A doutrina econômica do Cameralismo

Introdução

Quando aprendemos sobre Mercantilismo na escola ou nas aulas de História do Pensamento Econômico geralmente tendemos a associar esse movimento intelectual com teóricos como Thomas Mun e Jean Colbert e a ideias como o saldo monetário positivo da balança de pagamentos e o protecionismo comercial.

Todavia, como nos lembra Eric Roll em seu “História das Doutrinas Econômicas”, o Mercantilismo estava longe de ser um conjunto de ideias e pensadores homogêneos. Cada Estado-Nação da Europa produziu formas de pensamento mercantilista diferente e próprias para suas necessidades econômicas. Além disso, o que vemos nos textos dos autores mercantilistas são muitas vezes opiniões contraditórias entre si sobre qual deveria ser o rumo da política econômica; em especial relacionado com a regulação dos juros e a necessidade de estabelecimento formal de monopólios por parte das chamadas companhias majestáticas.

E talvez nenhum país tenha produzido uma variedade tão incomum de Mercantilismo quanto o Sacro Império Romano Germânico. Nesse país totalmente incomum (e por muitas vezes esquecido na história), ao contrário do que ocorreu na França e na Inglaterra, foi desenvolvido uma forma de doutrina econômica não-utilitarista e aristotélica conhecida como Cameralismo que iria marcar não somente gerações de pensadores econômicos alemães e austríacos até o começo do século XX, mas também influenciar a forma como concebemos hoje a chamada “eficiência pública alemã” e o próprio conceito de burocracia profissional.

No presente texto eu irei explorar essa doutrina econômica esquecida nas areias da história.

I – Uma resposta a tempos difíceis

O Cameralismo surgiu no contexto da Guerra dos Trinta Anos de 1618-1648. Nesse conflito, os estados alemães componentes do Sacro-Império Romano foram totalmente devastados. A população total do Império caiu de 21 milhões para 13 milhões. A população de Württenberg caiu de 400.000 para 50.000. O Palatinato perdeu mais de 90% da população. Três milhões de pessoas na Boêmia foram reduzidas para 800.000. Berlim e Colmar perderam metade de suas populações e Augsburgo perdeu cerca de 30.000 pessoas. O fator trabalho virou um recurso limitado dentro do Império.

Além disso, com a Paz de Vestfália, o território alemão foi dividido em mais de 300 unidades políticas soberanas com várias restrições ao acesso ao mar, acesso a recursos naturais e estavam em constante pressão internacional exercida por seus vizinhos unificados e centralizados, como a França, que não desejavam uma Alemanha unificada como ameaça em suas fronteiras. Além disso, ocorriam disputas políticas constantes entre os estados-membros do Império como resultado de divergências causadas pelos rumos da Reforma Protestante.

Dentro desse cenário e considerando a divisão ideológica criada pela Reforma, os príncipes alemães se viram na difícil tarefa de reerguer seus estados com territórios e recursos, sobretudo humanos, limitados. Eles não dispunham dos vastos e ricos impérios coloniais de Portugal ou Espanha, não tinham as férteis terras da França, não tinham uma grande marinha como a Inglaterra ou os vastos recursos naturais da Rússia. Uma vez que suas terras eram extremamente fragmentadas e suas unidades políticas eram diminutas tomadoras de preço no comércio internacional, não podendo influenciar os termos de troca como os grandes impérios mercantilistas com suas colônias, o foco dos primeiros pensadores econômicos alemães era a sobrevivência de suas entidades políticas.

Essa sobrevivência passava pela utilização de seu fator econômico mais precioso: a mão-de-obra de sua população. Levando isso em conta, os principados alemães iriam requerer produtividade de sua limitada capacidade militar, desenvolvimento econômico, inovação tecnológica, produtividade das manufaturas e crescimento populacional.

