Não faz sentido comparar valor de mercado de empresas com PIB. Veja aqui o porquê

Volta e meia quando alguma movimentação nos mercados de ações faz com que algumas das maiores empresas do mundo ou seus acionistas – bilionários costumeiramente presentes no TOP 10 da Forbes – alcancem novos patamares de valor de mercado ou patrimônio, surgem matérias de mídia ou discursos de políticos comparando esses valores alcançados com o PIB de países. Mas esse tipo de comparação nos diz mesmo alguma coisa?

Para responder essa pergunta, precisamos compreender alguns conceitos básicos:

O que é PIB?

PIB, ou Produto Interno Bruto, é a medida do valor de mercado do somatório de todos os bens e serviços finais produzidos em um dado lugar em um dado período de tempo (usualmente um país no intervalo de um ano). Quando dizemos que o PIB brasileiro é de aproximadamente 1,5 trilhões de dólares, queremos dizer que, com essa quantia em moeda americana, seria possível comprar toda a produção anual da economia brasileira se mantida constante a taxa de câmbio que a precificou. PIB é, em outras palavras, a renda anual corrente do país, ou ainda, o fluxo de riqueza adicionado pelo país em um ano.

O que é valor de mercado de uma empresa ou patrimônio de uma pessoa?

Basicamente, valor de mercado de uma empresa listada em bolsa se dá pelo valor que suas ações estão sendo negociadas vezes o número de ações que a empresa foi partida. Por exemplo, uma empresa partida em 100.000 ações que estão sendo negociadas no dia de hoje por 20 dólares cada, valerá 2 milhões de dólares.

Do mesmo modo, o patrimônio de um indivíduo representa o valor de mercado estimado de seus bens (casas, carros…), dos seus ativos financeiros (depósitos bancários, títulos…) e, no caso desses bilionários, principalmente o valor que detém em ações. Por exemplo, se a Tesla Motors vale 1 trilhão de dólares e Elon Musk detém, digamos, 20% de suas ações, seu patrimônio será de 200 bilhões de dólares mais seus carros, casas e demais ativos financeiros.

Em suma, tanto o valor de mercado de uma empresa como o patrimônio de um indivíduo representam o seu estoque de riqueza, ou seja, são a precificação do resultado de anos de acúmulo de suas rendas e do resultado de seus investimentos realizados.

Com isso em mente, podemos elencar 3 problemas presentes no raciocínio de comparar o PIB de um país com o patrimônio de um indivíduo, iniciando com um que, a essa altura, já deve ter ficado claro: não faz sentido econômico ou contábil comparar estoques com fluxos. Isso pois são coisas que, embora guardem alguma relação, são fundamentalmente diferentes. Enquanto estoque é um conceito que remete a uma ideia de depósito, de algo “permanente”, fluxo remete à ideia de algo “transitório”, que “passa por algum lugar”, que “entra e/ou sai”. Vejamos alguns exemplos desse contraste:

  • O nível de uma barragem de abastecimento de água de uma cidade é um exemplo de estoque, já o consumo da população e o volume de água que a abastece (seja de origem fluvial ou pluvial) representa o fluxo.
  • O nível de gordura corporal de uma pessoa representa o seu estoque de calorias, enquanto seu dispêndio diário, bem como sua ingestão diária representam o fluxo de calorias.
  • A poupança bancária de uma pessoa é o seu estoque de dinheiro, já o seu salário e a sua despesa mensal são o fluxo de entrada e saída do seu dinheiro.

Assim fica fácil entender porque a comparação dos “PIBs” nacionais com o valor de empresas/patrimônio de pessoas é equivocada. Pois colocar o PIB (fluxo) contra o estoque patrimonial das pessoas é tão errado quanto comparar o patrimônio que um indivíduo possui (digamos um carro de 40 mil reais + uma casa de 260 mil reais, totalizando 300 mil reais) com a renda mensal de um alto funcionário público (digamos 30 mil reais). Simplesmente não faz nenhum sentido. Percebam como 300 ser maior do que 30 não nos diz nada sobre a real situação dessas pessoas.

O mais correto (ou melhor, menos errado) seria comparar a renda/faturamento anual dessas pessoas/empresas contra os PIBs nacionais; ou então comparar o estoque total de riquezas de um país (valor de tudo o que já existe ali, e não o que está sendo produzido) contra o valor de mercado dessas empresas ou patrimônio dessas pessoas. Não tenho em mãos esses valores para o Brasil, mas ele ultrapassa em muito o valor de mercado da Tesla Motors, Microsoft ou Apple, e o patrimônio de Elon Musk/Jeff Bezos ou de qualquer outro bilionário da Forbes – mas isso não renderia manchete nem uma boa retórica no palanque.

