Sobre o federalismo fiscal

A intervenção do governo sobre a economia, como vimos em outro artigo, ocorre principalmente com a finalidade de corrigir falhas de mercado e melhorar questões de equidade. Ainda que já tenhamos relaxado a hipótese do governo benevolente quando falamos de escolha pública, faltou relaxar a hipótese do governo centralizado.

O governo se estrutura em vários níveis – os níveis federal e subnacional (governos estaduais e municipais). Mas qual é a racionalidade por trás disso?

Em primeiro lugar, pensa-se que a decisão descentralizada (a nível local) pode levar em conta a informação mais precisa sobre as preferências da população. O conhecimento das circunstâncias locais pode ajudar a alcançar uma decisão mais eficiente.

Em segundo lugar, se uma decisão tivesse que ser feita a nível nacional, pressões políticas poderiam evitar que houvesse qualquer diferenciação na provisão entre as diferentes localidades, apesar de ser mais eficiente ter níveis diferentes de provisão de bens públicos em áreas diferentes.

Eis que vem a hipótese do Tiebout (1956): se os consumidores têm preferências heterogêneas, eficiência requer um número grande de localidades e que essas ofereçam diferentes níveis de provisão de bens semi-públicos.

Modelo de Tiebout

Como visto antes (como se pode ver clicando aqui) os dois principais problemas com a provisão de bens semi-públicos relacionam-se a preferências. Não bastassem as dificuldades inerentes à arquitetura de instituições democráticas que conduzam os indivíduos a revelar as suas preferências pelos bens semi-públicos, os governos sofrem com as agruras associadas à conciliação de preferências. Disso resultam governos incapazes de oferecer a seus povos um nível ótimo de bens semi-públicos.

Tiebout (1956) perguntou: o que há nos mercados privados que garante a provisão ótima, mas que está faltando no caso dos bens públicos? Resposta: competição. Uma vez que o governo federal se defronta com pouca competição quando ele toma suas decisões de provisão do bem semi-público, as decisões resultam numa provisão de bens semi-públicos ineficiente.

Tiebout argumentou, contudo, que a situação é diferente quando os bens semi-públicos provêm de municípios e, em menor extensão, dos estados. Neste caso, a competição irá surgir naturalmente porque os indivíduos podem votar com seus pés (“vote with their feet“). Se eles não gostam do nível de bens semi-públicos oferecido em uma cidade, eles podem se mudar para outra cidade, sem uma ruptura tão grande em suas vidas quanto a envolvida em uma mudança de país.

Com bens semi-públicos locais, tem-se um novo dispositivo de revelação da preferência: mobilidade!

Tiebout argumentou que a ameaça de saída pode induzir as cidades à maior eficiência na provisão dos bens. Pela mesma lógica que o equilíbrio competitivo implica em um nível eficiente de bens privados, a competição entre localidades na provisão resulta em um nível eficiente de bens semi-públicos. Além disso, as cidades que não provêm níveis eficientes de bens semi-públicos irão perder cidadãos para outras cidades.

Quais são as hipóteses do modelo?

Existem várias pessoas que se dividem entre cidades que fornecem diferentes níveis de bens semi-públicos. Cada cidade “i” tem “Ni” residentes e financia as suas despesas em bens semi-públicos “Gi” com uma taxação uniforme sobre os residentes Gi/Ni.

Tiebout mostrou que, neste modelo, os indivíduos se dividirão de tal forma que cada residente em qualquer cidade tem o mesmo gosto pelo bem semi-público e, logo, demanda o mesmo nível de gasto com bens semi-públicos Gi.

O problema de agregação da preferência é resolvido, uma vez que todo mundo na cidade quer o mesmo nível de bens semipúblicos Gi  e que o governo local pode dividi-los pela população para obter o financiamento apropriado. Também não há problema de revelação de preferência porque não existe nenhum incentivo para que as pessoas mintam, uma vez que a taxação que financia os gastos é uniforme.

Ainda que sofisticado, o modelo tem problemas. Embora mudar de cidade seja uma possibilidade, os custos de transação comprometem a noção de “livre competição”. Os bens semi-públicos demandam escala. Em um mundo ideal, seria ótimo que cada indivíduo tivesse seu próprio município. No entanto, o mundo não é ideal e é necessário um número relativamente grande para que se forneça o bem semi-público.

O modelo de Tiebout também tem problemas de financiamento. Ao pressupor uma taxação lump sum socialmente injusta, externalidades negativas respingam sobre a população de baixa renda. Além disso, outra limitação é a presença de externalidades e spillovers de bens semi-públicos para outros municípios, e essa geraria uma sub-provisão de bem semi-público.

Mas quais são as implicações do modelo para o desenho ótimo do federalismo fiscal? Quais deveriam ser os princípios que guiam a provisão de bens semi-públicos pelos diferentes níveis de governo? Qual o nível ótimo de descentralização? Segundo o modelo, a extensão pela qual os bens semi-públicos devem ser providos a nível local é determinada por três fatores:

  1. Ligações imposto-benefício (a extensão pela qual pagamentos de impostos podem ser diretamente atrelados aos bens e serviços recebidos).
  2. Extensão das externalidades positivas/spillovers na provisão de bens semipúblicos.
  3. Economia de escala.

Isto é, quanto mais as pessoas percebem que pagam impostos, mas, em troca, recebem serviços estatais, mais próximo das pessoas deve estar o provedor. A esta relação dá-se o nome de ligação imposto-benefício. Portanto, se afeta diretamente as pessoas envolvidas, mais descentralizada deve ser a provisão. As externalidades, por outro lado, podem ser mais apropriadamente solucionadas quando “internalizadas” por um ente federativo “hierarquicamente” mais elevado.

Em resumo, cabe a estados e municípios prover bens semi-públicos com poucas externalidades; ao governo federal, a provisão de bens semi-públicos com grandes externalidades. Sobre economia de escala, como vimos, os municípios devem ter um tamanho mínimo para que os bens semi-públicos sejam efetivamente providos. Disso extraímos que os bens semipúblicos de menor escala seriam mais adequadamente providos a níveis locais e aqueles de maior escala, a níveis federais.

Em resumo: o governo se divide em níveis porque em um nível descentralizado melhor fornecerá os bens semi-públicos. O modelo de Tiebout formaliza essa intuição, sendo corroborado pelas evidências internacionais, como se pode conferir lendo Gruber (2005). Assim, criamos um modelo mais realista, um governo descentralizado não-benevolente, algo a que estamos tão acostumados.

Referências

Tiebout, Charles M. “A pure theory of local expenditures”. Journal of political economy 64.5 (1956): 416-424.

Gruber, Jonathan. Public finance and public policy. Macmillan, 2005.

.

Leia também:
O que são falhas de governo?
A economia mainstream na história do pensamento econômico
A economia política das leis inúteis
Max Weber estava certo sobre a reforma protestante? Veja três artigos que falam sobre o tema

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público