A maioria das grandes nações europeias do período, como França, Espanha e Grã-Bretanha, adotavam como política econômica a série de medidas que viriam a ser conhecidas como Mercantilismo. Aos olhos dos primeiros escritores de finanças e economia europeus, o crescimento econômico de uma nação seria um produto da diferença superavitária de exportações e importações e a medida da riqueza seria dada pelas contas públicas de uma nação, especialmente sua balança de pagamentos. Para gerar esse crescimento, o estado deveria promover a competitividade de suas exportações e controlar a conta de balanço de pagamentos, minimizando saídas de ouro e maximizando entradas de ouro. Esse pensamento foi o produto tanto do pensamento contabilista das oligarquias que controlavam esses estados 1, como de uma necessidade de política monetária, uma vez que as saídas de ouro poderiam causar contrações monetárias e encurtamento do ciclo econômico.

Mas nos estados alemães, um tipo bastante peculiar de mercantilismo se desenvolveu em razão da concorrência entre as unidades políticas do Sacro-Império. Nos grandes impérios mercantilistas, existia um grande incentivo ao rent-seeking. Dados seus grandes territórios unitários e centralização administrativa, existia uma considerável imobilidade de recursos juntamente com grandes diferenças nos custos de organização entre grupos de interesse. Como resultado, existia um incentivo maior à atividade de rent-seeking do que para a atividade produtiva, dada a lucratividade relativa da primeira. Já no Sacro-Império, os recursos eram extremamente móveis e os custos de organização variavam pouco entre grupos de interesse, de forma que existia uma competição quase perfeita entre eles. Os estados alemães existiram em um ambiente competitivo, onde o escopo da taxação era restrito tanto por antigas instituições feudais (derivadas do direito germânico) como pela extrema fragmentação geográfica do território. Com mais de 300 estados soberanos, existia uma fácil mobilização de pessoas e capital entre as unidades políticas quando ocorria qualquer mudança negativa, como um aumento de impostos 2.

Seria suicídio uma unidade política diminuta, como os estados do Sacro Império, engajar em políticas de cunho protecionista como a dos grandes impérios mercantilistas. Diferentemente de grandes unidades políticas que podem depender da amplitude de seu mercado consumidor e do seu mercado de capitais para manter, ainda que de maneira ineficiente, uma unidade política pontual, como uma cidade-estado, não teria como se manter com tal caso aplicasse uma política de isolamento econômico. Segundo Alesina e Wacziarg (1998), existe uma forte relação entre tamanho geográfico de uma unidade política (delimitado por suas fronteiras políticas), o tamanho de seu governo e seu nível de liberdade comercial. Na medida que o tamanho de um mercado nacional influencia a produtividade de uma economia (pelos ganhos de escala da integração em um grande mercado comum), países “grandes”, como os impérios mercantilistas, conseguem compensar os custos de eficiência de medidas protecionistas parasitando sua grande economia interna. Já uma unidade política diminuta, como um principado alemão, não dispõe de um grande mercado interno para compensar as perdas sofridas de medidas protecionistas, de forma que a escolha racional dessa unidade política é não adotar tais medidas na mesma escala dos grandes impérios.

Tomando essa realidade política caótica, o cameralismo surgiu como doutrina central da administração pública das nações protestantes do Sacro-Império Romano quando as Universidades de Halle e Frankfurt criaram a cadeira “Oeconomia, Policey und Kammer-Sachen” para treinar seu corpo burocrático, apesar de que o conteúdo que seria ensinado ali já havia sido traçado nas obras “Teutscher Fürsten Stat” de Ludwig von Seckendorff e “Fürstliche Schatzund Rentkammer” de Wilhelm von Schöder.

Ludwig von Seckendorff (1626-1692).

II – Monarquia proprietária e aristotelismo econômico

O Cameralismo surgiu como um esforço para gerar crescimento econômico e prover o príncipe soberano de recursos para defesa de seu domínio nesse ambiente de descentralização política e baixo custo de mobilidade de fatores entre fronteiras limitando a adoção de políticas econômicas extrativas, como alta tributação ou protecionismo comercial. Para enfrentar essas limitações, os cameralistas levaram a visão mercantilista de ver o estado como um grande negócio para além do paradigma contábil.

