inflação).

Chegamos na regra de movimento final para a dívida/PIB. Porém, para certos casos especiais, como o brasileiro, é possível simplificarmos ainda mais. Sabemos pelos dados do Banco Central do Brasil que somos credores líquidos em moeda estrangeira. Nossas reservas internacionais excedem as dívidas do Tesouro indexadas ao dólar. Neste caso, podemos ignorar completamente o efeito patrimonial que o dólar teria na dívida brasileira (logo, \alpha = 0):

É com essa regra de movimento da dívida que podemos trabalhar para projetar a dívida pública. Para adivinharmos o estoque da dívida em % do PIB dos próximos anos, basta que se evolua o estoque do período anterior pela taxa de juros, o crescimento do PIB, a inflação e se projete as economias do governo antes de se considerar juros da dívida.

A condição de solvência está normalmente associada com uma situação em que a dívida como percentual do PIB se estabiliza ou, idealmente para o caso do Brasil, se reduza para um patamar próximo ao de economias emergentes comparáveis (algo como 40-60% do PIB). Vamos dar uma olhada nos dados e ver se isso é factível.

Expectativas de mercado e projeção da dívida/PIB

No texto de hoje, ao invés de buscar projetar os dados aqui mesmo, vamos fazer uso das expectativas de mercado da pesquisa do Banco Central, o Focus. Esses dados sao úteis porque dão conta de múltiplas estratégias para a projeção de todas essas variáveis, além de na maioria das vezes considerar com alguma razoabilidade as melhores informações presentes no momento, com a vantagem de uma frequência quase diária.

Apesar das enormes vantagens, nao vamos deixar de fazer um uso crítico desses dados. Vou aproveitar os erros de projeção históricos para apresentar intervalos probabilísticos aos cenários da dívida, além de discuti-los com algum detalhe aqui.

Ao coletar projeções para o PIB, o resultado primário, a inflação medida pelo IPCA e a taxa Selic feitas em janeiro para o respectivo ano desde o ano de 2000 até 2020, encontro as seguintes distribuições de erros de projeção:

Observando os erros de projeção, notamos que os erros possuem certa persistência temporal e correlação entre as variáveis. O PIB durante a primeira década dos anos 2000 surpreendeu positivamente durante a maior parte do período do boom de commodities, e, como consequência, o mercado subestimou o resultado primário do governo, já que a arrecadação tributária ficou bastante acima do esperado.

Na década seguinte, é perceptível um resultado no sentido contrário, onde o fim do ambiente internacional favorável trouxe consecutivas surpresas negativas para a atividade, que veio acompanhada de maior inflação e de uma Selic mais alta também. Esse resultado é conhecido e está fortemente correlacionado com o dos demais países emergentes, apesar do Brasil ter de fato sofrido para além do que estes pares comparáveis sofreram.

De posse dos erros de projeção, podemos computar uma estatística conveniente para a análise que pretendemos fazer. Vamos calcular o erro mediano absoluto (MAD) das projeções, uma vez que este exclui outliers (vide crise de 2008 e coronavírus) que não são interessantes para nossa análise prospectiva. De posse do MAD, temos as seguintes projeções e seus intervalos construídos a partir do desvio mediano:

Para as projeções do PIB, Selic e inflação, que só são disponibilizadas até 2025 pelo BCB, extrapolei até 2030 com X_{t+1} = X_t.

Com essas variáveis, estamos bem próximos de partir pra nossa projeção dívida/PIB. Antes, no entanto, precisamos ajustar nossa medida de inflação IPCA e a taxa Selic para que estas duas representem aquilo que elas são no contexto da dívida: deflator do PIB e custo do carregamento da dívida.

Para fazermos os ajustes, vamos usar uma regressão simples entre IPCA e deflator e analisar o custo de carregamento da dívida atual do tesouro vis-à-vis o custo das emissões da dívida do Tesouro.

Aqui, além dos dados do BCB, uso também os dados do IBGE.
Ver aqui e aqui.

O resultado da regressão veio dentro do esperado. É comum observarmos que o deflator costuma ser mais alto na média do que o IPCA. Usando dados do Tesouro em seu último relatório anual da dívida, podemos projetar o custo médio ponderado do carregamento da dívida assumindo que a composicao dos títulos atuais se manterá mais ou menos constante. Além disso, dada a melhor informação presente hoje para as taxas de juros pagas pelos títulos, sabemos que o custo de carregamento atual tende ao longo do tempo para o custo das novas emissões. Para calcular o custo de carregamento da dívida, convergimos o atual ao custo da emissão ao longo do tempo por interpolação.

Por fim, aplicando a regra de movimento da nossa última equação em todas as variáveis para todos os intervalos possíveis de crescimento, resultado primário, inflação e Selic, temos uma projeção final da dívida bruta:

Neste exercício o valor central da dívida atinge 86% do PIB em 2030. Esse resultado fica bastante em linha com a projeção base de dívida em 84% do PIB pelo Tesouro Nacional em seu último relatório de projeções da dívidaAlgumas diferenças podem ser explicadas pela defasagem das duas projeções quanto pelas premissas adotadas.

Há, no entanto, um risco negativo desconsiderado nesta análise. Como o crescimento usualmente assumido nas análises de sustentabilidade costuma ser 2.5% ao ano, um crescimento mais baixo afetaria bastante a projeção dívida/PIB. Em outra postagem no blog, explico porque trabalho com um crescimento potencial de 1.5% para o Brasil, uma vez que este é muito mais compatível com o período pós-crise 2014–2016 depois da forte queda que o país teve em seu nível de investimento. O quadro se mostra ainda mais grave, uma vez que, mesmo considerando um crescimento potencial de 1.5%, se esse de fato for o caso, ainda temos que lidar com o ajuste fiscal ter sua natureza recessiva, trazendo ainda maiores riscos baixistas para o crescimento, que deveria em tese ser ainda mais baixo do que 1.5% durante tempos de contas apertadas.

Ajustando a projeção para um cenário de crescimento neste novo potencial, com leves ajustes no custo da dívida, no deflator do PIB e no resultado primário (todos função deste crescimento), temos que a trajetória da dívida no meu cenário base estaria consideravelmente pior do que o do mercado:

Neste cenário, penalizo o resultado primario em 0.2 p.p, reduzo crescimento, taxa de juro nominal e inflação em 1 p.p em razão de uma atividade menos dinâmica nos próximos anos.

Sem uma ação mais robusta em direção a um ajuste fiscal pelo governo, a dívida chegaria ao fim da década em 107% do PIB, ainda em trajetória de alta, uma vez que o governo nao teria conseguido chegar ainda em um resultado primário que estabilizasse a diferença entre os juros e o crescimento da economia. A única coisa que mudaria drasticamente essa história seria um aumento relevante da carga tributária, que sem dúvida comprometeria ainda mais o cenário atual de crescimento, mas seria inevitável para evitar o colapso do sistema financeiro nacional via calote da dívida ou monetização de despesas.

A mensagem nao é boa, mas o ajuste fiscal é um problema crônico no Brasil há décadas e até hoje não chegamos lá.

Publicado originalmente aqui.

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