O segundo problema é que um cálculo patrimonial é sempre estimado, e pode não representar genuinamente o valor que seria recebido pelo seu detentor, caso este resolvesse liquidá-lo (i.e, trocá-lo por dinheiro). Para explicar melhor isso, tomemos novamente Elon Musk como exemplo (os valores usados aqui não pretendem ser corretos, apenas didáticos, embora talvez se aproximem da realidade dependendo de quando você esteja lendo esse texto). Digamos que Elon Musk detenha um patrimônio estimado em 200 bilhões de dólares composto exclusivamente pela sua participação acionária de 20% na Tesla Motors (que está avaliada em 1 trilhão de dólares). Essa estimativa é feita considerando que o valor das ações da Tesla permaneça constante caso Elon Musk decidisse vendê-las, e, muito embora isso seja verdade para o caso de um pequeno acionista, não é verdade para Elon. Isso pois ele, como detentor de uma fatia substancial da empresa, não mais pode ser caracterizado como um tomador de preços, mas sim como um formador de preços. Ou seja, o fato de Elon Musk deter uma grande quantidade de ações dessa montadora de automóveis faz com que ele seja capaz de derrubar seu preço caso decida colocar muitas delas à venda, o que obviamente reduziria o valor efetivamente obtido pela transação em relação à sua prévia estimativa patrimonial.

Essa diferença entre tomadores e formadores de preços (nesse caso pequenos e grandes acionistas) pode ser expressa graficamente da seguinte forma:

O Pequeno Acionista (caso 1) enfrenta uma curva de demanda perfeitamente elástica (preço constante) quando decide vender as suas ações (faz a oferta se deslocar da curva 1 – linha cheia -, para a curva 2 – linha tracejada).

O Grande Acionista (caso 2), enfrentará uma curva de demanda menos elástica (preço declinante), caso ponha suas ações à venda (faz a oferta se deslocar da curva 1 – linha cheia -, para a curva 2 – linha tracejada).

Mas isso não é tudo. O fato de esses grandes acionistas como Elon Musk costumarem ser presidentes (CEOs) dessas grandes companhias pode derrubar ainda mais as ações caso decidam rapidamente vendê-las, por dois outros motivos:

1 – Quando o fazem, provocam desconfiança nos compradores sobre a atual situação da empresa, o que os faz, como medida de precaução, precificarem para baixo os valores negociados (embora possa não passar de desconfiança, os investidores temem que o presidente da empresa possua alguma informação que eles não possuem sobre o futuro da companhia, e isso pode deixá-los temerosos em pagar os valores atuais, pois temem uma desvalorização futura).

2 – Esse mesmo temor de futura desvalorização pode fazer com que os demais detentores de ações da companhia comecem a também vender suas ações, aumentando ainda mais a oferta e derrubando ainda mais sua cotação na bolsa.

Apesar de poder parecer estranho para alguns, essas atitudes “irracionais” são relativamente comuns nos mercados no curto prazo, onde, sem necessariamente ter um fundamento real, o preço de algo pode vir a cair pelo simples fato de os indivíduos temerem que esse evento ocorra. Esse fenômeno de ordem psicológica é por vezes referido como profecia autorrealizável.

Por último, o terceiro problema que torna esse tipo de análise ainda mais equivocada é a maneira como o câmbio deforma a avaliação de alguns ativos quando esses são medidos em dólares.

Isso ocorre quando o câmbio de um país está excessivamente desvalorizado contra o dólar (o que pode acontecer por diversos motivos) e desencadeia um efeito de encolhimento no preço do que se está avaliando, tornando distorcidos certos indicadores como o PIB nominal. Um bom exemplo disso é o PIB chinês, que parece ser menor que o PIB norte-americano em comparações que seguem essa métrica, o que já não ocorre quando utilizamos a metodologia conhecida como PPP/PPC (Purchasing Power Parity ou Paridade do Poder de Compra), que busca justamente sanar esse problema.

Como o câmbio brasileiro é bastante volátil (especialmente devido à nossa pouca abertura comercial e instabilidades políticas), em alguns momentos nossa produção anual (PIB) pode ficar “subprecificada”, tornando a já esdrúxula comparação com valores de mercado de multinacionais ainda mais problemática.

Assim fica claro que não faz o menor sentido comparar o valor de mercado de empresas ou o patrimônio de indivíduos o PIB de países. A desigualdade econômica é um problema sério, e já escrevemos bastante sobre isso aqui mesmo em nosso site (vejam aqui e aqui). Mas não podemos utilizar argumentos problemáticos ou patentemente errados para avançar a agenda da diminuição dessa desigualdade – pois assim iremos, por esvaziamento, destruir a agenda ao invés de contribuir para sua concretização.

.

Leia também:
Por que os desenvolvimentistas estão errados sobre crescimento?
Desigualdade e crescimento econômico
Por que a frase “desigualdade não importa, só pobreza importa” não faz sentido
Tributação sobre lucros e patrimônios não é solução para a desigualdade

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não ficará público