Ainda que os governantes tivessem pouco poder sobre quais políticas adotar, eles tinham direitos de propriedade sobre vários recursos (como canais, estradas, manufaturas, etc.). As finanças públicas cameralistas tratavam as terras e empresas estatais como principal fonte de renda do estado. O modelo de estado dos conselheiros cameralistas era o de uma empresa privada. Para sobreviver, o príncipe deveria cuidar de suas florestas, construir minas ou abrir empresas (como cervejarias e vidraçarias) sem colocar barreiras à concorrência e sem se subsidiar, uma vez que isso poderia trazer custos ao erário real que não seriam compensados por extração tributária do mercado interno.

Os princípios do Cameralismo essencialmente tornavam os governantes homens de negócio, com seus negócios sendo as operações de estado. Para eles, a administração pública e particular se confundiam. O domínio político não era diferente de uma propriedade, de um “lar”. Os recursos, como em uma família ou firma, eram limitados e deveriam ser administrados da forma mais eficiente possível para a promoção tanto do valor moral protestante do “trabalho bem feito” como do valor financeiro das propriedades.

Essa visão da natureza dos principados aproxima bastante o Cameralismo da noção de monarquia proprietarista, como formulado por Hoppe (2017). Segundo Hoppe, uma monarquia proprietarista é um regime estatal regido pela propriedade governamental privada. O que caracteriza uma propriedade governamental privada é o fato de o monopólio do uso legítimo ser propriedade de um indivíduo que personifica o estado; um rei ou um príncipe. Os recursos extraídos pelos mecanismos estatais são desse indivíduo e ele tem o direito de utilizar e alocar sua propriedade livremente. Isso contrasta com o que Hoppe denomina propriedade governamental pública, que predomina nas democracias liberais. Em uma propriedade governamental pública o direito dessa propriedade pertence ao sujeito coletivo representado pela república (o “povo”). Todavia, devido ao problema de coordenação, de se levar em conta todas as preferências de uso dos recursos dessa propriedade, ela tende a ser gerida por um agente específico, um administrador. Em democracias liberais, esses administradores são representados pelos funcionários públicos e os agentes políticos representativos.

Segundo Hoppe, a forma pública de propriedade governamental é ineficiente, pois os administradores não possuem incentivo a maximizar a riqueza dela e sim extrair o máximo possível. Um político tende a usar os meios tributários e os cofres públicos de forma a extrair o máximo de renda política que puder sem nenhuma consideração de longo prazo, pois ele não pode usufruir da valoração dos bens públicos uma vez que não é sua propriedade e ele não sabe se terá outra oportunidade de utilizar os fundos que estão agora em sua disposição. Assim, a propriedade pública enfrenta uma forma de problema de agência. De forma semelhante à propriedade pública, grandes corporações não são administradas diretamente por seus donos, mas por administradores. São os administradores os responsáveis por cuidar dos vários níveis do processo de gestão da corporação e, por estarem diretamente ligados a cada etapa do processo, eles possuem mais informação sobre a empresa do que nos pontos mais altos da hierarquia corporativa.

Contudo, os administradores não possuem direitos aos lucros originados de melhorias de produtividade na corporação; esse direito é dos acionistas dela. Assim, os administradores não são capazes de se apropriar dos lucros que eles criam. Para compensar isso, eles usam meios de elevar o custo de monitoramento dos acionistas e disfarçar apropriação ineficiente e ilegítima de lucros da corporação: grande complexidade burocrática, corpo de funcionários dispersos, processos de produção mais longos, etc.

Contudo, a formulação de Hoppe de um monarca maximizador ótimo não é de todo correta. Olson (1993) já colocava uma dura crítica à possibilidade de um monarca absoluto eficiente. Ainda que um rei tenha incentivos para cuidar de sua propriedade privada (seu reino), seus incentivos, sua riqueza pessoal e o bem-estar social podem divergir. Um monarca só irá prover bens públicos e instituições eficientes na medida em que essa ação proporcionar benefícios marginais privados superiores aos custos da ação. Ele tem pouco incentivo para se importar com divergências entre benefícios marginais sociais e seus custos, a menos que isso tenha como consequência a possibilidade de motivar os súditos a lhe depor.

Além disso, o rei, enquanto um maximizador de riqueza pessoal, tem incentivo para tratar seu reino como um investimento. Isso pode parecer algo positivo, uma vez que ele terá incentivo a maximizar seu valor a longo prazo, mas essa linha de raciocínio desconsidera a natureza dos retornos desse investimento. Os retornos esperados por parte do monarca se traduzem nos futuros ganhos tributários que ele terá, de forma que ele tem incentivo a tributar os agentes econômicos de forma a extrair os ganhos de um aumento de renda derivado de um período de crescimento econômico. Considerando que isso seja feito de forma aos agentes formarem uma expectativa de que irão ser tributados em igual proporção ao aumento de seus ganhos, isso pode inibir o crescimento econômico de longo prazo.

Entretanto, tal crítica considera apenas os incentivos internos que um monarca teria. A formulação de Hoppe leva em consideração que tal monarca estará inserido em um cenário de extrema fragmentação política. A concorrência de unidades políticas externas pode criar os incentivos corretos para inibir o comportamento extrativista do monarca. Como colocam Qian e Weingast (1997), ainda que um governante não tenha incentivos dentro de sua unidade política para tomar políticas ótimas, incentivos externos podem modificar seu comportamento por meio da competição entre unidades políticas 3.

Um exemplo concreto disso é dado pelos sistemas federalistas. Assim como a competição no mercado cria incentivos para que os administradores reflitam os interesses dos acionistas de uma empresa, a competição entre governos locais limita o comportamento predatório dos governantes. A competição entre unidades políticas por recursos móveis, como pessoas, previne que governantes adotem políticas debilitantes e faz com que apenas aquelas medidas preferidas por seus cidadãos sejam adotadas. Políticos em estados centralizados podem achar fácil subsidiar companhias ineficientes, realizar políticas protecionistas e ter grandes déficits fiscais. Em um sistema federalista, entretanto, a possibilidade de saída dos recursos móveis eleva os custos de oportunidade para medidas ineficientes. Uma vez que a saída de recursos significará uma perda de receita, a competição acaba por servir como choque exógeno para melhoria da governança política interna. Esse é o caso dos principados alemães.

O Cameralismo defendia que os cidadãos de uma unidade política fossem vistos como clientes e não como meios para serem usados pelo estado. Essa influência quase kantiana nos escritos dos autores alemães fica claro no conceito de cammerwesen (governança cameral), com tal servindo como fonte para a negação da influência maquiavélica na administração pública. Isso fica bem claro no ethos-regierung de um dos maiores príncipes alemães que aplicaram os princípios cameralistas em seu governo, Frederico II da Prússia, e expresso em sua obra “O Anti-Maquiavel”. Como coloca o monarca na abertura de seu livro:

O que dizer então das ideias de interesse, grandeza, ambição e despotismo? Ocorre que o soberano, em vez de ser senhor absoluto dos povos que estão sob sua dominação, na realidade não passa de seu primeiro serviçal e deve ser instrumento de sua felicidade, tal como esses povos o são de sua glória.” (Frederico II, 2014, p. 2).

Frederico II mostra um ponto bastante importante do Cameralismo, que é sua crítica à busca total de poder das grandes nações europeias. Os grandes impérios mercantilistas eram dominados por uma visão de um jogo político internacional de soma zero, onde a glória de um país só poderia ser alcançada por meio da expansão territorial às custas das outras nações. Soma-se a isso ainda um consequencialismo que dizia que todos os meios utilizados seriam válidos desde que a supremacia política e econômica fosse alcançada. Cameralistas como Frederico II viam isso como um absurdo moral e algo completamente insustentável do ponto de vista prático:

A política de Maquiavel só pode ser aplicável a um único homem, para a pilhagem de todo o gênero humano; pois que confusão haveria no mundo se muitos ambiciosos quisessem arvorar-se de conquistadores, se quisessem apoderar-se dos bens uns dos outros, se, invejando tudo o que tivessem, só pensassem em invadir, destruir e despojar cada uma de suas posses! No fim só haveria um senhor no mundo, que teria obtido a sucessão de todos os outros e só a conservaria enquanto o permitisse a ambição de outros que chegassem depois (…). Mas suponhamos que esse conquistador submeta o mundo inteiro à sua dominação. Submetido a esse mundo, ele conseguiria governá-lo? Por maior que seja, um príncipe é um ser muito limitado, um átomo, um mísero indivíduo que quase não se percebe a rastejar por sobre este globo. Mal poderá guardar o nome de suas províncias e sua grandeza só servirá para tornar mais evidente sua verdadeira pequenez (…) Por se apoderar violentamente dos estados de um príncipe, um ambicioso terá o direito de mandar assassiná-lo e envenená-lo. Mas, assim agindo, esse mesmo conquistador introduz no mundo uma prática que só poderá a vir a ser causa de sua própria vergonha; outro mais ambicioso e mais hábil o punirá com a Lei de Talião; invadirá seus estados e o fará perecer com a mesma injustiça com que ele fez seu predecessor perecer.” (Frederico II, 2014, p. 7-10).

Essa visão normativa do príncipe filósofo não tinha causas puramente éticas. A preocupação do governante cameralista em atender bem seus “clientes”, promovendo seu bem-estar, era visto como necessário para a manutenção da ordem interna:

”Um povo contente não pensará em revoltar-se; é maior num povo feliz o temor de perder seu príncipe, que também é seu benfeitor, do que nesse soberano a apreensão pela diminuição de seu poder. Os holandeses nunca teriam se revoltado contra os espanhóis se a tirania dos espanhóis não tivesse se excedido tão enormemente que os holandeses já não poderiam ser mais infelizes do que eram. O Reino de Nápoles e o da Sicília passaram mais de uma vez das mãos dos espanhóis às mãos do imperador e do imperador para os espanhóis; sua conquista sempre foi muito fácil, pois ambas as dominações eram muito rigorosas e aqueles povos sempre tinham a esperança de encontrar libertadores em seus novos senhores. Que diferença entre aqueles napolitanos e os lorenos! Quando foram obrigados a mudar de dominação, toda a Lorena chorou; lamentava-se a perda dos descendentes daqueles duques que, havia tantos séculos, estiveram no poder naquela próspera região, entre os quais contam-se alguns tão estimáveis pela bondade que mereceriam seguir de exemplo aos reis. A memória do dique Leopoldo era tão cara aos lorenos que, quando sua viúva foi obrigada a sair de Lunéville, todo o povo se ajoelhou na frente da carruagem e os cavalos foram detidos muitas vezes; só se ouviram lamentos, só se viam lágrimas.” (Frederico II, 2014, p. 5).

Os monarcas cameralistas, em sua busca por eficiência, tinham um profundo ódio à corrupção e desperdícios. Na Prússia, Frederico Guilherme I e Frederico II criaram formas de sufocar a burocracia corrupta e desenvolveram uma profunda intolerância para com a prática de desvio de recursos. Durante o reinado de Frederico Guilherme, por exemplo, foi ditado de uma só vez uma instrução geral para os funcionários públicos com 35 capítulos e 297 parágrafos. O mesmo, em 1714, criaria um órgão de fiscalização das finanças públicas chamado Câmara Geral de Contas (o antepassado do moderno tribunal de contas). Frederico II foi tão severo com as burocracias e com a punição da corrupção que muitos funcionários públicos festejaram sua morte.

Se o governante deve ser forte, segundo o argumento de Frederico, ele precisa de um exército forte. Todavia, tal exército é inútil sem renda para sustentá-lo, uma vez que nenhuma guerra bem-sucedida pode ser travada sem recursos. A exploração fiscal dos súditos irá, contudo, apenas danificar a base onde a renda é originada. Seria como destruir o próprio cliente em ordem para maximizar os lucros de uma empresa. Ao invés disso, o governante deve fazer seus súditos felizes e prósperos para que eles gerem, de maneira ótima, a renda necessária para o governante financiar seus exércitos e consolidar sua ordem. Como coloca Frederico II:

”Dizeis Maquiavel que um príncipe deve destruir um país livre recém-conquistado para assegurar sua posse; mas responderei: com que finalidade ele terá empreendido essa conquista? Direis que é para aumentar seu poder e tornar-se mais temível. É o que eu queria ouvir, para vos provar que, seguindo vossas máximas, ele faz exatamente o contrário; pois arruína-se ao fazer essa conquista e em seguida arruína o único país que podia ressarci-lo de suas perdas. Havereis de admitir que um país devastado, saqueado e privado de habitantes, gente, cidades, em suma, de tudo que constitui um estado, não poderia tornar um príncipe temível e poderoso pelo fato de possuí-lo. Creio que um monarca que possuísse os vastos desertos da Líbia e de Barca não seria muito temível, e que um milhão de panteras, leões e crocodilos não valem um milhão de súditos, cidades ricas, portos navegáveis cheios de navios, cidadãos industriosos, tropas e tudo que é produzido por um país bem povoado.” (Frederico II, 2014, p. 22).

Geralmente se coloca o Cameralismo, dentro das ciências sociais, como um ramo primitivo da economia. O foco dos primeiros cameralistas na “Oeconomie” (felicidade individual) e “Polizey” (felicidade geral), na visão dos economistas modernos, os caracteriza como investigadores primitivos dos problemas econômicos fundamentais; geralmente sendo colocados junto com os mercantilistas. Mas isso seria identificar esses termos com suas valorações modernas e não com os significados que tinham quando o Cameralismo foi concebido. Para os cameralistas, “Polizey” tem um sentido aristotélico e não utilitarista como para os economistas modernos. A unidade política não está organizada somente para a promoção do bem-estar, mas para uma série de outros valores (civilidade, liberdade, beleza, etc.) e está organizada em torno de uma ordem regulada de forma não-jurídica; pela necessidade de formação da polis pelo animal social. Já “Oeconomie” significava antes a forma normativa de administração dessa ordem, seguindo a inviolabilidade dos indivíduos, do que uma preocupação com a esfera individual.

A política econômica cameralista pregava que os interesses do governante e dos súditos estivessem ligados por um fio de auto-interesse mútuo. Isso criava um equilíbrio institucional ótimo. Os estados que enfrentavam problemas com falta de população poderiam melhorar suas condições econômicas fazendo reformas de incremento de produtividade, gerando crescimento econômico e atraindo pessoas de outras unidades políticas para seu território. O governante ganhava novos pagadores de impostos e as pessoas um melhor governo e condições de vida.

Mesmo com avanços nas tecnologias de extração tributária, como a invenção do imposto de renda ou da senhoriagem inflacionária, a análise cameralista focava em maioria nos limites da tributação. Eles defendiam prudência nos impostos e elaboraram várias regras para promover o interesse dos príncipes. Essas regras podem ser descritas como as seguintes: as alíquotas tributárias deveriam ser baixas; a renda tributária deveria ser usada para propósitos urgentes e benéficos; e os tributos deveriam ser facilmente administrados.

O motivo por trás do princípio de que os impostos deveriam ser baixos é que isso não iria desencorajar a atividade econômica ou incentivar a fuga de capital físico e humano para outras unidades. O princípio dos propósitos urgentes desenvolvido pelos cameralistas colocava que o peso dos impostos não poderia exceder o custo que eles estavam dispostos a arcar pelos serviços. Logo, os impostos deveriam promover o bem-estar somente ao mesmo nível de seu custo de eficiência. A visão cameralista de que deveriam existir limites aos poderes fiscais do estado era bastante semelhante à dos economistas liberais clássicos, porém ia além deles. Enquanto que os liberais modelavam limites sobre até onde o estado poderia se financiar com base em tributos, o estado cameralista ideal não cobraria nenhuma forma de tributo. As receitas de um estado cameralista ideal viriam unicamente das propriedades dos príncipes.

O autor cameralista e ministro das finanças da Prússia, Johann Gottlob von Justi, criou o importante conceito de “finanzwissenschaft”, segundo o qual a base tributária do governante não poderia perturbar a ordem da unidade política. Isto é, não poderiam ser usados meios que violassem as instituições jurídicas da sociedade, como a igreja, a propriedade ou a integridade individual dos cidadãos. Por essa razão, von Justi considerava que a senhoriagem era uma forma imoral e ilusória de riqueza de um estado, pois feria os princípios de contrato entre cidadão e governante firmados na ordem monetária.

O acúmulo de metais era considerado uma maldição que apenas encolhia o potencial de crescimento de uma nação, pois tornava seus cidadãos meros comerciantes de objetos baratos (sem valor agregado) e causava elevações ruinosas de preço que piorava, em última instância, a balança de pagamentos de uma unidade política 4. Os cameralistas ainda acreditavam que a riqueza era um produto da produtividade e industriosidade de um povo; seu capital humano visto como trabalhadores qualificados.

A própria vida de von Justi pode servir de exemplo acerca da frieza racional dos governantes cameralistas. Durante parte de sua vida, ele foi o conselheiro financeiro pessoal de Frederico II. O conselheiro propôs a Frederico usar os fundos do tesouro real para a construção de um complexo siderúrgico em Neumar para acabar com a dependência prussiana de aço importado da Suécia e da Saxônia. Contudo, no fim o empreendimento foi um fracasso e, como punição, Frederico enviou pessoalmente von Justi para a prisão de Küstrin por crimes de má administração contra o tesouro prussiano. Algo que pode ser teorizado a partir desse episódio é que esse rigor dos monarcas prussianos para com sua burocracia é possivelmente a origem de sua lendária eficiência. A burocracia prussiana, o exemplo histórico máximo de burocracia de tipo weberiana, pode ter sido originada por incentivos negativos extremos dos monarcas querendo aumentar a eficiência de seu reino.

Por essas razões, Wagner (2012), analisando o episódio do Cameralismo sob o prisma analítico da Escolha Pública, coloca que o cameralismo talvez seja um caso único de validade do modelo de um déspota benevolente 5.

III – O declínio do Cameralismo e o último principado do Sacro-Império

Porém, esse sistema encontrou seu fim com as Guerras Napoleônicas. O Império Francês que nasceu após a Revolução Francesa invadiu os países germânicos vizinhos em resposta às agressões sofridas pelas forças da Liga (Prússia, Rússia, Áustria, principados germânicos e Grã-Bretanha), que buscavam anular a revolução e impedir que seus ideais se espalhassem para as outras monarquias europeias. Após a Batalha de Austerlitz em 1805, os vários estados alemães foram incorporados ao Império Francês e o Sacro-Império Romano Germânico encontrou seu fim formal.

Após a derrota de Napoleão na Batalha de Waterloo e o fim do Primeiro Império Francês, as nações vencedoras e a França, representada por seu maquiavélico embaixador Charles de Talleyrand, se reuniram no Congresso de Viena, de 1814, para discutir o restabelecimento das fronteiras europeias que haviam sido apagados pelo avanço francês. Os territórios que outrora formavam o Sacro-Império foram em maior parte absorvidos pelas vitoriosas monarquias da Prússia e do Império Austríaco. Os estados que não foram absorvidos, como o Reino da Bavária, foram reunidos em uma união de estados conhecidos, como a Confederação do Reno. A ideia era a de que a mesma fragmentação de outrora fosse mantida para deter a formação tanto da Prússia como da Áustria enquanto poderes hegemônicos.

Todavia, esse equilíbrio não se manteve. Forças desestabilizadoras internas levariam ao fim completo do sistema. Mesmo após a derrota de Napoleão em Waterloo, a Europa seria assombrada pelo fantasma da Revolução Francesa. Mesmo depois da derrota política da revolução pelas forças da coalizão, as ideias revolucionárias continuaram a ser semeadas pelo continente por diferentes intelectuais. Do discurso de libertação dos povos e do brado pelo fim da aristocracia, misturado com o contexto multiétnico de muitos estados europeus (como a Confederação Germânica e o Império Austríaco), houve uma transformação em ideias de “libertação nacional”, onde os povos oprimidos (tchecos, húngaros, sérvios, alemães, etc.) lutariam pela independência de suas nações contra os “opressores” (notadamente, os austríacos). Dessas ideias de afirmação do conceito de nação, juntamente com o radicalismo político revolucionário francês, surgiu a ideologia que os historiadores chamam de “nacionalismo liberal”. Seria essa ideologia que alimentaria a série de revoluções no ano de 1848, conhecidas como a Primavera dos Povos. As elites intelectuais iluministas do século XIX estavam preocupadas com a delimitação de padrões universais para o entendimento do conceito ideal de “humanidade”.

Na classe média alemã, isso se traduziu no embate entre abordagens históricas tradicionais, como as de Leopold von Ranke, consideradas aristocráticas, e a interpretação universal da história conduzida pela kulturgerschichte (história cultural). O objetivo dessa nova abordagem era definir uma narrativa geral da civilização, que não levasse mais em conta a perspectiva aristocrata do hero worship, a narrativa da história pelo feita dos chamados “heróis nacionais”. Os revolucionários de 1948 buscavam a formação de unidades nacionais homogêneas, unificadas e guiadas por princípios do iluminismo revolucionário.

Uma das razões da ascensão da Prússia e da unificação alemã foi o declínio da influência austríaca dentro da Confederação Germânica. As intervenções da Santa Aliança, comandada pelo primeiro-ministro austríaco Klemens von Metternich, para sufocar as revoluções liberais de 1848, foram por demais violentas e jogaram várias potências estrangeiras, como a Rússia e a Grã-Bretanha, nos assuntos internos dos estados germânicos. Com isso, o prestígio austríaco entre os nacionalistas alemães caiu e muitos passaram a ver na Prússia um poder capaz de realizar seus sonhos de uma Alemanha unificada. Como resultado, forças nacionalistas passaram a apoiar a causa de Otto von Bismarck e a causa passaria a ser guiada pela bandeira prussiana. Graças a esse conjunto de fatores, os principados alemães foram unificados em 1871 e a Alemanha nasceu com as cores da Casa Hohenzollern.

Todavia, uma pequena lembrança dessa época ainda permanece viva até os dias de hoje: Liechtenstein. O pequeno principado foi fundado em 1699 pelo príncipe Johann-Adams von Liechtenstein, que comprou os condados de Schellenberg e Vaduz e os unificou em um principado próprio, que então integrou como membro do Sacro-Império Romano Germânico. O principado não foi invadido por Napolão, que considerava o príncipe reinante Johann Joseph I como um líder militar respeitável e manteve a soberania do país. Mesmo com o processo de unificação alemã e com as várias guerras que devastaram o território germânico desde então, Liechtenstein manteve sua soberania.

Notadamente, Hans Adams (2012) traça um claro manual de instruções cameralistas para gestores públicos no Século XXI. Além disso, deve-se notar que a Casa Liechtenstein é a família real mais rica da Europa, com uma fortuna de 3 bilhões de dólares. Contudo, isso não vem dos cofres públicos, mas sim do banco LGT de propriedade da família (seguindo o princípio cameralista de que o monarca deve agir como um empresário). Ele é a última parte sobrevivente do Sacro-Império e o último país do mundo a ainda ser governado por princípios cameralistas.

Bibliografia

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1. Eric Roll nos lembra que a maioria dos primeiros escritores mercantilistas, sobretudo ingleses, eram financistas ou agentes comerciais.

2. Com baixos custos de saída (dada a proximidade linguística e cultural, uma área monetária ótima e fronteiras abertas), existe uma restrição fiscal natural nos governos locais. Um indivíduo que sente que o custo tributário marginal de sua permanência em um território com uma política fiscal extrativa é maior que o benefício poderá sair e se mudar para um território onde o benefício local seja igual ou maior que o custo tributário marginal. Assim, ele “votará com os pés” e transmitirá o sinal para seu ex-território que, se o quiser de volta, terá que diminuir a extração fiscal.

3. O caso estudado pelos autores é o das províncias chinesas, onde a concorrência entre seus modelos distintos de governança cria incentivos para uma gestão mais eficiente por parte dos burocratas do Partido Comunista Chinês.

4. Nesse época a Europa já havia experimentado o processo hiperinflacionário causado pela introdução de ouro e prata americano pelo Império Espanhol nos mercados monetários do continente, em um evento conhecido como Revolução dos Preços.

5. Contudo, Wagner deixa claro que tal caso, por se tratar de um cenário histórico específico, não é suficiente para atestar a validade desse modelo nos dias de hoje.

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Publicado originalmente aqui.

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